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Sobe, Calvo! Morte a quem atravessa o caminho de Israel

Em tempos de guerra no Oriente Próximo, é interessante pensarmos como surgiu o Estado de Israel. Para isso, eu resolvi revisitar o Livro dos Reis do Antigo Testamento Judaico, valendo-me de traduções em língua portuguesa do texto.

Pensar por que há hoje em dia um estado judaico na Palestina é retornar a uma antiga história de conquistas, guerras, morte, sangue, porque o deus de Israel nunca foi pacífico, nunca foi de amor ou paz, ao contrário. Hoje eu quero contar a história de Elias e Eliseu. Pode ser que eu escreva outros textos sobre isso.

A bíblia diz assim:

Um fato sobre o profeta Eliseu sempre me faz pensar no quanto o deus da Bíblia pode ser cruel e carniceiro. Ei-lo:

“Então, subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns rapazes pequenos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo, sobe, calvo! E, virando-se ele para trás, os viu e os amaldiçoou no nome do SENHOR; então, duas ursas saíram do bosque e despedaçaram quarenta e dois daqueles pequenos” (Segundo livro dos Reis, capítulo dois, versículos vinte e três e vinte e quatro).

O “ele” desse texto é o profeta Eliseu. Seu ministério profético foi marcado por um sem-número de ações miraculosas, sendo superiores às do profeta Elias, seu antecessor, cuja obra menor teve um maior impacto político e social, ao desmascarar a fé dos profetas de Baal, destronando um reine uma rainha amaldiçoados por Iavé

Arqueologia da violência

Nessa época, o povo de deus estava dividido em dois reinos: Judá e Israel. O primeiro com sede em Jerusalém e o segundo com sede em Samaria, ao norte. Essa divisão criou uma cisão cultural e religiosa, sendo a principal origem do termo “judaísmo” e da designação “judeu” para os israelenses, mesmo que, originalmente, judeus e isralenses fossem da mesma etnia, mas politicamente distintos.

Isso tudo aconteceu após a morte do lendário e sábio Rei Salomão. Um dos israelitas adversários do monarca, Jeroboão, exilado no Egito, voltou para casa quando o rei falecera. Pediu asilo ao herdeiro do trono, Roboão, que negou apoio político ao adversário do pai.

Assim, Jeroboão chamou para si, dez das doze tribos de Israel e fundaram um novo reino. Até a decadência total do povo israelita, eles existiram em dois reinos: Judá e Israel, cujas capitais eram Jerusalém e Samaria. A divisão dos reinos em dois também fez nascer diferenças culturais e históricas insuperáveis.

Bons e maus: o ponto de vista do judeu

A exemplo disso, uma das parábolas mais marcantes do Novo Testamento fala sobre o bom samaritano. Os samaritanos representam os israelitas que seguiram Jeroboão e negaram a linhagem do Rei Davi, portanto eram amaldiçoados e malvistos. Jesus, com seu discurso evangélico de conciliação entre inimigos, quis mostrar que até mesmo um samaritano maldito era melhor que os judeus de seu tempo.

Isso tudo começa em Jeroboão que se torna um rei, péssimo, diga-se, tão ruim que deus o almaldiçoa e sua dinastia não vinga. Vários conquistadores internos e arrivistas foram tomando o poder numa sequência vertiginosa de golpes de estado. A cidade de Samaria foi construída antes de Eliseu nascer. Ele é contemporâneo da formação desse estado israelita e foi um profeta que tentou combater a pluralidade religiosa e a idolatria dos reis.

A relação com outros deuses e crenças da época

Assim como muitos reis de Judá, os reis de Israel sediados em Samaria permitiam uma liberdade religiosa muito grande e deram espaço para que a religião cananeia e fenícia dominasse. O rei contemporâneo de Eliseu, Acabe, era casado com uma fenícia, Jezabel, que adorava a Baal e estabeleceu, com o apoio do marido, que era israelita, um estado religioso baseado nessa crença.

Representações de Baal, disponíveis no site: https://ohistoriante.com.br/baal.htm, Clique na imagem para acessar um texto explicativo.

A mão que mata é a mesma que abençoa

Contra esse estado de adoradores de Baal é que se levantou o poderoso profeta Elias, que se rebela contra o ambicioso e malvado Acabe e sua esposa baalim. Perseguido e desafiado pelo poder estatal, Elias sobrevive no deserto miraculosamente e retorna para desmoralizar os profetas de Baal, invocando Iavé para que mande fogo dos céus para consumir um holocausto, algo que Baal não conseguira fazer, nem com quatrocentos e cinquenta profetas se automutilando.

Elias, profeta ou assassino em série?

Após isso, Elias pede a Iavé que mande chuva para aplacar uma severa seca que durava meses. Depois de trazer fogo e água, Elias massacra os profetas, comandando uma milícia armada de israelitas fiéis a Iavé. A sanha assassina de Elias só se compara a de psicopatas com poder ditatorial nas mãos. Depois de assasinar quatrocentos e cinquenta religiosos, ele ainda mata com fogo dos céus outros cem militares, enviados contra ele pelo rei Acazias.

Nessa ocasião, Iavé manda Elias inteceptar mensageiros que iriam a essa cidade consultar consultar Baal Zebube, deus de Ecrom. O rei padecia de um severo mal-estar após uma queda. Como Elias tentou impedir que Acazias consultasse outro deus, Acazias tentou matá-lo, ousadia pela qual o rei infiel pagou com a vida. Após esses e outros fatos miraculosos, Elias é arrebatado vivo aos céus, para ir morar com seu deus, deixando Eliseu no seu lugar.

Porque assassinato também se aprende com quem ama a deus

Eliseu desenvove um ministério ainda mais forte do que o de Elias: faz vários milagres, um após o outro, mas continuando o trabalho de Elias, era igualmente intolerante com a crença alheia e não aceitava ser questionado como autoridade religiosa. No segundo livro dos Reis, é narrada a ida de Elias aos céus num redemoinho, junto a um carro de fogo. Logo após, Eliseu começa seu ministério tornando as águas de Jericó potáveis, mas ao mesmo tempo, assassinando  crianças que o chamaram de calvo, no caminho de Betel.

O profeta, as crianças e as ursas do bosque

Quando percebeu que os meninos o xingavam, Eliseu os amaldiçoou e duas ursas saíram do bosque e mataram quarenta e duas delas. Imagino a carnificina: duas ursas raivosas destroçando quarenta e duas crianças. Em que ocasião tantos infantes estão juntos em um ato aparentemente de delinquência juvenil? Peguei-me pensando nisso e tentando entender em que condições eles existiam, naquela época.

Ilustração disponível em https://images.uncyc.org/pt/1/1c/Criancas-urso-biblia.jpg. Clique na imagem para acessar o arquivo online.

Em que época da história da humanidade chacinar 42 crianças foi normal e um ato de fé em deus?

Talvez essas crianças estivessem desabrigadas, andando em bando, fugindo das constantes guerras, secas e fome, por terem perdido seus progenitores em batalhas ou em doenças. Talvez trabalhassem à beira do caminho, oferecendo seu serviço a passantes, talvez os roubassem, para conseguir dinheiro para sobreviver. Nada no texto diz que alguém lamentou a sua perda. Que vila, fazenda ou cidade não daria falta de quarenta e dois meninos? As ursas os despedaçaram, provavelmente não comeram suas carnes, então eles, eventualmente, foram encontradas à beira do caminho.

Como o texto diz que quarenta e duas dentre elas pereceram pelas ursas, outras podem ter sobrevivido e contado aos mais velhos em Betel, no entanto, não há registros posteriores que alguém tenha reagido a esse ato extremo. A terra estava em guerra e. logo em seguida, as cidades-estado e o reino samaritano se envolveram num conflito grande, que levou ao cerco da cidade. Eliseu continou seu ministério profético, abençoando a uns, almadiçoando a todos, com as mãos sujas do sangue de quarenta e dois inocentes.

Deus e Eliseu: serial killers e arautos da violência

A chacina que Eliseu promoveu é ainda mais dramática do que outras tantas que vemos e ouvimos falar nas últimas décadas em grandes cidades do Brasil contemporâneo. Eliseu, como Elias, é um psicopata, sedento por sangue. Em nome do Senhor dos Exércitos, os dois provocaram muitas mortes, interferiram na política de Israel e Judá de modo a criar e manter conflitos armados. É claro que não podemos interpretar tanto as coisas assim, com parâmetros atuais de consciência e realidade. Crianças só se tornaram sujeitos de direitos após o século XVIII, de fato.

Que justiça é essa?

Antes disso, talvez fosse melhor pensar que Iavé tenha matado seres que ainda não tinham consciência. No entanto, teólogos por todo o mundo cristão se torcem e retorcem para explicar esses e outros fatos bíblicos do Antigo e Novo Testamento. Há a famosa teoria do vaso e do oleiro:

Deus é o oleiro e o ser humano é um vaso em suas mãos, se ele quiser ele molda, quebra, faz de novo, dispõe do vaso como quiser, para honra ou desonra. Isso mostra uma característica de do deus dos cristãos e israelitas que muitos preferem ignorar: ele é amoral, acima do bem e do mal e não vai hesitar em usar o mal para seus propósitos.

Outros teólogos ainda revelam um conceito de justiça adequado à época. As crianças, como eu sugeri anteriormente, deveriam fazer parte de um bando de delinquentes e ameaçavam a vida do profeta, tentando assaltá-lo ou ainda tentando atentar contra a sua vida. Numa época em que a lei de Talião fosse a mais justa de todas, seria “normal” que o deus da justiça mandasse matar quarenta e duas crianças delinquentes.

De contradição em contradição, faz-se um judeu, faz-se um cristão

Mas o “NÃO MATARÁS” não era um mandamento do próprio deus? Pois então. Eu imagino que o caráter de Iavé fosse exatamente o de um príncipe absolutista, com o poder de fazer morrer e deixar viver. Na verdade, esse poder “divino” que muitos monarcas europeus tinham ao longo dos séculos anteriores, parecia ser inspirado no próprio deus judaico. Mas na verdade, sabemos que o deus judaico é que absorveu as qualidades de um monarca absolutista, para que pudesse ser o centro de toda a verdade e justiça, sedimentando em si todo o poder, sobre todas as coisas e seres e ter usos políticos de si. Isso, na Judeia após o exílio. Ou ainda na Europa do século XVI ao XXI

Esse deus sempre foi mau, carniceiro?

O deus judaico da Cabala, no entanto, é diferente, pois trata-se de um princípio eterno, do qual emanam todos os seres. O deus da Cabala é uma imensidade de onde todos vêm e para onde todos vão. Não se trata de um maníaco homicida, dono de um pequeno país no Oriente Médio. Nem mesmo de uma princesa Turandot, ameaçando de morte toda uma Pequim em polvorosa atrás do nome do Príncipe Calaf. Na Cabala, o deus que integra tudo e todos, criou o mundo material para que nos reintegremos a ele, depois de entendermos nossas limitações e nos livrarmos delas.

O inferno é aqui

Um dia, no passado antes do universo surgir, fomos rebeldes contra esse deus, saímos de seu seio e cometemos a perversão de escolher desobedecê-lo, mas ainda éramos espíritos emanados, sem corpo físico. Pervertemo-nos a ponto de precisarmos nos recuperar antes de voltarmos ao seio do Criador. Como ele é criativo e dele só saem coisas positivas, ele dispôs para nós uma existência material para que, por meio de um ciclo de encarnações, pudéssemos voltar ao seio de sua imensidade divina.

Não é um deus que julga, que participa, que toma partido, o deus da Cabala apenas pede que se cumpra o que ele imaginou e criou. Morte e vida no plano material não são importantes. Por um lado, nem a vida de Eliseu, nem a vida de qualquer uma das quarenta e duas crianças assassinada spor causa dele de fato importam.

Iavé: a face má de um deus que era para ser bom

Essas vidas são estágios de uma caminhada de volta ao divino. Não há evolução, não há melhora, não há nada a não ser o aprisionamento de consciências espirituais com centelhas divinas em si. E essas consciências, quer elas saibam ou não, estão cumprindo um período de quarentena no mundo material. Isso tudo acaba no fim de tudo.

Não é por acaso que o número de vítimas das ursas de Eliseu, quarenta e duas, corresponde a um número positivo na Cabala. É o número do ajustamento material e espiritual que deveria acontecer ali. Mas para além de minha hermenêutica fajuta, a vida do profeta e seus fatos mostram o quanto a violência era uma moeda comum de troca de significados. Morrer era banal  na antiguidade, a vida valia pouco na mão de reis e deuses que faziam morrer ou deixavam viver aqueles que escapacam de guerras, pestilências e desastres naturais.

Milênios depois da chacina do caminho de Betel… Ainda matam em nome de deus?

Talvez sim. Mas não no caso da guerra entre o Hamais e o atual Israel. Voltando à realidade atual: uma guerra acontece entre judeus e palestinos agora, não é uma guerra religiosa, exatamente, mas por territórios. Os judeus invasores enfrentam um grupo armado que é chamado de terrorista. Embora qualquer país europeu tenha o direito de matar para defender o seu terriório, os palestinos são chamados de terroristas se isso acontece.

Os samaritanos já foram extintos há muito tempo, pelo que me consta. O estado judaico israelita, depois do exílio na Mesopotâmia, voltou a existir e sobreviveu até sua total destruição pelo Império Romano em 70 d. C. por Vespasiano e novamente em 135 d. C. por Adriano, imperadores da época.

Israel: uma invenção para acalmar a consciência do norte capitalista

A restauração de um estado israelita judaico em 1946, após um forte movimento sionista de “retorno” dos judeus para uma “Terra Prometida” por lendas bíblicas aconteceu não por benesse do deus israelita psicopata do passado. Acontece por obra e graça dos Estados Unidos da América, da Inglaterra e apoio das Nações Unidas, após o Império Otomano perder o controle sobre a Palestina. O antissemitismo europeu, sentimento antigo cultivado por cristãos, ajudou muito nisso. Os países que queriam se ver livre de judeus acabaram apoiando a criação desse novo estado.

No entanto, Israel não tem tem ligações com o reino de Samaria. Não tem ligação com o reino de Judá, do qual saiu Cristo, cujo povo supostamente guardou a tradição judaica que foi dispersada pelo mundo. Judeus eram odiados no mundo inteiro onde havia cristãos. Eram odiados por gregos não cristãos por suas dietas, doutrinas e costumes que os separavam dos estrangeiros.

Moral judaico-cristã: os que creem diferente são piores e merecem morrer

O judaísmo moderno, no entanto, é uma religião como o cristianismo ou o islamismo: tem seus níveis de diálogo com um mundo em que o conhecimento científico pode dispensar a ideia de um deus primordial. Olhando do ponto de vista da moralidade sexual, do uso do corpo e as noções de cidadania, as religiões são muito parecidas. Essa semelhança, de certa forma, pode ser estendida ao islamismo.

Genealogia do poder: da crença ao controle do corpo com fins sociais

O controle do corpo, a relação estreita entre a noção de pecado, anormalidade, doença e crime também é comum nesses universos culturais. Quando nos referimos à moral dos colonizadores europeus, dizemo-na “moral judaico-cristã ocidental”. Onde ela impera, a noção de cidadania está muito ligada a noção de justificação pela fé. E na cabeça de um cristão ou judeu que acha que seu deus é o ápice da justiça, é normal matar por motivos religiosos. É justo. Veja a opinião de um articulista para a coluna gospel de um jornal online pouco conhecido aqui.

O texto, embora anônimo é revelador: cai em todas as armadilhas de interpretação, inclusive usa alguns dos argumentos viciados que eu reproduzo no meu texto, principalmente o de interpretar como justo o assassinato em nome de deus. A vida do profeta vale mais, porque ele é um crente. Assim como vale mais a vida de um judeu. A vida do palestino pode ser descartada. Cristãos passram a vida inteira matando aqueles que acreditavam em algo diferente. Africanos foram escravizados por europeus, na Idade Moderna, a partir dessa premissa de quem vale mais aos olhos de um pai divino.

Ufa, já vai acabar… O texto… As guerras continuam.

Enfim, é necessário parar por aqui e deixar que pensemos a realidade. A normalidade vinda da religião não será superada enquanto houver religiosos legislando, governando. Assim também é a ciência, enquanto ela fechar os olhos para a cultura tradicional como se fosse necessário mantê-la, haverá constantes ataques da religião à verdade. A religião, qualquer que seja, é uma víbora venenosa e faminta. Depois de protegida por governos e até mesmo pela ciência, ela volta picando a mão de quem a encobriu.

Detrás de golpes, de guerras, de ataques à democracia e mesmo de atentados diversos à vida, existe a religião. O cristianismo, oriundo do judaísmo, é uma crença que autoriza de estupro de crianças à exploração econômica de mais pobres pela televisão ou internet. O que mais precisamos ver, ouvir, testemunhar para nos levantarmos contra esses abusos?

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Foto de capa: Feature image via Wiki Commons. Disponível em: https://www.themeateater.com/hunt/grizzly-bear/bar-room-banter-the-bibles-grizzly-bear-attack

 

 

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