Search

PORNOGRAFIA PARA QUÊ?

Hoje em dia há uma clara condenação da pornografia com algo patológico e danoso à sociedade. Ela faz mal, de acordo com alguns médicos, para a saúde física e mental das pessoas, mas isso não é um consenso. A presença da pornografia, no mundo cristão moderno, é a prova de que a repressão diminuiu consideravelmente, de um século para cá. De fato, nunca se falou tanto sobre sexo. Nunca se fez tanto sexo quanto agora. A vida sexual europeia sempre passou por períodos de liberação e repressão depois da Idade Média. Isso veio para cá com a colonização. Mas nada se comparou ao século XX. O século da liberdade. Da liberação do corpo feminino. Por que então a pornografia não desaparece?

Primeiro porque ela não surge para servir de alívio à repressão. Ela surge num contexto específico de economia do desejo. Aparece no contexto de uso do corpo que permite uma grande liberdade em espaços privativos. A pornografia consumida só ou entre pares é uma atividade sexual possível. Seu uso não deve ser entendido como um substituto a nada, mas eventualmente pode predominar nessa função, por imposição social. Porque o uso do corpo para o prazer tem regras e complicações que passam por rituais e socialização específicas. Se o prazer que se tem com o sexo é solitário, a tendência é se entender que isso substitui o sexo entre pares. Mas não precisa ser assim, principalmente em economias do prazer que surgem da resistência.

Moralismos modernos e pornografia

A associação entre pornografia e masturbação é conflitiva. Mesmo depois do fim do surto de preocupação médica com a masturbação infantil, no século XIX. A pessoa que se masturba pode ser entendida como problemática, caso não consiga ter relações sexuais normais, dentro de parâmetros específicos de uso do corpo. De fato, a pornografia é mostrada como fonte dessas patologias masturbatórias.

Na atualidade, a pornografia passou a ser atacada por outros moralismos, não médicos, não religiosos. O feminismo passou a denunciar a pornografia porque mostra a mulher em função do desejo do homem. Por isso, ela é acusada de perpetuar o machismo, de colaborar com a submissão da mulher ao prazer do homem. A pornografia, por exemplo, impõe às mulheres a normalidade do sexo anal, porque isso é o desejo dos homens, algumas dizem.

Essas afirmações, no entanto, não se baseiam na opinião de seus consumidores. Ela se baseia em outros fatos mais delicados, como por exemplo, a existência de uma indústria pornográfica de proporções enormes. As mulheres dessa indústria, por exemplo, denunciam abusos e estupros. Isso é preocupante. A pornografia também é apontada como fonte de inspiração para agressores sexuais e seu consumo leva a problemas de autocontrole.

Não há problemas na pornografia, em sua essência. As coisas ficam complicadas, no entanto, quando corpos se desviam da economia em que a maioria está, para sentir prazer. O uso do corpo para o prazer sexual é uma exceção, não pode durar muito. O tempo esquadrinhado do corpo que trabalha é que criou o sexo que dura minutos. As relações de poder entre as pessoas é que criou o machismo. As instituições o sacralizaram. Não foi a pornografia que criou nada disso. Ao contrário, ela aparece como possiblidade de uso dos prazeres.

Netflix King Cobra. Foto: Divulgação.

Saúde mental, estética e pornografia

De fato, a pornografia expõe fraquezas morais e psicológicas da humanidade. Seu consumo apresenta o viés do mal-estar psicológico. Esse mal é comum na vida civilizada, é constante e fonte de culpas e recalques. Mas ao mesmo tempo, o consumo de arte erótica também reproduz pressões estéticas e econômicas.

A pornografia valoriza a estética padronizada. Os corpos nos filmes e fotos são ideais ou próximos a isso, na maioria dos materiais à disposição. Mas isso só acontece porque a própria sociedade a explora comercialmente. Isso não é um problema sexual. Mas de abuso econômico. Assim como açúcar e sódio, as imagens pornográficas são ofertadas em excesso e de maneira desastrosa. A culpa disso não é do desejo em si, mas da exploração capitalista do desejo. A pornografia não tem moldado o desejo. Ela tem servido à exploração econômica do desejo, impondo sua estética, como a moda. As pessoas usam por necessidade e questionam ou não o padrão, no entanto sem controle sobre ele.

Enfim, o objetivo da sociedade não é proibir a pornografia, nem sequer fazer com que ela deixe de existir. Já a medicina quer problematizar o corpo e mantê-lo sempre debaixo de seus parâmetros de normalidade. Uma das tarefas do saber médico é estabelecer parâmetros saudáveis para se apreciar o sexo. A pornografia lida com esses limites. Deixá-la sob foco ajuda a mantê-la sob controle sem precisar destrui-la. Não confundamos a pornografia com os males dessa economia sexual. Eles que produzem individualismos, dificuldades, pessoas ansiosas ou incapazes de se relacionar. Expor as pessoas à imagens sexuais não as deturpa. Provavelmente, elas já estavam nesse caminho de deturpação quando foram expostas a modos de se ter prazer.

Alternativas aos problemas

Há pelo menos duas coisas a se dizer, nesse sentido. Problemas com pornografia são essencialmente masculinos. Porque homens dominaram os sentidos de sua produção. Se estamos falando de adoecimento sexual relacionados à pornografia, falamos de homens, a maioria heterossexual. Mas falamos também de gays e homens trans. Não é errado produzir imagens, vídeos de sexo, o nosso erro, como sociedade, foi permitir a sua exploração comercial capitalista.

Outra coisa a se dizer. Existe pornografia alternativa. Caso você não queira mais consumir pornografia comercial, o que é uma excelente ideia, eu recomendo pesquisar pelo que orienta seu desejo. A estética bear/cub/chubby, por exemplo, foca menos nos padrões estéticos de beleza apolínea. O sexo é retratado com mais naturalidade e os corpos não são reduzidos a genitálias. Mesmo se focando nos corpos brancos, o pornógrafo André Medeiros, paulista, produz material de alta qualidade estética e erótica. Com ênfase na liberdade do uso do corpo e em abordagens do sexo kinky e hardcore, suas produções estão longe do sexo gay de grandes produtoras.

Como no caso das produtoras de pornografia heterossexual, há denúncias de abuso, estupro contra maiores e menores de idade contra empresas de conteúdo gay. Porque são empresas capitalista, não há por que imaginar que essas sejam diferentes das demais. Elas exploram o trabalho humano. Hoje em dia, a pornografia alternativa, amadora compete em níveis altos com a profissional. Redes sociais, como a Onlyfans, sites pornográficos oferecem uma gama imensa de possibilidades amadoras. Sem contar que a produção pornográfica instantânea invade outras redes sociais, como o Twitter.

A partir do lugar de fala: pornografia para quê?

Eu quero falar em nome dos que represento, dos gays. Primeiro porque eu sou gay. Segundo porque eu não concordo que gays tenham opiniões sobre as outras letras da sigla. Por exemplo, a relação das mulheres com pornografia é outra. Aqui, a todo momento, eu falo como quem descobriu, consumiu e questionou a pornografia como homem. E concluo o meu texto dizendo uma coisa muito importante. Em primeiro lugar, eu não quero me envergonhar por ter consumido pornografia minha vida inteira. Porque ela foi importante em me dar condições de ter prazer, de me amar num momento difícil da minha vida. Ela me permitiu sobreviver à solidão que foi a minha realidade quando não tive escolha.

Em segundo lugar, não é certo que substituamos moralismos religiosos por outros revestidos de conhecimento científico. Se quiser uma opinião sobre os supostos males da pornografia, há um artigo em inglês que prova que o consumo da pornografia não está relacionado a problemas de origem sexual na sociedade. A pornografia não é a causa de estupros e violência sexual, como muitos pensam. Não há nenhuma evidência criminológica ou médica a esse respeito. No entanto, falar sobre pornografia é difícil, porque envolve opiniões pessoais e questionamentos morais muito arraigados. Envolve recalque e muita culpa.

Há pessoas com problemas e vício em pornografia, vicia-se em tudo quando se pode consumir tudo. E se é vício, trata-se, ou tolera-se, como muitos são tolerados. Nesse caso, hábitos tais ameaçam, mesmo que superficialmente, a sociedade e sua forma de organização. A bronca da medicina com a pornografia é que ela desafia a lógica do trabalho primeiro, prazer depois. Claro que isso tem um preço, mas é perturbador perceber que alguns podem fazer isso. Outros apenas olhar e desejar.

Sugestões de filmes

No link abaixo, o trailer para o documento Porn To Be Free, uma importante reflexão sobre liberdade sexual, pornografia e revolução sexual no século XX. A resistência em se falar do corpo e pornografia fora de sites de sexo são tantas, que não é possível incorporar o vídeo ao texto, por questão de censura etária.
https://www.youtube.com/watch?v=BnaJGpjU6mg

Rocco, na Netflix (2016) mostra a vida do pornstar Rocco debaixo de enorme fama e exposição, e como ele lida com a sua carreira sob pressão constante do moralismo condenante. Como o outro vídeo, não há como incorporá-lo ao texto.
Rocco (2016) – Trailer (English Subs) – Vídeo Dailymotion

King Cobra, na Netflix (2016), mostra o início da carreira de Brent Corringan, a sua relação com o produtor que o lançara ao estrelato. A vida de um twink pornstar de um ponto de vista perturbador. Veja o trailer no link, já que não se pode mostrá-lo incorporado, por questões de censura.

(151) King Cobra Official Trailer #1 (2016) James Franco, Keegan Allen Drama Movie HD – YouTube

Enfim, vamos pensar bem, consumamos o que pudermos para atender nossos desejos, mas sempre dispostos a entender as coisas, a criticá-las. Olhemos com olhos mais criteriosos as propostas de proibição das coisas. O ensejo de proibir, de vetar, de interditar geralmente quer oprimir. Querer ficar livre da pornografia não é liberdade. É desejar uma forma abjeta de opressão.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *