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Transformação

O mundo passa por muitos tipos de transformação ao longo da história. De fato, eu nunca pensei que um dia nós, esses seres humanos de hoje em dia, iríamos viver no meio de uma delas. É isso. Estamos no meio de um daqueles eventos históricos que resumem uma era. No futuro, e digo que é um futuro próximo, lerão sobre nós nos livros de história. Lembrarão de nossos erros, acertos. Lembrarão da nossa falta de consciência de nós mesmos como corpo social. Igualmente, apontarão essa doença como uma das grandes crises do capitalismo. E não importa o que terá acontecido com o planeta. Nossa era será o fim desse tempo e o início de outro.

Essa era pode ser que nem chegue para os nossos sentidos e consciências, que fique apenas na análise dos pensadores e escritores de livros. Mas acho que muita coisa já mudou. O mundo sofreu uma transformação. Nada impede que outra doença mundial se espalhe. Quantos vírus iguais a esse podem passar dos animais para o ser humano? Não sabemos. Mas sabemos que problemas existem apesar da pandemia. Isso sem contar com os já conhecidos focos de tensão entre os povos, os problemas.

Nós vivemos nesse momento, no reino da morte. De fato, a carta do Tarô que a representa, mostra um esqueleto sem um dos pés com uma foice em posição de ceifa. É uma carta que indica uma série de coisas. A decomposição do corpo da figura mostra a decadência da matéria: doenças, putrefação, fim do ciclo. A arma que amedronta, a foice, também é um instrumento de nobre trabalho. No entanto, morte representa a renovação em seu princípio. A força que sobe do que morre e é integrado à terra, ao solo que recicla tudo e faz da morte um substrato para a nova vida.

A morte, arcano XIII do Tarô. Reprodução da lâmina do Tarô de Marselha de Domínio Público.

No entanto, esse processo jamais deve ser entendido como algo bom ou “necessário”. Não há nada necessário na morte. Nós, seres humanos, nascemos para seremos parte de um projeto de eternidade.. Esse é o sentimento que nos invade, coletivamente, enquanto humanidade. Somos eternos. A humanidade é um imenso corpo em que várias células morrem o tempo todo, mas que cresce sem parar. Enquanto a humanidade, em seu caminho incerto, vai crescendo, a vida de uma dessas células singulares tem valor relativo.

Muitos seres humanos mortos serão esquecidos, mesmo que suas mortes tenham sido causadas pela pandemia de COVID-19. Os que não morreram, passaram por diversos momentos de dificuldade, perplexidade ou tragédia pessoal. Mesmo quem não pegou ou não pegar a doença pode ter a vida terrivelmente modificada por tudo o que aconteceu. E isso. Mas morte é morte. Não evitamos que muitas delas acontecessem, porque demoramos a admitir erros. Demoramos fazer o necessário. Mas a transformação acontece.

Enquanto eu escrevia esse texto, a morte do ator Paulo Gustavo, famoso comediante de teatro, TV e cinema do país, era anunciada.

Gay, casado, com filhos e um devotado à sua arte e família, ele se foi aos 42 anos. Amigos que o conheceram de perto disseram que a sua contaminação foi uma infelicidade. Com a piora da pandemia, ele, que não era pobre, se isolou na sua casa, na região serrana do Rio de Janeiro. Os bons recursos financeiros dele e de sua família permitiram que ele passasse pelo melhor tratamento que existe, ainda que não seja algo que todos possam ter.

Morte é morte. É um instante que vem para todos, gratuitamente. Não nivela. Morte não nivela, as diferenças existem antes e depois delas. Ele deve ter sofrido muito. Seu dinheiro permitiu que sua família o mantivesse vivo ao máximo, dessa forma eles puderam entender o porquê da morte dele, despedir ou manter esperanças de maneira saudável. Aos pobres, no entanto, nenhuma dessas chances. Nada. A única coisa positiva que a morte traz é transformação. Mas a um preço muito alto.

Muitos nem sequer podem dar uma última olhada nos seus, e levam caixões lacrados de corpos cheios de doença que pode se espalhar, enterrados às pressas em valas coletivas. Isso é muito brusco.

Não é justo dizer que a morte de Paulo Gustavo é merecida, pois a morte é iniludível. Atinge reis e plebeus. Não é culpa de Paulo Gustavo e de sua família que eles tenham privilégios. A culpa da morte dele e de todos os outros recai sobre nós mesmos. Porque ela recai sobre nossos erros, sobre nossos votos errados, sobre a fraqueza dos que nos governam, sobre tudo. A morte, no entanto, é inevitável. Podemos evitá-la, amenizá-la, mas quem a merece, na nossa concepção? Infelizmente nossa existência pequeno-burguesa naturaliza a morte de quem é mais necessitado, enquanto o drama da passagem de uma pessoa popular, famosa nos atinge como uma bala no peito.

Mas não condenemos quem chora a perda de um ídolo, ou de alguém muito famoso. Precisamos sentir essas dores, elas nos fazem mais fortes. Com nossos ídolos, vivem e morrem nossos sentimentos mais nobres. O texto “Órfãos de um ídolo”, de Daniela Houck, publicado aqui, na sua coluna, mostra isso de maneira magistral. Os nossos ídolos são uma extensão de nós mesmos, de nossos sonhos e da nossa visão como um povo.

Precisamos superar esse reinado da morte, para que possamos ter a ideia de que a vida segue seu curso natural. Há muito que podemos fazer: nos cuidar, cuidar de quem amamos e descobrir que somos um grande organismo doente que precisa se curar. Para isso acontecer, precisamos todos nos responsabilizar por isso. Esse vai ser o melhor modo pelo qual a morte trará transformação ao mundo.

Imagem da capa por Milos Duskic por Pixabay

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

2 respostas

  1. Adorei seu texto e lisonjeada pela menção. Realmente precisamos nos responsabilizar e nos conscientizar. Parece que consciência faz parte de um grupo bem restrito. Falta cognição, respeito, amor e humanidade. Sejamos nós parte atuante dessa transformação. Beijo

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