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Voltando ao corpo

Imagem mostra um homem nu até a cintura, com o próprio rosto na mão, desconectado do crânio, com cabos eletrônicos à mostra em ambas as partes.

O corpo é uma instância do ser humano que o torna real: é a superfície sobre a qual os poderes agem. O corpo é a sede de nossos sentidos e sentimentos e não há alma sem corpo, não há espírito sem corpo, o corpo individual dá sentido ao corpo social, que age como se fosse um só porque é formado de muitos corpos: milhares, milhões, bilhões até. Ele  transcende a ideia de um conjunto de entidades biológicas (células, tecidos, órgãos e sistemas) e se define por sua função e sua possibilidade de individualizar sujeitos, de servir como sede mentes e inteligências individualizáveis. A nossa individualidade, de fato é uma corporalidade. O formato do nosso corpo, sua cor, seu peso, suas medidas, as cicatrizes que ele mostra, o tipo de cabelo que ele tem na cabeça, sua origem geográfica relativa dentro do Planeta Terra, tudo isso nos determina. Qualquer coisa que nos torna humanos passa pelos nossos corpos.

O prazer ele só existe porque o corpo existe. Eu nego veementemente qualquer noção não corpórea ou não corporificada de prazer. Mesmo o prazer intelectual é corpóreo, mesmo o bem-estar psicológico é corpóreo. E só sentimos prazer porque ele é do corpo e para o corpo. Ele só surge quando usamos nossos corpos sozinhos ou em grupo. O prazer não é e nunca será uma coisa espiritual, da alma. Não existe um porvir, um mundo de ideias onde o prazer possa ser sentido, porque sentir é algo do corpo, passa por ele, é essa instância que o registra, que o materializa. Por isso somos corpos, corpos com ideias, corpos com vontades, corpos encaixando-se em máquinas de poder e controle, corpos se desencaixando delas, encaixando-se em outras e continuando nosso funcionamento energético, motor, mecânico, físico, químico, mesmo que tenhamos nossas consciências, nossa mente, nossa capacidade de produzir cultura (também um efeito sofisticado da existência corpórea).

Conheça aqui um conceito prático da existência do corpo e de seus usos em sociedade, pela filosofia:

Por sermos corpos e podermos sentir prazer é que o prazer é tão regrado, tão controlado, tão encerrado em economias e esquemas de usos contra os quais podemos nos rebelar ou infelizmente precisamos nos conformar. E por isso que é tão importante problematizar o prazer: sexo, comida, amor, conforto, lazer, descanso, arte, amizade, proximidade, bem-estar, tudo o que nos provoca prazer precisa ser mais gratuito, mais fácil, mais acessível, longe das esferas de poderes que microscopizam essas coisas e as controlam dentro de esquemas padronizados. Na nossa sociedade, por exemplo, não trabalhar é um privilégio. Somente pessoas muito ricas ou pessoas que podem se colocar, de certa forma, à margem das principais regras dos usos dos corpos é que escapam do trabalho e de suas obrigações. A ideia do trabalho é sempre usar o máximo possível de força corporal para que possamos produzir lucro de maneira eficiente e duradoura para quem detém poder sobre nossa força de trabalho, sendo essa pessoa um empregador ou nós mesmos. Por causa dessa ideia de usar o máximo, nem sempre dá certo fazer o trabalho com prazer, na verdade, o prazer precisa sair do foco e vale qualquer coisa para que o trabalho continue. Nossa vida depende do trabalho. Muitos postos de trabalho precisam de trabalhadores extremamente comprometidos com suas tarefas, pois não há como ser de outra forma. Por exemplo: professores, médicos, advogados, engenheiros precisam mostrar, para além de seus conhecimentos técnicos e científicos, um comprometimento grande com as tarefas realizadas. Casos eles venham a faltar, nem sempre outro trabalhador pode assumir seu posto, uma vez que seus saberes os nomeiam sujeitos de maneira específica. Não é qualquer sujeito que pode falar ou agir no lugar deles. Obviamente existem vários substitutos, formados no mesmo tipo de ciência e saber, mas nem sempre isso pode ser resolvido de maneira rápida. Um médico ou professor que falta ao trabalho pode comprometer e muito a produtividade do lugar e da organização em que estão trabalhando. E isso só acontece porque eles são corpos. E ocupam lugares físicos com tarefas concretas, ainda que não sejam exatamente braçais.

Trabalhar com prazer é um desafio, porque isso pode tanto indicar alienação como a liberdade que serve de sua oposta. Porque o trabalhador que não sente as dores do trabalho pode estar anestesiado por crenças que o impedem de ver o quanto seu trabalho o degrada. Ou pode ser um tipo oposto de trabalhador que aprendeu a usar seu corpo com um tipo de liberdade que permite lidar, negociar com essas dores, minimizá-las ou mesmo acabar com elas. E geralmente não se acaba com isso individualmente. Todos os envolvidos precisam buscar e dividir esses espaços de liberdade. Isso leva a grandes índices de produtividade e maior confiabilidade no produto do trabalho, mas diminuiu e muito a necessidade de vigilância, de controle e pode ser um problema nos espaços onde a produtividade também é um problema. Por exemplo: na educação pública, nem sempre a qualidade e a liberdade são metas. Em países capitalistas, tudo o que é público tem que funcionar abaixo do nível de qualidade do que é privado, senão vira um problema para quem investe em áreas concorrentes. Exemplo: escolas que dão muito certo ou unidades de saúde que usam seus recursos humanos e materiais de maneira muito eficiente são fadadas a não ter continuidade, porque exatamente extrapolam a meta do serviço público: jamais concorrer com o privado.

Então, nesses lugares, controlar o corpo, controlar o trabalho é importante. O que isso tem a ver com diversidade? Tudo. Pense nessa lógica bizarra e cruel que eu acabei de descrever. Pense agora novamente o quanto ainda há de corpos úteis à sociedade que estão fora dessa lógica ou de qualquer lógica pior ou melhor do uso do corpo em sociedade porque são corpos de pessoas que não atendem a certos critérios sociais de normalidade. Muita gente não trabalha, e aqui não importa o quanto o trabalho seja bom ou ruim, libertário ou alienante, porque não é “normal” aos olhos de uma sociedade que ainda discrimina corpos com base num conceito preconceituoso e religioso de normalidade. Ou seja, no século XXI, ainda vemos a dura realidade de que pessoas LGBTQIA+ tëm dificuldade de se encaixar em esquemas de trabalho para garantir sua mínima sobrevivência. Muitos papéis sociais, muitos postos de trabalho ainda dependem diretamente do fato de que os seres humanos precisam parecer homens e mulheres do gênero binário. Isso é perturbador de muitas formas. Não dá para ignorar esse tipo de discriminação. Na verdade, não se identificar com o gênero binário é um problema muito sério em qualquer posição de sujeito que se queira ocupar no mundo. Isso é complicado. Na nossa sociedade, não é problema somente quando o professor não pode se identificar como homem ou mulher. Isso é um problema também de estudantes que precisam ser educados, formados, que precisam passar pelo menos doze anos dentro de uma escola para serem considerados normais o suficiente para o mundo do trabalho. Não é somente o médico que precisa estar dentro de um esquema específico de funcionamento do corpo que cabe dentro do conceito binário e tradicional de gênero. Isso também é uma obrigatoriedade do sujeito que vai atrás do médico. Se ele se identifica como mulher ou homem trans, por exemplo, corre o risco de não ser corretamente atendido ou ter a sua individualidade desrespeitada.

Isso tudo não se trata de ideias, mas de corpos. de crenças sobre a sua existência, sua utilidade e eficiência no corpo social, nos usos do trabalho. Por exemplo. Não há nenhuma relação imediata entre divergência de gênero binário e produtividade do corpo para o trabalho. Corpos nào binários podem trabalhar, cozinhar, ler, escrever, aprender, apertar parafusoso ou digitar palavras num teclado. Mas as crenças, geralmente de origem religiosa ou tradicional atrapalham esse processo, uma vez que a ciência do século XIX, por exemplo, ainda produz crenças errôneas que permanecem como conhecimento científico. Na cabeça das pessoas, principalmente daqueles que possuem postos de trabalho ou algum controle sobre eles, só pessoas “normais” devem trabalhar. Na verdade, boa parte da luta de pessoas LGBTQIA+ é para serem incluídas nesse rol de corpos normais. Eu, no entanto, discordo em parte dessa luta.

E é com essa discordância que eu quero terminar aqui, meu texto. Os corpos existem, são reais, eles não precisam se adequar ou normalizar. O que precisa mudar é o corpo de conhecimento das sociedades humanas para parar com a discriminação. Não há nada que seja sagrado ou verdadeiro o suficiente para manter esquemas de exclusão de corpos e as mentes que se sustentam neles: as pessoas, suas personalidades, suas “almas” e “espíritos” que não precisam de rótulos eternos e congelados no tempo para existirem.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: Imagem de 0fjd125gk87 por Pixabay

2 respostas

  1. E a questão do corpo é tão presente nos relacionamentos interpessoais que a Covid-19 mostrou um certo paradoxo no Isolamento Social: casais que não são colegas em area de conhecimento “abriram” a demanda dos chamados “Divórcio Direto” com cartório em home office, naquela época! Quantos colegas mesmo que não transem, se paqueram! Tem casal vizinho que numa ocasião no elevador mesmo ela tendo seios fartos, ele reparou meus mamilos, de deixá-la, “bufando”! E ela não esqueceu: noutra ocasião eu e ele subimos juntos e, puxei conversa, não demorou para ele reparar meus mamilos e ai entra a minha tese de que gênero e sexualidade Não se misturam; eu e ele cisgeneros, deu aquela paquerada em meus mamilos e quando me deixei envolver com a virilidade que ele foi liberando, ficamos relaxados e a porta do elevador abriu e a vizinha lá esperando! Deu de perceber uma certa decepção dele deixar nosso clima! Ai ficou nitido que a minha companhia e certa independência atrai ele e, a nossa anatomia mera fonte de prazer poderá vir a ser; a virilidade dele que me acende e ele esteja querendo me oferecer!

    1. Para mim, tudo é corpo. não há sentido para se entender as coisas fora disso, porque o corpo nos tira da transcendência exagerada, ontológica e mística. Tanto gêneros e sexualidade são aprendidos socialmente. Portanto, só fazem sentido num contexto social que lhes dá significado. Os significados de hoje são mais líquidos, menos constantes, menos rígidos.

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