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Solidões à Paulistana

solidão

“Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi,
e tenho algum tempo para observá-la,
eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la.
E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela,
nunca termina pela sua própria autoacusação:
ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdoo.
Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente,
e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo”.

Clarice Lispector, in Felicidade Clandestina.

Num entardecer de um outono dourado, caminho pelas calçadas de pedras portuguesas do centro velho e decadente de São Paulo, onde me pego admirando a obra de Mirthes Bernardes e, ao mesmo tempo, silenciando-me diante dos olhos da solidão das pessoas que fitam meus pensamentos. Naquele passear incerto e livre, não consigo negar a presença destas pessoas em mim, pois afinal, todos são a extensão de nós mesmos.

Na Avenida Ipiranga, passo por um ponto de ônibus, onde uma mulher de vestido azul, com sapatos de salto alto de cor salmão e cabelos presos por uma presilha dourada, olha atenta para o chão sujo, equilibrando-se entre pensamentos e sacolas, pois mulheres e sacolas, são uma dupla inseparável, principalmente se esta mulher for mãe. Uma mãe, nunca anda sem uma sacola. Mas, voltando a nossa mulher do ponto, passo meus olhos em trânsito e percebo uma solidão presente na espera do seu ônibus, que deve levá-la, juntamente com a sua solidão, ao seu lar. Um lugar, que apesar de lar, poderá abrigar ou não a sua solidão à tira colo. 

Deixo a mulher do ponto para traz, e sigo meu caminho incerto pela Avenida São Luiz, com seus prédios antigos de moradores solitários. Nas calçadas daquela avenida, que tem a ilusão dos arranha-céus aos seus pés, vou passando por pais, mães, avós e filhos,  que tem a rua como residência fixa, pois as ruas paulistanas, fixa pessoas em suas solidões petrificadas pelo abandono do Estado e da rica sociedade paulistana.

Mais adiante, virando à esquerda, adentro na Praça Dom José Gaspar, que abriga num dos seus cantos, a velha biblioteca Mário de Andrade. Mario de Andrade, ilustre filho que descreveu muito bem em seus escritos, a nossa antropofágica Pauliceia Desvariada. A metrópole que alucinadamente, cria um novo, engolindo o velho e, que em breve, também engolirá esse novo velho-novo, num eterno criar/matar/criar de sons, sabores, vidas e solidões. A praça, outrora fez pausa e sombra para a intelectualidade de um grande “Dom Quixote” francês – Jean-Paul Sartre e de sua fiel “Sancho Pança”, Simone de Beauvoir, hoje abriga nem tantas intelectualidades assim, mas muitas pessoas em busca do Wi-Fi público. Como profetizou o eterno poeta Castro Alves, a “praça é do povo”, tanto do povo livre, quanto do povo preso à solidão remota e mediada por um aparelho de celular.

Me despedindo da Praça, sigo em direção à Rua Dr. Bráulio Gomes, onde passo por um antigo orelhão, que me remeteu há outras estórias de tantos tempos passados. Aquele canto da praça com seu orelhão comunitário, foram nas décadas dos anos de 1980 e 1990, uma das bases da prostituição masculina,  sendo um dos primeiros serviços de delivery do mercado sexual da região central de São Paulo. Aquela prostituição de outrora, deu lugar a escuridão gerada pela pouca luz pública na via, que nas noites silenciosas, gera um certo risco para quem passa por ali. Muitas estórias que vão ficando pelo caminho da velha cidade, mas vou seguindo em direção à rua do antigo Mappin.

Virando a esquina da Praça, entro na Rua Coronel Xavier de Toledo e já me pego tensionando meu olhar para uma família formada por uma mulher gravida, um bebê adormecendo seu soninho num carrinho e um pai, que alternava sua existência naquele momento, entre a venda de balas no semáforo e o olhar atento em sua mulher e filho. Eu percebi o olhar da mãe para sua prole e o seu real herói, que graças a sua expertise e ousadia, evitava de ser atropelado pelas motos, quando estava garantindo o sustento da família. Aquela mãe, gravida sentada num canto de uma loja fechada pela pandemia da Covid-19, estava também se equilibrando entre a sua solidão, a desesperança e o futuro da sua nova prole. Penso que, apesar desta família ter seus membros para se apoiar, à solidão deveria ser presente, pois as pessoas que passaram por ela, na sua maioria, estavam indo para seus lares e, eles continuavam a ficar na solidão daquela e na esquina da velha cidade. E deixando eles naquele canto, vou seguindo e pensando com meus cabelos psicológicos, na solidão, medo, frio, fome, abandono e desconforto das pessoas que tem o chão duro como cama.

A dureza do chão do caminho público, acaba deixado os corpos e as almas das pessoas mais desencantadas com os encantos que um dia Deus falou que a vida tem.  

O Deus que cito nestas linhas, deve ser aquele Deus, que um homem tanto citava em seus gritos e súplicas, em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, na Praça Ramos de Azevedo, que fica ao final da Rua Cel. Xavier de Toledo. Eu penso que aquele homem santo, devia achar que Deus tem problemas de audição, porque é a única justificativa para ele pregar a palavra do Senhor em alto e desafinado som vocal. Uma pregação solitária, por vezes, acompanhada por gente sensível à fé daquele homem. Um homem de fé na solidão de seu credo particular e fugaz. Um cidadão que precisa criar uma persona para ser escutado por Deus, porque sabe que no fundo da sua alma, sua pequenez existencial, não lhe confere predicados para ser digno do Senhor e, por isso, investe na sua performance religiosa solitária com vistas a garantir um lugar no paraíso neopentecostal, quando dali ele se for.

Me despeço do nosso pastor solitário e sigo em direção à Rua 25 de Março, adentrando no agito da via que dá acesso a Galeria do Rock, com suas mulheres oferecendo suas competências para trançar cabelos; garotos com araras vendendo roupas de grife de marcas famosas, porém a sua originalidade é duvidosa; camelôs se espremendo para vender filmes, discos e perfumes piratas; além, dos carrinhos de deliciosos milhos, pamonhas e curaus de procedência duvidosa. Cada pessoa na sua correria, como diz os manos e as minas da cidade. Cada qual, se mantendo atento ao que se passa e ao que se vive, naquele coletivo de solidões intercaladas com os jogos de sedução necessários para vender os seus produtos.

Adentro na Galeria do Rock, me dirigindo ao subsolo, que outrora era um canto de produtores e valorizadores da estética afro-brasileira paulistana, que eram dignificados pelos salões de beleza, lojas de discos de Black Music, costureiras e restaurantes, com uma comida ancestral regada a uma boa cerveja geladíssima. Mas, toda esta constelação de resistência sucumbiu ao mercado e a transformação da galeria em ponto turístico nacional e internacional, pressionado o seu povo originário para outras galerias periféricas, num movimento semelhante, aquele que empurrou a população afro-brasileira paulistana dos bairros centrais como a Liberdade, Barra Funda e a Bela Vista, para as franjas da cidade. Mas, sigo pela galeria e num momento me deparo com um velho senhor, sentado numa mesinha de bar, olhando o horizonte perdido daquele lugar movimentado, numa solidão, que merece uma cerveja e um samba de Agepê para acompanhar, pois é viva a sua lembrança dos tempos em que frequentava o lugar em busca dos discos de Tim Maia, James Brown e Cassiano, após receber seu pagamento de funcionário da CMTC (Companhia Municipal de Transporte Coletivo). A caminho da saída, que dá acesso à Avenida São João, dou boa noite para meu elegante senhor, porque é hora de continuar seguindo  na minha pesca de sentimentos, afetos e poesias jogadas ao meu mar pelas pessoas que vou encontrando pelas ruas da minha bela cidade.     

Atravesso a Avenida São João e piso com todo respeito no Largo do Paissandu, lugar sagrado que abriga a Igreja de Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos de 1725, que tem ao seu lado, o monumento da Mãe Preta de 1955, de autoria de Júlio Guerra. O largo do Paissandu sempre ofereceu abrigo a solidões externas e solidões internas. Penso que as solidões externas, são aquelas vividas pelas pessoas que descansam ou se desesperaram nos seus bancos; solidões da eterna espera pelo ônibus que vai pra zona norte da cidade; solidões dos comerciantes de celulares roubados; solidões dos moradores que residem nos jardins da sua praça; e, solidões que rezam aos pés da Mãe Preta, depositando flores e esperanças num porvir melhor para si e os seus.  Penso que as outras solidões, aquelas que denomino internas, dizem respeito as solidões daqueles que adentram a histórica Igreja de Nossa Senhora, para descansar; solidões que auscultam a voz de Deus e dos seus santos; solidões que assistem a missa, rezada pelo padre, que sempre tem uma palavra de esperança e consolo; solidões dos jornais lidos em busca de emprego; solidões do descanso, após o almoço, antes de voltar para os escritórios aprisionados naqueles prédios cinzas e pixados. Enfim, a praça é do povo e de suas solidões.

Naquele final de dia, me abriguei nas escadarias da Igreja do Largo do Paissandu e poetizei: “A solidão do povo paulistano é única e intrasferível, pois a cidade assim o mantem unido em sua concretude poética”.  

4 respostas

  1. Maravilhoso como sempre esse escritor!! Lembrei de quando vivia na Paulicéia Desvairada…. Não era difícil viver e perceber a solidão em meio a multidão!
    Parabéns Jean! 👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾

  2. Nossa fiz uma viagem pelo centro antigo de São Paulo, neste texto vejo pessoas de todas as tribos, em seus mundos solitários, cada um voltado aos seus afazeres e todos passam despercebidos, pela imensidão da cidade que engole a todos.

  3. Jean, que maravilha de texto! Vc é surreal! Uma pessoa iluminada!!! Espero nos ver em outras oportunidades. Beijos no seu coração. Como dizia Vando em uma música. Você é raio, estrela e luar!🤩😘😘

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