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Rês desgarrada

“Sou como rês desgarrada

Nessa multidão boiada

Caminhando a esmo”

Gilberto Gil, Lamento Sertanejo

 

Desde que me mudei do Rio de Janeiro para Brasília, em julho de 2000, eu nunca mais tinha vivido numa grande metrópole, até  vir morar na Cidade do México, onde cheguei no final de janeiro de 2021. E a verdade é que a volta à vida na cidade grande foi, e continua sendo, um choque para mim. Eu tinha me desacostumado completamente com o ritmo frenético das metrópoles, com as grandes aglomerações, com o trânsito pesado que pode transformar um simples deslocamento entre bairros numa viagem interminável, com a poluição, com o barulho…

Sim, é verdade também que a vida na cidade grande oferece inúmeras oportunidades que não existem nas cidades menores. Opções de cultura, lazer, consumo, gastronomia… Reconheço isso e entendo porque tanta gente gosta de morar nas metrópoles. Mas confesso que observo toda essa abundância com olhos meio cansados e preguiçosos. E fico sonhando com lugares mais sossegados, com menos gente e menos agitação. Sinto-me deslocado aqui, como o sertanejo da música do Gil.

Ajuda muito a lidar com essa sensação o fato de que sentir-se deslocado não é exatamente uma novidade para mim. Quem já leu alguns dos textos que publiquei nesse espaço lembrará talvez de que o tema do estranhamento em relação ao mundo que me cerca me é bastante familiar.

A experiência de voltar a viver numa grande metrópole trouxe uma nova dimensão a esse meu jeito meio enviesado de estar no mundo, como uma variação sobre um tema musical que sempre volta a se manifestar. O tempo vai passando e a gente vai aprendendo a reconhecer certos padrões naquilo que nos acontece e, sobretudo, na forma como o que aquilo que nos acontece nos afeta e transforma ou fortalece nosso jeito de ser (creio que transforma E fortalece).

De um modo geral, o amadurecimento e o envelhecimento são vistos como um acúmulo de experiências que vão paulatinamente consolidando uma personalidade e um caráter, como uma casa que vai sendo reformada, ampliada e mobiliada até atingir um estágio em que está pronta. Isso é parcialmente verdade. Porém, acho que o amadurecimento pode ser visto também de outra forma. Na minha experiência singular, tenho vivido a passagem do tempo menos como acúmulo do que como desfazimento. Parece que ao longo dos anos tenho deixado para trás um monte de entulho que eu carregava pela vida e que não me pertencia (ou que deixou de ter sentido para mim) para abrir espaço para que outras coisas surgissem. Hesito em falar num “eu verdadeiro” que finalmente começou a vir à tona, pois não acredito muito em essências e identidades “naturais”, mas trata-se certamente de uma liberação de fluxos e potenciais que estavam ocultos sob o peso do entulho, fazendo pressão para sair.

A gente já nasce marcado por um conjunto de condicionantes: de família, de classe, de raça, de gênero, de momento histórico… Desconfio de que a verdadeira “jornada do herói” (noção pela qual tenho certa implicância) não é uma trajetória de desafios e de conquistas e sim um progressivo reconhecimento desses condicionantes, que nos revela outras possibilidades de presença no mundo, abre novos horizontes e traz leveza às nossas vidas.

Esses dias, eu estava lendo alguns artigos de um antropólogo chamado Carlos Eduardo Henning, que trabalha com temas relacionados com a velhice das pessoas LGBTQIA+, e ele propõe um conceito muito interessante, o de “teleologias heteronormativas” (sim, acabamos esbarrando de novo na heteronormatividade. Fazer o quê? É o dispositivo dentro do qual respiramos e que vai além do estabelecimento de uma orientação sexual como norma em relação à qual todo o resto é desvio, mas define também todo um modo de organizar o mundo patriarcal em que vivemos: “o macho adulto branco sempre no comando”, como diria o Caetano Veloso na música intitulada, não por acaso, “O Estrangeiro”).

As teleologias heteronormativas seriam então esse conjunto de valores e narrativas que definem uma visão de mundo em relação à qual as pessoas LGBTQIA+ se sentem excluídas: casar, ter filhos, formar uma família, subir na vida, ser bem sucedido… todas essas coisas sem as quais a vida de uma pessoa é tida como fracassada e infeliz, não realizada.

O trabalho do Carlos Eduardo Henning é interessante justamente porque mostra como, para as pessoas LGBTQIA+, a experiência de uma velhice feliz (para os que têm a sorte de chegar à velhice) passa pela desconstrução interna dessas teleologias, que permite descortinar outras possibilidades de autorrealização que valorizam outras dimensões da vida, como as amizades, o prazer, o cuidado de si e o afeto, entre outros.

Ler esses artigos ajudou-me a encaixar melhor algumas peças do quebra-cabeças das minhas ideias e a organizá-las um pouco melhor. Fiquei pensando em como eu no fundo sempre tive uma relação complicada com o “mainstream”. Sou um homem cis branco de classe média alta, o que já me coloca numa situação de privilégio e acesso muito mais favorável do que a grande maioria das pessoas. Mesmo minha orientação sexual dissidente não é necessariamente um problema, pois eu sou “passável”, isso é, tenho a possibilidade de escolher onde, quando e para quem eu quero revelar minha homossexualidade. Poderia passar a vida no armário, se quisesse.

Mas não quis. Desde cedo, alguma coisa dentro de mim me dizia que eu não cabia na forma que me foi destinada. E não me refiro somente à orientação sexual. Num sentido mais amplo, as teleologias heteronormativas nunca me convenceram. Sempre intuí que eu nunca seria o homem que esperavam que eu fosse (e poucas cenas me emocionaram tanto no cinema do que a conversa entre o cineasta e sua mãe em “Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, na qual ele pede desculpas por ter frustrado as expectativas dela em relação à pessoa que ele se tornaria). Ainda hoje, para além da minha homossexualidade mais que assumida, eu percebo claramente que muitas das coisas que as pessoas consideram como desejáveis não me interessam, seja viver na cidade grande, ocupar determinadas posições no jogo social e profissional, ganhar biscoitos na Internet, e daí por diante.

E tudo bem. As expectativas que eu um dia achei que tinha que cumprir ficaram no caminho. Não me fazem falta. E sinto-me mais livre e mais leve para me tornar algo que ainda não sei bem o que é, e talvez nunca venha a saber (pois a necessidade de definições rígidas também é uma exigência do dispositivo heteronormativo patriarcal), mas que nasce desse lugar de estranhamento e deslocamento que eu pareço habitar (e talvez habite todos de nós enquanto possibilidade),  e que pode ser também um lugar de encantamento, descoberta e invenção.

Por isso, apesar da melancolia que atravessa a música do Gil e do Dominguinhos, e que eu sinto também às vezes, eu queria dizer que é possível ser uma rês desgarrada e feliz.

Até a próxima!

 

PS –  Além do “Lamento Sertanejo”, incluí na trilha sonora da coluna de hoje uma canção e um poema que, na minha opinião, ecoam as ideias evocadas aqui: “Peter Gast”, do Caetano Veloso, e “Cântico Negro”, de José Régio, na voz de Maria Bethânia.

 

 

2 respostas

  1. Quando se desfaz ao mesmo tempo se constrói. Eu sou uma casa que está sendo reformada e tal vez nunca consiga ficar completamente reformada, mas tô tentando e tentarei até meu último suspiro. Parabéns Paulo. Obrigada pela reflexão.

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