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Uma crônica de Natal

Este Natal tem sido o maior desafio de vida para João. Seu pai, falecido durante a pandemia, não estará presente para a ceia. Seus irmãos insistem em fazer uma festa com todos da casa. A mãe anda muito deprimida, claro. Há um ano, a família passou o pior Natal do universo, porque o pai de João estava morre-não-morre numa UTI. Ele durou até o dia de Santos Reis, em janeiro. Nem teve graça nada naquele momento: nem Natal, nem Ano Novo. Todo mundo ficava de olho no celular. A mãe de João desabara totalmente. Para não ver o pior acontecer, ele se mudou, depois de dez anos morando na sua própria casa, de volta para a casa dos pais, para dar suporte emocional à mãe. Ambos haviam pegado a maldita doença. Ela havia sido hospitalizada por um tempo mínimo e logo voltou para casa, mas apresentou problemas de saúde colaterais, tendo uma sensível piora na hipertensão. Depois disso, passou a apresentar dificuldades de memória e glicemia alta. Os irmãos, avaliando a situação, acharam melhor que alguém fosse morar com ela, já que pagar um cuidador de idosos estava fora de cogitação, dadas as dificuldades financeiras da família, como um todo. Sobrou para João, o solteiro da família.

Era uma família aparentemente coesa, mas a pandemia deixou à mostra algumas de suas divisões, alargou esses espaços de separação, tornando a convivência dificultosa, mesmo num momento em que isso faria toda a diferença para o bem de todo mundo. Isso tudo começa na adolescência de João. Quando ele terminou o Ensino Médio, saiu de casa para não mais voltar. Mas suas tentativas de cursar faculdade e arrumar emprego só deram resultado muito tempo depois. Nesse meio período, João teve de voltar a morar com os pais algumas vezes, buscando abrigo em momentos de dificuldade financeira. O único solteiro dos três filhos, João havia se assumido gay muito cedo, antes de ser maior de idade. Sua vida com os pais sempre foi de conflito. O pai era muito religioso, evangélico, rígido, ministro da Igreja. A mãe, amorosa e mais condescendente, não o poupava, no entanto, de seus temores, medos e condenações. Vivia orando para que o filho deixasse de ser “desviado” da Igreja. Uma triste história, como milhões e milhões de outras tantas de adolescentes gays que saem de casa para ter uma vida suportável. João, então, aos 17 anos se muda de casa para uma cidade próxima, mesmo menor de idade, para cursar o primeiro ano de uma faculdade na área tecnológica, curso que demoraria seis longos anos de idas, vindas, matrículas trancadas e retornos por falta, principalmente, de emprego digno, tempo e condições de estudo. A irmã e o irmão de João, mais velhos, já eram casados, estudados e viviam bem. Tiveram sensivelmente mais apoio dos pais nos seus projetos pessoais: casamento, filhos, mudanças de emprego, domicílio e outras coisas. João se sentia banido da própria família: o pai não o suportava, a mãe só o abordava com queixas, lamúrias e implorando para que ele deixasse de ser gay. No entanto, mesmo tendo saído, ele também precisou, por várias vezes, implorar por apoio funanceiro e abrigo. Até que ele conseguiu se formar e ter um emprego público na prefeitura da cidade onde havia se formado. Era um emprego estável e ele já tinha dez anos de carreira, quando pediu férias e uma licença prêmio para cuidar dos pais doentes na pandemia. Eram quatro meses, de dezembro a março. Ele se instalou na casa deles, tendo trabalhado ainda algumas semanas remotamente até que a licença saisse.

O mal-estar dos pais fora causado pelas circunstâncias: o pai não havia tomado vacina, seguindo a orientação do pastor da igreja. A mãe, havia tomado duas doses até pegar a doença, o que salvou a sua vida, isso sob a influência da filha, que a levou ao posto de saúde e a constrangeu  a se vacinar. O pai, no entanto, não havia ido. Recusava-se. A doença entrou no lar deles e um se foi. A morte do pai foi triste, desumana. O Deus a que o pai tanto dedicou sua vida não amenizou seu sofrimento, destino de todo ser humano na Terra, cada um com sua dose. Ele adoeceu, passou a moléstia para sua esposa, que resistiu bem, por estar vacinada. Mas ele, em duas semanas de hospitalização, estava num leito de UTI, inconsciente, intubado, incomunicável. E dali, caminharia para a morte, cerca de um mês depois. A essa altura, João já estava na casa da mãe, dando-lhe suporte. E ele continuou, durante o luto. O único solteiro e desimpedido da família, o único que podia voltar para a casa dos pais, pedir licença, desorganizar-se e se reorganizar em torno da vida de seu progenitores.

O mesmo João fugira da realidade dura de morar com pais intolerantes, preconceituosos e, aos 17 anos, enquanto muitos garotos estão debaixo das asas protetoras de seus pais, João já trabalhava num subemprego, morava de favor na casa de parentes, depois de aluguel numa kitchenette minúscula, tudo para não precisar ser forçado a ir à igreja, professar uma fé que não o acolhia, ter de responder perguntas sobre casamento, virilidade, masculinidade. Isso tudo aos 17 anos. Puxa vida, quem tem que pensar em se casar aos 17 anos? Quem tem que se sentir pressionado a se casar aos 17 anos? Quem tem que mostrar produtividade afetiva, amorosa e sexual tão cedo? Talvez mulheres e jovens evangélicos cuja masculinidade é questionada por seus pais e iguais. O pai de João, por diversas vezes, teve de responder pelo comportamento do filho na igreja: excessivamente afeminado, sempre na companhia de mulheres, mas “agindo como uma delas”, nunca se misturando com os meninos mais masculinos, nunca beijando, abraçando outras meninas com interesse afetivoe sexual, nunca “dando trabalho” com as mocinhas mais assanhadas. Ao contrário. De acordo com o pastor da igreja, a mocinha mais assanhada da igreja toda era João, sempre mulherzinha, sempre falando fino, sempre cantando música de mulher no louvor. Era complicado. O fato de ser filho de um dos ministros mais proeminentes da igreja fez com que todos o ignorassem enquanto podiam. E quando não mais podiam, João passou a ser alvo de um policiamento desconfortável, dentro de casa e na igreja. Não teve escolha: afastou-se dos cultos, da convivência de irmãos e de suas amigas mais próximas.

Na escola, aproximou-se de garotas e garotos que o entendiam melhor, mas nunca se sentiu à vontade consigo mesmo, até que se mudou da casa dos pais. Morar com uma tia solteirona não foi a melhor das coisas, mas foi uma escolha. Ele tinha privacidade dentro de seu quarto, um mínimo de liberdade, ela pouco se importava se ele ficava com garotos ou garotas, desde que nada acontecesse debaixo do teto dela, para que ela não se sentisse responsável por nada de errado que ele pudesse vir a fazer. Então, pouco tempo depois, ele percebeu que poderia morar sozinho. E daí, até concluir o curso, seis anos depois, ele foi e voltou várias vezes, tendo de passar três semestres morando de novo com os pais, sendo que um deles coincide exatamente com o período em que a mãe viajara para auxiliar a irmã, depois de um parto complicado. João viveu novamente com seu pai, por seis meses, cozinhando, lavando, passando e arrumando a casa para ele, enquanto sua mãe estava fora. Nesse período, a relação de ambos continuou estagnada. Ele não queria saber do filho porque ele não “voltava atrás” na decisão de ser gay. Mas o tolerava por conveniência. Era melhor do que ter que contratar uma empregada doméstica. Com o retorno da mãe, o término do semestre juntos não foi melhor. Ao contrário. Com a sua esposa por perto, o pai de João se mostrou mais disposto a retomar críticas, conselhos espirituais e a pressão para que ele “desistisse” de sua “opção sexual”. A mãe só se entristecia, sabendo, no fundo de si mesma, que era inútil aquilo tudo. Seu filho era como era, tendo nascido ou se tornado daquele jeito. Deus não o “consertaria”, mas a esperança é que algo melhorasse entre todos.

Mas não melhorou. Agora o pai era morto. A mãe adoentada, precisando de cuidados. João ficou com ela de dezembro a março, tendo oferecido a ela a possibilidade de morarem juntos, quando ele retornasse à sua cidade. Ela, no entanto, queria ficar na sua casa, na sua igreja, perto dos outros familiares e, claro, disponível para a parte funcional da sua família: sua irmã e seu irmão, que logo a cooptariam para que ela apoiasse alguém em mais um parto difícil, ou ajudasse alguém quando alguma criança precisasse de uma enfermeira em tempo integral. João jamais havia dado esse trabalho a ela. Mas havia solicitado acolhimento algumas vezes, por motivos de ficar sem emprego e ter de trancar faculdade. Eles não negaram apoio, ainda que não fosse o melhor de todos, ainda que não fosse o mesmo apoio que a mãe dava aos dois outros irmãos. Mas era hora de retribuir. E João dedicou quatro de seus meses de vida a ajudar a mãe, enterrar o pai e apoiar a todos num pesado e revoltante luto, como o de muitas famílias que foram desmembradas por essa doença maldita.

A vida seguiu. Em março, João retornou à sua casa, ao seu trabalho. E com isso, as coisas foram se encaixando novamente, sempre acompanhando de longe sua mãe. Era dia 20 de dezembro, quando ele chega de carro na porta da casa dela. Na janela, sua triste figura, pardacenta, de cabelos de raiz branca. Deprimida, sua mãe mal arrumava a casa e se alimentava. Estava magra e triste pela proximidade do Natal, a data que seu falecido esposo mais gostava. João não poderia fazer muito por ela naquele momento: o pai morto não voltaria. Restava abraçar a sua mãe, um abraço agridoce, como a farofa que ela fazia para acompanhar o pernil da ceia. Um abraço duro, seco. Quem a apertava ali, naquele momento, não era seu melhor filho, não era o mais bem-sucedido, nem mesmo aquele que ela mais amava. Os outros dois chegariam no dia 24, abarrotados de presentes, com crianças barulhentas, ocupando quartos, cõmodos, fazendo barulho. Ele teria ainda uns dois ou três dias para observar aquela triste figura. Amanhã sairiam juntos, ela iria ao salão pintar o cabelo, comprariam um vestido novo. Enquanto isso, ele trataria de saber a quantas ia o tratamento que ela fazia para depressão. Era triste estar naquela casa, era dia 20 e nenhum sinal de Natal naquelas paredes, nas portas. Parecia que o Grinch morava ali. Mas era sua mãe, deprimida, sem marido, longe dos filhos que mais amava. Mais uma vez, aquela situação deixava João desconfortável. Em nome de que mesmo ele tinha que estar ali? Por que ele tinha que devotar tanto cuidado a uma família em que ele era uma espécie de coadjuvante, quando muito, um convidado nada especial? Mas tinha a gratidão.

Mesmo que sua mãe ainda tivesse dificuldades de aceitá-lo como gay, mesmo que seu pai tivesse ido sem que eles pudessem se entender, sem que se desculpassem por tantos anos de agressividade, grosseria e embate, mesmo que a distância tivesse sido a melhor das opções, havia a gratidão pela vida. Viver era bom. Ele, que havia sido tão molestado por sua família, pelas crenças e costumes e religião de sua família, estava bem. Vivia bem. Gostava de viver. Sua mãe, que dedicou toda uma vida a um projeto divino, religioso de família, perecia ali, deprimida, doente e sozinha, sem marido, com filhos distantes e sem vontade de viver. João, secretamente, ao abrir um sorriso maravilhoso ao ver sua mãe na loja, num vestido branco com flores vermelhas, agradecia a si mesmo por ser livre desses males. Livre da obrigação de ter uma família neurótica que abandona os mais velhos. Ela sozinha carregava os filhos. Os filhos não conseguiam carregá-la nem por um minuto sem achá-la demasiado pesada. O futuro era incerto. Solidão é inevitável a qualquer ser humano. Mais cedo ou mais tarde, todos a encaramos de frente. João se sentia preparado, pois sempre se sentiu só, sempre dependendo daquilo que ele mesmo decidia. Então, a velhice e seus abandonos não o amedrontavam tanto. Mas aquela ali, sem-graça, sem jeito e perdida no meio de alfaias coloridas, era sua mãe. O vestido estava lindo. Era aquele mesmo. Havia ainda uma lista de compras. João já saiu dali pensando em comprar uma árvore de Natal com pisca-pisca. Vai dar certo. Ele precisava ser grato à própria mãe. Ela havia lhe dado a vida, dedicado tempo a cuidar dele, criá-lo. Nada era culpa dela. Ou dele. Na saída da loja, João abraça a sua mãezinha, sentindo aquele cheirinho dela. Cheiro de mãe, de avó, de hidratante. Tinham que ir ao salão. Agradeceu à sua mãe. Ela, perturbada, sem entender, perguntou por que. Ele disse: “Por tudo”. E seguiram abraçados rua abaixo. Talvez fosse a tão esperada hora de tomar para si esse amor, tantos anos represado, tantos anos interrompido pelo preconceito e pelas palavras duras trocadas. É Natal, isso nem sempre significa muito. Comemora-se o nascimento artificial de uma pessoa que nem sabemos de fato se um dia existiu, numa data escolhida por uma instituição religiosa. Mas é Natal também no coração das pessoas que querem se reconciliar, dar passos para o futuro e reconstruir pontes de amor e paz com aqueles mais próximos.

Talvez isso nos falte agora. Vivemos uma época em que tudo é urgente. Reconstruir um mundo, um país. Mas não nos esqueçamos de começar também essa obra dentro de nós mesmos e com os que nos rodeiam.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

CAPA: Imagem de Edyta Stawiarska por Pixabay

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