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Turbulência

Turbulências

Eu não tenho medo de avião. Pelo contrário. Gosto bastante de todo o processo que envolve voar, desde o ambiente de aeroporto até a sensação de estar suspenso no ar. Até da comida sem graça. Acho tudo divertido e emocionante. Entretanto, eu detesto turbulência. Nunca gostei, mas com o tempo fui desenvolvendo um desconforto cada vez maior. Talvez porque, como sugeriu um amigo, eu já saiba de antemão o que vem pela frente quando o avião começa a tremer, e a expectativa do desconforto acabe tornando a experiência ainda mais desagradável. O fato é que quando sinto os primeiros sinais da turbulência, eu me agarro nos braços da cadeira, fecho os olhos e tento me concentrar na minha respiração até a situação se acalmar. São sempre momentos penosos para mim.

Outro dia, eu estava pensando na nossa mudança para o México dentro de algumas (poucas) semanas e comecei a lembrar de todas as providências a serem tomadas e de todo o stress, já familiar para mim, que envolve essa operação, e me veio à cabeça a sensação desconfortável da turbulência (que, aliás, deveremos enfrentar concretamente no longo voo até nosso destino). Há momentos na vida em que a gente entra numa zona de turbulência, e não há muito o que fazer a não seguir em frente, como faz o avião, até que as coisas voltem a se estabilizar e o voo continue normalmente.

Quando eu estou de olhos fechados durante uma turbulência, tentando focar na respiração, fico sempre achando que o avião vai despencar lá de cima e se espatifar no chão ou no mar. Confesso que me apavora menos a tragédia em si do que imaginar (e, de certo modo, viver antecipadamente) a agonia de estar despencando. Como canta o Gilberto Gil, “não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer”: depois de morto, eu já estarei em outra dimensão, seja ela qual for; mas o ato de morrer acontece enquanto ainda estou vivo. E por isso me parece mais assustador.

No fundo, acho que a zona de turbulência que eu estou atravessando agora (e todas as outras que já atravessei no passado) trazem uma sensação semelhante. Na medida em que tudo parece se tornar instável e provisório, bate um medo muito forte de que as coisas nunca mais voltem a ser como eram. No caso da mudança, elas realmente não voltarão. Quando isso tudo passar, estarei em outro país, outra casa, outro trabalho. Por mais otimista que eu seja e por mais que esteja empolgado com essa perspectiva, não há como evitar o frio na barriga. Acho que talvez a pergunta que eu me faça de modo mais ou menos inconsciente é: o que de mim permanecerá nesse eu que viverá do outro lado da turbulência?

No avião, as fantasias macabras desaparecem no momento em que termina a turbulência e eu volto a desfrutar do voo como antes. Na vida, acontece o mesmo, talvez um pouco mais lentamente. Mas, depois de uns meses, uma nova rotina se instala e as coisas retomam seu curso normal. O problema mesmo é o durante. Que é o momento que estou vivendo agora.

Entretanto, enquanto escrevo eu percebo também que talvez dessa vez eu esteja lidando com essa experiência de um modo diferente do que das outras vezes. Não é que eu não esteja sentindo todo o desconforto da turbulência. Mas é como se eu estivesse ao mesmo tempo sentindo esse desconforto e o observando de fora. A ponto de conseguir falar a respeito e refletir sobre ele.

Talvez essa habilidade tenha se desenvolvido com a idade. Depois de tantas mudanças e turbulências, eu já vivi o suficiente para saber que tudo passa, mesmo que as marcas fiquem. E, como eu não tenho nem pretendo fazer tatuagens no meu corpo, de algum modo eu acolho essas marcas como tatuagens da alma, que modificam quem sou mas não me tornam irreconhecível aos meus próprios olhos.

Esses dias, eu tenho olhado todas as tralhas que venho acumulando e carregando comigo ao longo dos anos. Uma parte de mim pergunta-se se eu não poderia ser uma pessoa mais minimalista ou, pelo menos, mais seletiva, ou então no mínimo mais organizada. Mas no fundo eu sei que eu não sou essa pessoa (embora certamente pudesse melhorar um pouco no quesito organização). E, sobretudo, eu percebo que tenho um certo orgulho dessa tralha toda, pois ela conta minha história, a história das várias pessoas que fui sendo no decorrer do tempo sem nunca deixar de ser eu mesmo. Por mais que às vezes isso pese, especialmente na hora de me mudar, a verdade é que me saber cercado desses objetos, livros, discos, DVDs, me dá uma sensação de leveza muito grande, e a tranquilidade de saber que, quando passar a turbulência, vou reencontrar esse lugar seguro, mesmo que reconfigurado em outro espaço.

Claro que também ajuda ter um marido maravilhoso que aceitou ser meu companheiro nessa aventura nômade e que, embora também viva sua dose de stress, estará ao meu lado para que eu possa segurar a sua mão quando o avião começar a balançar.

O período que vivemos em Portugal e que agora se aproxima do fim foi uma fase que teve doses intensas de felicidade e turbulência, e mesmo de felicidade em meio à turbulência. Sinto que saio daqui transformado e, ao mesmo tempo, mais profundamente conectado comigo mesmo. É como se, por fatores externos e internos, uma série de obstáculos, muitos deles imaginários, tivessem sido finalmente levantados e eu conseguisse finalmente vislumbrar com mais clareza esse campo singular de possibilidades que chamo de “eu”.

Suspeito que o medo específico relacionado com a atual turbulência seja justamente o de que isso de alguma forma se perca na mudança ou se dilua ao chegar ao novo destino e ser confrontado com outra realidade. É um medo natural. Vou ter que levá-lo comigo na bagagem. Assim como levarei comigo os arquivos dos textos que tenho escrito para essa coluna (e que pretendo continuar a escrever) e que me ajudarão a me lembrar desse processo de que eles são testemunho. O que resultará dessa viagem, só saberei depois que estiver do outro lado. Prometo contar para vocês.

Por enquanto, vou fechar os olhos de novo e respirar fundo enquanto o avião dá mais uma sacolejada.

Até a próxima!

PS1 – Eu não tenho um interesse particular pela mitologia cristã, mas sempre adorei a cena do Natal. Não pelos seus aspectos divinos, mas por que põe em cena a celebração de um nascimento, da chegada de uma nova vida no mundo e do milagre espantoso e mágico que é própria possibilidade da vida. O quadro do presépio comove-me ao extremo. Nesse ano de tantas dores e tantas perdas em todo o mundo, que saibamos cultivar, para além do luto e da tristeza, o maravilhamento diante da permanente renovação da força vital que nos atravessa e nos impulsiona (eu chamo de axé, mas vocês podem chamar como quiserem). Um Feliz Natal para todos e que 2021 nos traga alegrias, sabedoria, saúde e vida, muita vida.

PS2 –  A primeira música de hoje é um tema que eu costumo muito ouvir e cantarolar em períodos de mudança e turbulência, como o que estou vivendo agora: “Na Carreira”, de e com Chico Buarque e Edu Lobo, da maravilhosa trilha do “Grande Circo Místico”. A segunda, “Não Tenho Medo da Morte”, tornou-se uma das minhas favoritas do Gilberto Gil e não me canso de divagar sobre a imensa sabedoria contida nesses versos tão felizes.

Por Paulo André Lima para sua coluna
Bons momentos e quem sabe algo mais

5 respostas

  1. Seus textos são sempre uma experiência única de deleite sensorial e intelectual. Acho interessante você confessar esse medo, essa fragilidade. Sua aparência dá outra ideia. Ao vermos você assim, um homem branco, aparentemente grande, simpático e de fala firme, parece uma pessoa sem medos. Mas que bom que você nos dá um pouquinho de seus sentimentos interiores, tão importantes, tão perfeitamente comunicados. É uma honra lê-lo. Abraços e feliz 2021.

    1. Muito obrigado, Alex. Todos temos fragilidades e vulnerabilidades, né? Acho que seja talvez o que nos aproxime mais uns dos outros. Feliz 2021!

  2. Meu amigo Paulo, tantas tralhas que levamos pela vida, em tantas mudanças de endereço carregam sentimentos, cheiros e sabores do que nos foi caro um dia e, por algum motivo, continua sendo. Turbulência me lembra caos – segundo algumas mitologias, como a Grega: Caos é a personificação da desordem que existia antes da ordem. Assim sendo, é preciso um período de caos para o estabelecimento de uma nova ordem, Já na mitologia do Império Iorubá, que existiu na África Equatorial, de onde vieram nossos Orixás do Candomblé Ketu, temos a figura de Oxaguiã – Guerreiro que guerreia com a Palavra, que traz a paz à partir do caos. Então, amigo, viva a transição da sua turbulência/caos que vai desaguar numa nova ordem e paz, em terras distantes. Salve sua transição meu lindo.

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