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Pornografia: algumas provocações

Recentemente eu escrevi um texto de opinião sobre a pornografia, publicado aqui, na minha coluna do site do Instituto Pró-diversidade. Nesse texto, eu analisei, por um ponto de vista crítico, a problemática da existência da pornografia em sociedade, a partir de vários aspectos, entre eles a moralidade médica e psiquiátrica, o estabelecimento de parâmetros de exercício da sexualidade considerados normais e, por fim, a indústria do entretenimento sexual e seus possíveis males. Se quiser ler o texto, clique aqui.

Como se pode perceber, meu texto anterior problematiza. Não condena ou reforça preconceitos sobre a pornografia, nem subsidia uma condenação médico-psiquiátrica de sua produção ou usos, como é comum de se fazer. Mas para que se fique claro o posicionamento que possuo, o qual considero verdadeiro e crítico, é preciso que vejamos com olhos bem abertos as condenações médicas sobre a pornografia. A primeira coisa que precisamos descobrir é que esse tipo de condenação, comum na ciência desde seu estabelecimento no mundo pós-iluminista, referenda antigas formas de compreender elemento humano.

Talvez por isso, o comportamento sexual normalizado do ser humano correspondesse à visão bíblica: entre gêneros opostos, destinada primária ou secundariamente à reprodução. Por mais de um século, outras facetas do comportamento humano estiveram sob a égide da doença, até que a própria ciência médica resolveu rever suas posturas, não por atacar novamente a razão falsa da religião. Mas porque a manutenção de posturas cristalizadas é anticientífica. No entanto, mudanças no discurso médico não viram a chave da normalidade para outra posição, ao contrário, criam resistências no seu próprio interior. Práticas antigas passam a conviver com práticas renovadas, E assuntos antes objetivos, como a normalidade do sexo, passam a suscitar mais de uma opinião.

Normalidade no sexo nunca foi algo muito importante, já que as práticas “anormais” não são exatamente proibidas. O importante é que elas sejam rotuladas, classificadas e contidas em espaços privados de uso do corpo. Esse é o atual problema da pornografia. Ela escapa desse controle. Os motivos são bem simples. Primeiro porque ela não é proibida. Ao contrário. É permitida de diversas formas. Estamos falando dos últimos anos do século passado e dessas duas décadas do século atual que acabaram de finalizar. Nunca se pôde falar tanto de sexo, fazer tanto. Qual seria então o sentido de coibir qualquer manifestação relacionada a isso? O controle. E isso não pode ser algo direto, incisivo, pois a resistência gerada diminuiria o poder que se quer exercer.

A liberação da pornografia tem a ver com o “direito” ao prazer dado aos sujeitos. E o direito a ver, ouvir o sexo, podendo-se fazê-lo ou não. O problema reside em dois fatos principais a respeito da pornografia: sua produção industrial que leva ao abuso dos corpos envolvidos. Notoriamente do corpo feminino. O outro problema se referiria ao abuso de seus produtos por usuários de pornografia. Daí surgem as críticas que relacionam o consumo de pornografia a uma série de doenças emocionais ou disfunções da vida sexual. Desde compulsão ou vício até a má formação do caráter sexual de homens, a pornografia arca com um peso muito grande no surgimento desses males.

Há um esforço muito grande de mostrar a pornografia como abuso, em todas as formas. Por exemplo, descobrem que há um padrão constante de consumo de pornografia entre homens que são agressivos com mulheres no sexo. Então culpam a pornografia por impor uma forma de erotização e sexo que mostram isso. No caso, a formação sexual do homem não deveria depender da pornografia. Há estatísticas (todas elas retiradas de sites, materiais com discursos religiosos de combate à masturbação e promoção da castidade) que mostram que 90% dos meninos (não se diz a idade, nem a partir de quando ou nem mesmo como isso acontece) são expostos muito cedo à pornografia.

Junto a isso, não se pensa no óbvio. A pornografia não é feita para orientar a formação sexual das pessoas. O fato de que ela esteja sendo usada assim (não ousei questionar isso, mas dá para questionar sim) mostra que há um problema na formação sexual de homens jovens, Não na pornografia. Ela não mostra como deve ser o dia-a-dia do sexo normalizado, mas reflete de modo profundo o desejo daqueles que a consomem. No caso de pornografia heterossexual, os desejos podem ajudar a impor certos aspectos do machismo. Mas isso se dá pelo óbvio: a pornografia está, no caso de isso ser verdade mesmo, substituindo a formação sexual que adultos deveriam dar a crianças e adolescentes em casa.

Isso fica claro na postura que muitos pais têm de esperar os filhos perguntarem algumas coisas, ou aceitar suas esquivas em falar sobre assuntos. Ou não controlarem seu acesso à Internet, ou pelo menos esclarecerem as coisas. Quando adolescentes, principalmente, entram em contato com a pornografia, na Internet, hoje em dia, no meu tempo por meio de revistas e filmes, é necessário que esses sujeitos tenham tido uma orientação familiar, algo que nem sempre é feito. E o principal motivo disso tudo ainda é a mesma moral cristã que condena a pornografia. Ela produz um ciclo vicioso. Em primeiro lugar, ela impede o diálogo sobre o sexo, porque inibe a compreensão da possibilidade do sexo como forma de prazer. Depois sacraliza o sexo atingindo homens e mulheres de maneira diferente, permitindo uma cultura sexual de abuso, que notoriamente, passa à pornografia industrial, que existe há bem menos tempo do que a moral judaico-cristã ocidental. Depois disso, conta com a colaboração da ciência médica em “adoecer” os usos da pornografia, relacionando-as à depressão, conduta sexual “imoral”, “indecente”, doentia ou a práticas criminosas.

De um modo geral, a prática de sexo liberada desse último século forçou a repressão para outras práticas correlatas. De fato, a pornografia industrial pode ser abusiva. Principalmente porque ultimamente temos descoberto que mulheres não são bem tratadas na indústria pornográfica. Inclusive há uma estatística citada em alguns lugares na Internet que diz que a expectativa média de vida de uma atriz pornográfica é de 36 anos. Esse fato é repetido grandemente. Inclusive é o argumento-chefe de um coletivo feminista que combate o abuso do corpo feminino na indústria pornográfica. No entanto, referências sobre esses dados são circulares, ou seja, elas partem desse coletivo e daí são citadas por outros textos que voltam a ele. E o coletivo não mostra de onde tirou esse dado. Nem mesmo quem realizou tal pesquisa.

Isso se mostra mais pelo contraste entre dados obscuros sobre a pornografia e a clareza que se tem a respeito da prostituição. Essa, por sua vez, não é exatamente uma indústria, mas um comércio de corpos. A realidade sobre sua existência e práticas move ações governamentais contra a prostituição ou a favor de sua existência mais branda e menos danosa. A expectativa de vida média de uma prostituta exposta a doenças, perigo e exclusão, é dez anos maior do que a suposta expectativa de uma atriz pornográfica.

Enquanto os problemas da prostituição custam fazer acreditar que as mulheres ainda vivam o tanto que vivem, nada é mostrado a respeito da vida de uma atriz pornográfica. Ou seja, o argumento sobre a sua expectativa de vida é falso. E se é verdadeiro, não é facilmente comprovável. Enquanto isso, há moralismo versus cidadania no embate entre prostitutas, governo sob a influência do feminismo como acontece na França e no Brasil, assim como em muitos outros lugares do mundo. Na Europa, as prostitutas dizem que, se pudessem, teriam escolhido outra carreira. Mas quando veem que o governo é que pretende tirá-las do ramo, voltam atrás. Por que a atuação governamental é tão indesejada? Talvez porque esteja eivada de um moralismo burguês que pretende apagar essa classe trabalhadora, e não melhorar sua ação. Lembrando que os avanços contra a prostituição e as ilegalidades relacionadas na Europa aumentaram a busca de europeus por turismo sexual em outros lugares do mundo. Ou seja. O problema não foi resolvido.

Voltando à pornografia, não há como saber se a pornografia adoece em si. Seus usos estão ligados a padrões culturais de masculinidade e exercício do sexo que constatam uma problemática complexa. Ou seja, o exercício da masculinidade pressupõe abuso e comportamento doentio em alguns momentos ou por alguns indivíduos. Principalmente se os homens estão em posição de poder. O problema está na forma como homens querem fazer e fazem sexo, como encaram as mulheres, como elas participam da economia do sexo heterossexual. Não exatamente na pornografia. Ela sempre atende a demanda do desejo. Qualquer adoecimento mental, emocional ou físico ligado à pornografia precisa ser visto sob o ponto de vista empírico. Mesmo casos mais graves de compulsão por sexo ou abuso e violência, precisam ser entendidos a partir da etiologia específica desses transtornos, visto que eles já existiam antes da pornografia, ou seja, a pornografia pode participar desses cenários complexos sem ser exatamente a causa. Mas apontar a pornografia como causa evita de se buscar soluções para problemas difíceis.

Por fim, temos que pensar no papel da mídia e sua capacidade de “distorcer” a realidade. Na verdade, a mídia não distorce nada. Não existe uma realidade que se separe do uso da mídia em larga escala. Ela é parte de nossa própria realidade. Cabe a nós, sujeitos dessa época, questionar o papel da mídia na mediação de certas relações humanas. Essa responsabilidade é de todos na sociedade, mas passa pelas famílias, pelos progenitores, que devem tentar descobrir formas de educação sexual que garantam às crianças e adolescentes uma formação mental saudável. Mesmo que essa geração que tem filhos hoje não seja exatamente a mais sexualmente saudável, é uma mudança gradual que deve ter impacto cultural a longo prazo. Daí, quem sabe a pornografia deixa de ser essa intrusa na moral das pessoas de bem e passa a ser do interesse de quem busca formas específicas de prazer que ela possa ter.

Mas talvez seja esse o problema. A pornografia não é o alvo dessa campanha. Ela não tem por objetivo liberar o corpo da mulher, e nem mesmo melhorar a saúde mental e sexual das pessoas. Ela é uma das incompreensões que levam ao uso mais efetivo de poderes sobre o corpo. É um caso análogo ao citado por Foucault, no seu primeiro livro sobre a história da sexualidade, “A Vontade de Saber”. Havia, na Europa do século XVIII, uma campanha em curso contra a masturbação infantil que nunca chegou a seu objetivo de impedi-la. Mas esse esforço levou à criação de uma rede de poderes sobre o corpo infantil que permitiu dominá-lo pelos saberes em curso. Assim também é esse tipo de esforço. Ele busca aumentar a rede de poderes sobre o corpo adulto, apoiadas pelo moralismo médico, pela religião e pela cultura. No entanto, esses esforços tendem a diminuir o prazer dos corpos individuais, principalmente nas classes mais baixas.

O bom senso de médicos, psicólogos, de educadores e pais, nesse sentido, servem mais para apoiar seus próprios valores e manter uma cultura de hipocrisia quanto ao sexo. Uma vez que os ganhos de liberdade do corpo não podem mais voltar atrás, a solução é adoecê-lo, para que a cura venha exatamente com o controle que foi perdido. De fato, a verdade acaba prevalecendo, nesses casos, mais cedo ou mais tarde. Mas até lá, o que pode acontecer?

Até lá, você, sujeito, principalmente se for homem, pode se convencer que o prazer tem custos que você não pode pagar. Sejamos honestos. Se o consumo é desenfreado, deve-se pensar na formação desse consumidor, na educação sexual precoce, durante a adolescência, para que as pessoas possam entender a realidade da pornografia. Deixar a mídia decidir quando mostrar isso aos filhos, de fato, é uma opção de progenitores ausentes. As crianças não são vítimas da pornografia, mas de famílias ausentes. Olha que eu estou falando da realidade de famílias de classe social alta. Imagina como deve ser para famílias de classe menos abastada, cuja criação de filhos sob supervisão direta não é uma opção?

O sexo ainda é muito relacionado a abuso e violência. E grande parte da violência sexual vem da ignorância que abate as vítimas ou da associação indevida entre sexo e problemas de origem moral, de sociabilidade ou ainda mesmo de saúde mental. No entanto, a relação entre o sexo e as formas de sociabilidade tendem a mudar com o tempo. As preocupações com saúde física e mental atravessam as práticas sexuais desde sempre. Primeiro porque no sexo reside a função da natalidade, muito importante para a gestão da população. Em segundo lugar, porque no sexo está a possibilidade de uso do corpo para o prazer. Isso depende de uma economia específica do uso dos corpos. E nessa economia, quanto mais pobre se é, menos se pode usar o corpo para o prazer.

Quando mais rico se é, mais sofisticada pode ser a busca pelo gozo. Qualquer forma de saber que vise disciplinar essas coisas pode ser útil nesse sentido. Precisamos que crianças cresçam sabendo dizer não, sabendo respeitar o corpo do outro, conscientes de riscos e problemas relacionadas às práticas sexuais. Precisamos de pessoas com maturidade para usar o corpo para o prazer, Não de mais problemas. Nesse tipo de configuração, enfatizar o sexo como prática que adoece não adianta. Assim também como não adianta levantar uma luta moral pela liberdade feminina na indústria do entretenimento do sexo sem se importar mesmo com a emancipação plena da mulher. Porque fica parecendo uma cruzada, não uma luta por direitos. Qual o interesse de conservadores, cristãos e médicos burgueses na liberação dos corpos femininos? Para mim, nenhuma.

Enfim, quer ver pornografia? Veja. Veja sem culpa. Sem medo de adoecer. Embora eu realmente ache que se há exagero, algo não está bom, moderação é o melhor sintoma de saúde mental. Nesse caso, procure um psicólogo, se possível um psicólogo especializado em assuntos de sexualidade. Se você é pobre e não pode ir a um psicólogo, como a maioria das pessoas no mundo, busque regrar essas coisas como a qualquer prazer. Se você é sensível à causa feminina e acha que só o boicote à pornografia é a solução para o fim da indústria do entretenimento, faça o que achar melhor. Se bem que o melhor mesmo e ir até essas mulheres e oferecer a elas opções de vida e trabalho. Se assim elas quiserem.

Essa atitude prática levou a prostituição a um nível diferente, desde o século passado, com a sindicalização de prostitutas. Ou seja, elas deram a si uma solução possível para alguns de seus problemas. Porque elas sabem que ninguém vai mudar o mundo a tempo para que cada uma delas possa entrar num sonho burguês, ajustado e cristão de vida. Então é melhor que cada uma delas tenha direitos. Talvez no futuro, a indústria pornográfica seja invadida pela realidade de atrizes empoderadas que negociarão o uso de seus corpos de maneira menos problemática. Assim como cada um de nós negocia com nossos empregadores. Quando podemos. Se é que podemos.

A exploração existe de diversas formas, a gente, no entanto, se preocupa com algumas, apenas.

Não deixe de ter prazer. Não se culpe por estruturas sociais e econômicas que precedem sua existência o tempo todo. Quer fazer algo que lhe deixe de consciência mais tranquila? Tudo bem. Mas esteja em paz consigo e seu corpo. Se você vive solteiro por opção ou por não conseguir encontrar alguém e gosta de sentir prazer sozinho com ou sem estímulo de material sexual, não há porque achar que isso leva ao adoecimento. Apenas esteja atento. Nenhum prazer em excesso causa bem. Assim como também nenhuma ausência de prazer em excesso é boa. Seu corpo não existe apenas para o trabalho. Nem para uma forma única de prazer.

Sexo é prazer, também é entretenimento. Seja respeitoso consigo mesmo. Você não pode comer doce todo dia, também. Coma menos e seja mais feliz por mais tempo. Com o sexo é o mesmo. Você não tem que gastar tudo o que pode sentir em uma noite vendo pornografia. Nem precisa ver todo dia. Se você não se excita mais, tente entender como o seu desejo muda ao longo do tempo. Isso nem sempre precisa ser o sintoma de um adoecimento. Entenda-se e seja feliz, na dúvida, procure um profissional. Evite soluções religiosas para o caso.

O entretenimento sexual pode sim ser algo livre de abusos e problemas relacionados à exploração. Muito do que se produz como material erótico na Internet hoje é autoral. De qualquer forma, muito do que empurra alguém para ganhar dinheiro com o sexo ainda se relaciona à falta de outras oportunidades. Sim. Mas vamos pensar juntos. Por que ainda devemos entender que trabalhos com sexo são sempre algo ruim, exploratório? Isso é um moralismo muito forte e prejudicial. As pessoas acham isso errado sem saber o porquê.

A própria palavra “pornografia” é um moralismo hediondo. Ela deveria ser substituída, colocada no rol daquelas palavras “proibidas” do politicamente correto que não deixa mais eu chamar o móvel de cabeceira de “criado mudo” (o que é uma boa ideia, diga-se).

Quer ter prazer, tenha. Melhor ainda se fizer isso de consciência tranquila. O importante é cada um de nós se sentir livre, não ter medo de adoecimentos, não complicar o que pode ser simples, gozar, ter prazer. Isso faz falta. Um dia, o tempo para isso acaba nas nossas vidas. Não dá para ficar a vida inteira com neurose.

Fuja de propaganda, sites religiosos que buscam curar traumas sexuais ou que prometem curar vício em sexo ou masturbação. Mesmo que eles sejam chancelados por médicos e psicólogos. É a mesma coisa que entregar a chave do galinheiro às raposas. Qualquer problema sexual precisa ser tratado por médicos especializados ou psicólogos que possam comprovar sua laicidade. Fuja de religiosos nesse ponto. E em outros também.

Imagem da capa: Sammy-Williams por Pixabay

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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