Há uma noção budista de que gosto muito: a sangha. Segundo a Wikipedia, sangha é uma palavra em páli ou sânscrito que pode ser traduzida como “associação”, “assembleia” ou “comunidade”. Um mosteiro budista, por exemplo, é uma sangha. De uma maneira bastante pessoal, sempre entendi a sangha como um grupo de pessoas que podem ou não partilhar o mesmo espaço de forma permanente, mas que estão ligadas por laços de afetos, interesses ou valores comuns.
O que eu acho bacana nessa ideia de sangha é justamente essa noção de que, na minha interpretação, o que une as pessoas que participam da mesma sangha é um vínculo não necessariamente identitário, mas sobretudo afetivo (pensando nos afetos como algo mais amplo do que a emoção, no seu sentido mais filosófico de algo que nos afeta de alguma forma).
Da vez passada, eu falei de como eu me sinto uma rês desgarrada e de como, ao longo do tempo, tornei-me confortável com essa situação. Hoje, quero dizer um pouco o oposto do que eu disse antes, como diria o Raul Seixas, e falar de como é legal encontrar sua sangha, ou suas sanghas.
A primeira sangha que encontrei na vida foram os amigos que fiz na segunda metade do então Segundo Grau, atual ensino médio. O colégio onde eu estudava no Rio, o São Vicente, era muito especial e conhecido por sua mentalidade liberal e por seu compromisso com uma educação libertadora. Estávamos na passagem da década de 1970 para 1980, a ditadura militar cedendo espaço muito lentamente para um início ainda incipiente de redemocratização, a anistia possibilitando a volta gradual dos exilados políticos, os preparativos para a primeira eleição direta para governadores de estados no final de 1982. O São Vicente atraía muitos filhos de artistas e intelectuais e tinha um ambiente efervescente.
Havia um grupo de pessoas em especial que me atraía. Uma galera que eu admirava e da qual queria me aproximar. Mas eles pertenciam a outra turma. Um dia, criei coragem, fui à coordenação e pedi para mudar de turma. Fui atendido e comecei a conviver mais de perto com esse pessoal. Alguns deles eu já conhecia de turmas passadas ou do grupo de teatro, do qual eu participava bissextamente. Mas, pela primeira vez na vida, eu me sentia pertencer a um grupo, de pessoas bastante diferentes entre si mas que tinham também muitas coisas em comum e que, sobretudo, gostavam de estar juntos, partilhando as descobertas tão típicas dessa fase.
Depois do vestibular, cada um seguiu o seu caminho e fomos nos afastando enquanto grupo, embora eu tenha mantido algumas amizades pela vida afora. Mais recentemente, graças às novas tecnologias, voltamos a entrar em contato uns com os outros e, em dezembro passado, tive a alegria de estar presente numa festa para comemorar os 40 anos da nossa formatura do Segundo Grau e rever muita gente que não via há anos. A sangha continua viva.
Muitos anos depois, encontrei uma nova sangha na minha família de axé.
Meu processo de aproximação com o candomblé foi longo e tortuoso. Meu primeiro namorado tinha uma amiga que, quando nos conhecemos, estava começando seu próprio caminho na religião. Acabei me tornando muito amigo dela, uma amizade que sobreviveu ao namoro. E acompanhei de perto, mesmo sem me envolver diretamente, o seu processo de crescimento religioso, que a levou a abrir sua própria casa, que eu frequentava esporadicamente como visita. Eu mesmo estava mais ligado naquele momento a um terreiro de umbanda, que acabei deixando de lado, nem lembro bem porquê. O fato é que um dia, essa minha amiga estava jogando búzios para mim, começamos a conversar, e chegamos à conclusão de que estava na hora de dar um novo passo no nosso relacionamento e eu me tornar seu filho de santo, sem deixar de lado nossa amizade de anos. E assim foi, já se vão 24 anos. Pouco mais de um ano depois dessa conversa, eu recolhi para fazer meu santo, em junho de 1998.
Mas hoje não quero falar da minha experiência religiosa propriamente dita, e sim da sangha que encontrei quando me tornei membro de uma casa de candomblé.
Quando a gente entra para um barracão, ganha uma nova família. Uma família formada por pessoas muito heterogêneas, com compatibilidades e incompatibilidades, mas unidas pelo vínculo religioso que acaba se transformando num vínculo afetivo profundo. Pessoas que viram a noite juntas para participar de um ritual ou preparar uma festa, pessoas que estão do seu lado cuidando de você em momentos de grande vulnerabilidade e fragilidade. Uma vez, numa de minhas obrigações, na qual eu passei uma semana recolhido, um irmão que estava lá para cuidar de mim preparava todas as tardes um suco de laranja fresquinho e ia me levar. Nunca esqueci a delicadeza do gesto dele, pela qual serei eternamente grato.
Em função da vida que levo, morando longe, eu atualmente vejo pouco minha família de axé. Mas sempre que chego na roça, sinto-me em casa. E eu, que sou uma pessoa que gosta de sossego e tranquilidade, fico feliz em estar presente no meio da balbúrdia que precede toda função num terreiro.
Uma terceira sangha também desempenhou um papel importante na minha vida: a comunidade dos ursos, uma tribo dentro do universo LGBTQIA+.
Conheci os ursos através de uma reportagem na finada revista G Magazine. Que eu me lembre, era a primeira vez que se falava desse grupo formado por homens gays barbudos, peludos e corpulentos e seus admiradores, já bastante “organizados” nos Estados Unidos e que começavam a se reunir no Brasil. Graças às informações fornecidas pela revista e pela ainda incipiente Internet, fui a um encontro de ursos no Rio. E acabei me envolvendo bastante no “movimento”, ajudando a organizar encontros e me tornando operador no canal do ursos no IRC, na pré-história das redes sociais. Foi num encontro de ursos no Bar Tamino, no Rio, que vi meu futuro marido pela primeira vez, em 12 de junho de 1999.
Fiz grandes amizades na ”comunidade ursina”, no Brasil e em outros países. E, ainda hoje, é o espectro da nebulosa LGBTQIA+ com a qual eu mais me identifico, mesmo que esteja afastado da dinâmica do movimento, que se desenvolveu e mudou bastante desde a “minha época”. Mas, de um modo geral, continuo a encontrar no ambiente dos ursos, no seu melhor, um lugar onde me sinto à vontade e, principalmente, acolhido.
Pois, no fundo, é isso que eu vejo e valorizo nas sanghas da minha vida: uma sangha é, antes de tudo, um espaço de acolhimento, onde cada singularidade é aceita pelo que ela é. É claro que toda sangha tende a desenvolver seus códigos próprios e seus traços peculiares, que a tornam também uma singularidade. Sem que isso esteja vinculado a uma essência identitária, mas a uma dinâmica de trocas e fluxos enriquecedores para todos os seus membros.
E, para uma rês desgarrada como eu, é reconfortante saber que esses espaços existem e que posso voltar a eles sempre que o desgarramento incomoda demais. E que as sanghas estão aí, no mundo, esperando ser encontradas ou, às vezes, construídas. Pelo menos para mim, na minha experiência, uma sangha não é uma comunidade de origem, e sim de chegada ou, no mínimo, de passagem. E é bom pertencer a elas.
Até a próxima!
PS1 – Esta coluna está sendo publicada em 17 de maio, Dia Internacional de Combate à Homofobia, à Transfobia e à Bifobia. Em julho de 2021, publiquei nesse espaço um texto sobre a violência contra pessoas LGBTQIA+ que infelizmente permanece atual. Convido vocês a revisitar essa reflexão.
PS2 – Na trilha sonora de hoje temos o clip fantástico de Together, do Pet Shop Boys, a incrível sequência inicial do filme Hair, do Milos Forman, com a música Aquarius, e Todos Juntos, de outro musical inesquecível, Os Saltibancos, com música do Chico Buarque e Sérgio Bardotti.