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Vida louca vida

Um dos meus projetos de leitura para esse ano é ler a obra memorialística de Simone de Beauvoir, um antigo desejo que decidi finalmente colocar em prática. Até agora, já terminei os dois primeiros livros. Essa semana, comecei o terceiro.

 

Em “Memórias de uma moça comportada”, Simone de Beauvoir fala de sua infância e de sua adolescência. O livro se encerra no momento em que, aos 21 anos, ela termina seus estudos. É também o momento em que encontra Jean-Paul Sartre, que será seu companheiro para o resto da vida. “A força da idade” acompanha os anos de juventude da autora, que coincidem com a lenta mas inexorável ascenção do nazi-fascismo na Europa e com a eclosão da II Guerra Mundial e a ocupação alemã na França. O livro se conclui com a liberação de Paris. O volume seguinte, “A força das coisas”, cobre os anos posteriores à guerra e mostra a transformação do casal Simone e Sartre em figuras públicas, na esteira da repercussão e do sucesso da filosofia existencialista.

 

Essa leitura tem-me proporcionado muitas reflexões. É curioso como a gente começa a se sentir íntimo de uma pessoa ao ler suas memórias. No caso de Simone de Beauvoir, a forma minuciosa como ela relata suas lembranças faz com que a gente se sinta realmente dentro da cabeça dela. Ao mesmo tempo, sua narrativa mostra uma certa distância em relação à sua trajetória que revela um esforço muito grande de examinar as sucessivas etapas de sua vida com lucidez e sem nostalgia.

 

Por mais singular que seja a experiência dela (e a de cada um), tem sido difícil deixar de estabelecer pontes entre o que ela descreve e minha própria biografia. Ao ler sobre a consciência precoce que ela tinha sobre as limitações que a sociedade e o pensamento da sua época lhe impunham para se tornar quem ela desejava ser, por exemplo, foi impossível deixar de pensar na criança e no adolescente que fui e na pessoa que eu desejava ser naquela fase da minha vida. As expectativas projetadas sobre cada um de nós pelo mundo que nos cerca desde que nascemos podem variar (talvez nem tanto), mas o peso que elas exercem sobre nossos anos de formação e muito além deles parece permanecer ao longo do tempo e ser mesmo um elemento constituinte da vida em sociedade.

 

Mais tarde, quando Simone de Beauvoir fala sobre sua juventude e seus primeiros anos de vida independente, impressionou-me sobretudo a maneira como ela mostra, num primeiro momento, a dificuldade em identificar e acreditar na possibilidade do que, antes de acontecer, parecia impensável: o pesadelo nazifascista que tomou progressivamente conta da Europa durante a década de 1930. Com os olhos do presente, ao olhar-se retrospectivamente para aqueles anos, a realidade do perigo totalitário talvez pareça óbvia. Por isso mesmo é fascinante constatar o quanto as pessoas que viveram a época tinham dificuldades para perceber isso. O que, no fundo, não nos é tão estranho. Quantos de nós podiam prever, há 15 anos, todo o retrocesso político e social que vivemos hoje e o quanto as mais pessimistas das distopias estavam (e estão) próximas de nós?

 

Da mesma forma, o impacto sofrido por Simone de Beauvoir e seu entorno quando se inicia a guerra e, depois de meses de indefinição, a França é ocupada, evocou para mim os anos mais recentes, quando todos nós tivemos que enfrentar e aprender a lidar na esfera pessoal com a aparição do inesperado em nossas vidas e a disrupção que esse inesperado provocou e provoca. Mesmo quando as coisas voltam ao “normal”, as marcas deixadas pela ruptura permanecem, ou melhor, fica a consciência incontornável de que, justamente, não há “normalidade” que não possa ser quebrada de uma hora para outra, e sabemos que essa é uma ferida que nunca cicatrizará inteiramente.

 

Creio que, vistas em conjunto, até o ponto em que cheguei na minha leitura, as memórias de Simone de Beauvoir giram em torno de dois grandes temas que, de certa forma, fazem desse empreendimento uma obra propriamente “existencialista”.

 

O primeiro deles, que percorre os breves comentários que fiz acima, consiste na reflexão sobre a relação entre sociedade, história e indivíduo. Em que medida a estrutura que o cerca e o momento histórico onde vive definem o indivíduo de maneira inexorável? Que autonomia pode ter esse indivíduo diante das determinações do meio social e da história coletiva? Falando na primeira pessoa, Simone de Beauvoir busca, de um jeito bem existencialista, afirmar a possibilidade de liberdade individual diante do determinismo social e histórico. Não uma liberdade abstrata e idealizada, mas uma liberdade baseada na aceitação e na consciência das limitações impostas por cada “situação” (conceito sartreano que, de modo muito simplificado, se refere às condições objetivas em que se encontra cada indivíduo em determinado momento histórico) e no exercício permanente e refletido da escolha de como reagir e de como se comportar diante dessa realidade.

 

O segundo tema, que na minha opinião sustenta o primeiro e dá à obra todo o seu fôlego, é um profundo e incondicional amor pela vida, que se revela no gosto das viagens, dos encontros e dos prazeres dos sentidos. Mesmo em meio às mais elaboradas elucubrações filosóficas e morais, que podem se tornar meio áridas às vezes, transparece na prosa de Simone de Beauvoir esse apego à vida que sempre me emociona. Há momentos em que dá para sentir o brilho nos olhos dela quando ela chega a um novo lugar ou tem uma nova experiência. É como se o prazer de viver estivesse sempre se renovando de formas inesperadas.

 

Desconfio que é esse gosto pela vida que tem me mantido tão conectado com esse projeto. A cada noite, quando me sento para ler e avançar um pouco na exploração das memórias de Simone de Beauvoir, tenho a sensação de que vou encontrar uma amiga com quem vou dividir momentos intensos, às vezes dolorosos, mas sempre insubstituíveis, como a própria experiência singular do viver.

 

Até a próxima!

 

PS – As músicas de hoje são canções que, para mim, de certa forma, remetem a alguma forma de existencialismo pop: “Vida louca vida”, com o Cazuza, que abria um dos shows mais celebratórios da vida a que já assisti; “Chavão abre porta grande”, pérola do Itamar Assumpção na gravação de Ney Matogrosso; e “Ele me deu um beijo na boca”, música mais desconhecida, mas genial, de Caetano Veloso.

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