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Semeador

No final de dezembro, li um romance muito interessante, “Shadow is a Colour (as light is)”, de Michael Langan, um escritor inglês que conheci num curso sobre literatura queer. O livro desenvolve várias tramas paralelas e interrelacionadas pelo vínculo que alguns personagens têm com a obra do pintor Paul Cézanne, que também aparece como personagem em alguns capítulos do romance. As referências aos quadros de Cézanne fizeram-me naturalmente buscar imagens das obras mencionadas na Internet. Mas, mais do que isso, a importância que essas pinturas desempenham na construção do livro levaram-me a pensar na minha própria relação com algumas obras e artistas que me marcaram e me acompanham até hoje.

Dentre estes artistas, Vincent Van Gogh é certamente um dos mais importantes. E, dentre os quadros de Van Gogh que deixaram uma impressão profunda sobre mim, sobressai-se um especificamente: “O Semeador”. A cena retratada na obra ganhou várias versões nas telas de Van Gogh, mas eu gosto especialmente desta que ilustra a coluna de hoje. Tenho inclusive uma reprodução deste quadro, comprada há muitos anos em alguma loja de museu e que hoje está devidamente embalada e encaixotada junto com o resto da nossa mudança, aguardando num depósito o momento de ser embarcada para o México.

Não tenho conhecimento suficiente de artes plásticas para analisar os elementos propriamente pictóricos do quadro. Sei apenas que é uma imagem que nunca canso de contemplar e de admirar: um homem jogando sementes num campo. Não sei o que exatamente ele está semeando. É o gesto da semeadura em si que me comove.

Já me aconteceu várias vezes de ficar sabendo, normalmente de modo casual, que algo que eu fiz, disse ou escrevi anos atrás teve um impacto em alguém e contribuiu de alguma forma para a vida daquela pessoa. Sempre fico ao mesmo tempo feliz e surpreso com isso.

Por outro lado, acontece também de eu dedicar tempo e energia a alguma coisa ou alguma pessoa, até perceber, em algum momento, que aquilo não vai dar em nada. Aquela semente nunca vai germinar, por motivos que fogem ao meu controle.

No fundo, creio que esse é o sentido mais profundo do quadro do Van Gogh para mim. A gente passa a vida lançando sementes no mundo e nunca pode saber de antemão o que vai vingar ou não. Mas isso não invalida a beleza do ato de semear nem o prazer que ele pode proporcionar.

É como aquela conversa de que o que importa é a caminhada, não o ponto de chegada. Dito assim, parece um clichê, e é. Mas quem disse que os clichês também não carregam verdades?

O fato é que vivemos muito mergulhados numa “cultura de resultados” e estamos cada vez mais viciados naquilo que nos traz gratificação instantânea. Queremos o que queremos, e queremos já. Tenho às vezes a sensação de que nossa tolerância à frustração é cada vez menor, e que isso é visto como algo positivo. Eu fico observando a impaciência dos motoristas de Uber que eu pego quando são obrigados a parar num sinal vermelho ou a reduzir a velocidade quando o fluxo de trânsito se intensifica e me pergunto: se essa pessoa não consegue lidar com a frustração de um sinal vermelho, como vai conseguir lidar com a realidade da morte?

Não há nada de errado em perseguir resultados e a gratificação instantânea tem o seu valor. Entretanto, não creio que seja uma boa ideia atribuir uma importância excessiva a isso, ou melhor, vincular o valor do que fazemos e da nossa própria presença no mundo exclusivamente aos resultados imediatos de nossas ações. Especialmente porque os resultados daquilo que fazemos não dependem apenas de nós. As sementes que plantamos podem não encontrar um campo fértil, ou podem enfrentar condições adversas que as impedem de germinar como nós esperávamos. Ou ainda demandam tempo para revelarem todo o seu potencial.

Estamos acostumados a associar a imagem das pessoas bem sucedidas àquelas que conseguem o que querem, que atingem seus objetivos e suas metas. Confesso que eu sempre tendo a achar que essas pessoas são na verdade prisioneiras desses objetivos e dessas metas que elas nem sempre escolheram, mas que lhes foram impostas de fora e que elas interiorizaram como sendo delas. Um pouco como se a vida tivesse se transformado numa corrida de obstáculos a serem superados ou num reality show no qual precisamos diariamente vencer desafios que você não escolheu para continuar no jogo. Como se precisássemos provar diariamente que temos valor e merecemos continuar no jogo, com, base em critérios externos a nós. Sem nunca pensar na possibilidade de explorar outros jogos, com outras regras. Ou talvez nem jogos, mas brincadeiras sem vencedores ou perdedores.

É evidente que, quando lança suas sementes no chão, o semeador espera “resultados”. Ele deseja que aquilo que plantou germine, cresça e floresça. Entretanto, quero crer que ele sabe que não tem controle absoluto sobre o que vai acontecer com o que plantou, mas insiste na sua semeadura por amor ao ato de semear que, em si, é nobre e bonito, como é também o cultivo daquilo que foi plantado, o cuidado com que alimentamos aquilo que nos é caro. Um semeador não guarda rancor da semente que não vingou, nem tem tempo de se sentir um perdedor por uma safra que não deu certo. Ele tem outras sementes para plantar em campos que talvez sejam mais férteis.

A imagem do semeador tão bem captada por Van Gogh tem esse sentido para mim: um modelo possível de presença no mundo. Não um rei, não um sábio, não um guerreiro, não um herói. Apenas um semeador que joga suas sementes no mundo e as cultiva, esperando que elas germinem um dia. Mas que não depende desse resultado para saber que cumpriu a sua tarefa e a sua vocação.

Pensando bem, não deixa de ser isso que eu faço aqui nessa coluna, e na minha vida de um modo geral. Vou jogando minhas sementes, na esperança de que elas encontrem um campo fértil. Às vezes acontece, às vezes não. Às vezes leva anos. Enquanto isso, sinto-me já bastante feliz e realizado por saber que estou dando minha contribuição para o ciclo da vida.

Até a próxima!

PS – Trago hoje duas lindas canções que falam de sementes e de cultivos: a maravilhosa “Cio da Terra”, na gravação original de Milton Nascimento e Chico Buarque; e “Drão”, de Gilberto Gil.

Uma resposta

  1. Interessante poder fazer essa genealogia de impressões, influências, uma espécie de trajeto temporário de signos e símbolos na sua narrativa. Paul Cézanne é um dos nomes mais importantes da arte moderna, porque antes que houvesse um movimento intencionalmente modernista, ele lançou bases para que a pintura se libertasse de si mesma e chegasse aos seus extremos como linguagem. Cézanne deixou profundas marcas na arte de seus contemporâneos e predecessores, assim como Van Gogh, pois eram contemporâneos. e ambos possibilitaram que tenhamos hoje a arte livre de convenções acadêmicas rígidas. Talvez porque ambos quisessem simplificar as coisas que permitir que viéssemos a sentir mais do que exatamente ver. Ambos tornaram a arte líquida e difundida. Ambos permitiram que a arte fosse o ponto de partida para pensarmos a vida e refletirmos sobre seu andamento, como você tem feito agora.

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