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Ser, sem vergonha

Quebra-cabeças formando a palavra shameless

Sem-vergonha não é a mesma coisa que sem vergonha. A primeira expressão é uma palavra composta. Significa “sem brio, sem valores morais”. Já a segunda expressão pode ter uma conotação de ousadia, de coragem. É sobre isso que eu quero falar: a coragem de ser quem se é de verdade, algo que, às vezes, falta nas pessoas mais improváveis.

Eu me resolvi quanto a isso depois dos vinte e cinco anos. Eu passei toda a adolescência numa espécie de covardia necessária. Eu morava no interior. Recaíam sobre mim suspeitas sobre a minha sexualidade. Isso era problemático, porque me excluía do convívio de certas pessoas, porque havia a possibilidade de eu jamais constituir uma família. Isso também me frustrava. Eu era cristão e mantinha em mim o desejo de conhecer uma pessoa, casar-me e ter filhos, ser uma pessoa feliz e completa. Naquela época, para mim, essa completitude só aconteceria se eu fosse heterossexual e cumprisse o papel biológico da paternidade.

Imagem de StockSnap por Pixabay

Mas, ao mesmo tempo em que eu desejava essas coisas, eu fazia um esforço de certa forma consciente de sabotar esse suposto futuro. Nunca tive instinto paternal, nunca quis filhos. Ao mesmo tempo em que jamais me permiti me aproximar de uma garota e ter qualquer tipo de relação afetiva para além da amizade superficial. Por não ter afetividade por mulheres, eu conseguia me manter longe de qualquer forma de convívio social que pudesse sugerir essa proximidade. E por não conseguir contato afetivo de qualidade com homens como eu, eu me via acuado e, muitas vezes, alienado em práticas religiosas para tentar me distrair dessa urgência: sem quem eu sou, sem vergonha de ser.

Eu só consegui essa tarefa ali, aos vinte e cinco anos, por causa de algo muito importante. Eu dei uma pausa na minha fé cristã. Filho da pais católicos, eu frequentei o catecismo e gostava de rezar o terço, estava me preparando para a crisma, quando abandonei o catolicismo e me engajei no protestantismo calvinista da Igreja Presbiteriana. Três anos depois, um surto de bipolaridade (transtorno afetivo que eu não sabia ainda que tinha) me indispôs com as pessoas da igreja. Eu fui parar numa Assembleia de Deus, uma igreja pentecostal, sob a influência de amigos. Fazia terapia e tratamento com remédios de forma equivocada, até que dois anos após isso um surto maior ainda me tirou do ar. Precisei ser internado e logo melhorei, passei a fazer um tratamento correto, adequado para meu tipo de transtorno. Aos vinte e um anos de idade, comecei uma tarefa que a juventude me permitiu fazer bem: reorganizar minha vida. A primeira coisa que eu fiz foi abandonar aquela igreja. Voltei para a igreja em que eu congregava no passado, reencontrei o presbiterianismo. Terminei minha faculdade, arrumei emprego. Depois fiz um concurso público para professor, algo que eu desejava muito e consegui meu emprego e meu sonho de ser professor.

Então, eu comecei a repensar as coisas do jeito certo. A primeira coisa que eu fiz for ter a coragem de ser quem eu era, pelo menos para mim mesmo. Desde o fim da minha adolescência, eu havia perdido a vergonha de entrar em contato com pessoas do mesmo sexo que eu. Então eu não era nem virgem, nem inexperiente depois dos vinte. Mas nunca havia namorado. Todos meus contatos com outros rapazes eram furtivos, em segredo. Ninguém queria que todos soubessem, eu vivia numa cidade interiorana do Estado de Goiás. Nesse lugar, homossexualidade não era vista com bons olhos, nem tolerada. E isso não foi há muito tempo. Mas há vinte anos. Como eu já me conhecia, comecei a lidar com o conflito interno, essa dupla identidade: homossexual se passando por falso heterossexual.

Muita coisa estava em jogo: minha vida pública como docente. Minha credibilidade como cidadão. Mas havia a curiosidade alheia, um fator que enchia a minha vida de problemas: muita gente queria saber. “Será que ele é?” Como o Zezé que não tinha paz de usar a sua cabeleira em paz, eu também não conseguia ficar quieto na minha vida. Propostas de namoro de garotas, longos interrogatórios de amigos e familiares. Ninguém parecia estar interessado em me auxiliar em algo, mas em perturbar, intrometer-se. Aos 25, depois de estar cem por cento certo de quem eu era e do que eu queria, busquei ajuda na pessoa que achei ser a mais próxima de mim. O pastor da Igreja.

Nunca me esqueço dele. Seu nome é incomum. Reverendo Uberlândio Fonseca. Um amor de pessoa. Conversamos por mais de uma hora sobre tudo isso. Ele foi de uma sinceridade dura, mas necessária naquele momento, sem deixar de ser amoroso. Talvez por causa de sua coragem da verdade, eu pude continuar minha vida em paz. Ele simplesmente disse que não havia “solução” bíblica, religiosa ou cura para a homossexualidade. “Deus” havia me feito desse modo. Eu precisava me aceitar como era. E ele pediu que eu não deixasse a igreja. Mas foi muito categórico em dizer que a opinião da instituição sobre a homossexualidade não muda. Eu não seria bem-vindo caso resolvesse ter relações sexuais ou namorar outro rapaz. Mas eu poderia estar ali, em castidade, se essa fosse a minha escolha.

Mas não era. Agradeci suas palavras, apesar de não concordar com elas. Mas agradeci porque ele também não me enganou. Ele abriu uma porta para eu sair daquilo de consciência limpa. O problema não era eu, mas a instituição que não me aceitava. Amém. Não mais voltei, ninguém nunca mais me incomodou. Eu tive a imensa coragem de ser quem eu era, pude dar um passo importante em me abrir para o amor, a afeição, para uma vida emocional o mais saudável o possível. Meses após essa decisão, eu conheci um rapaz e começamos um relacionamento estável que durou mais de uma década. Mas isso é história para depois.

Acho que o importante aqui é termos a coragem de ser quem somos. E sermos sem vergonha de sermos. Precisamos também contar com pessoas na nossa caminhada, que possam nos ajudar a abrir portas, encontrar saídas. Nada na minha vida teria acontecido se o Reverendo Uberlândio tivesse mentido para mim, tivesse feito um teatro de oração e cura, ou se ele tivesse me prometido algo que um Deus, no qual eu não acredito mais, pudesse vir a me dar.

Acho que se você que me lê agora precisa tomar decisões parecidas com essa que eu tomei há quinze anos, a primeira coisa que eu sugeriria é dar uma pausa na sua fé, caso tenha uma. Não importa que deus, que espírito, entidade, ser iluminado em que acredite. Silencie esse discurso externo que tenta te definir a partir de um conhecimento mítico. Ouça a si mesmo ou mesma.

Já que silenciou, recomendo jamais voltar para isso. Mas caso queira voltar, nunca mais deixe de se ouvir. Não se engane com explicações religiosas sobre a homossexualidade ou qualquer forma de diversidade sexual. Não deixe nenhum discurso religioso caracterizar você como um ser defeituoso ou fora da curva da normalidade.

E tenha coragem. A coragem que só os que vivem sem vergonha de viver têm.

Imagem da capa de Wokandapix por Pixabay

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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