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Réquiem para um relacionamento

Galinha cinza e galo preto e vermelho, em posições opostas, de costas um para o o outro.

Em dezembro de 2017 eu terminei minha relação de quase onze anos de modo abrupto depois de uma altercação física com meu então marido (de facto, non de jure). Abandonei nossa casa, pets e móveis a pé. Eu apenas saí, cruzei a porta para não mais voltar. Era o fim de uma era, quase um terço da minha vida de fato vivida eu havia passado com ele. Tínhamos sido muito felizes, mas a segunda metade de nossos anos juntos foi marcada por crises, alcoolismo, depressão e muitos problemas financeiros.

O início, no entanto, foi de muito amor, proximidade, atenção. Eu o sentia devotado a mim, eu tentava corresponder, de alguma forma, e consegui, como eu pude. Aprendi a duras penas a amar, a corresponder, a ser correspondido. No entanto, um dia isso tudo se foi. A mosca das paixões momentâneas passou pela frente dele. Um amigo, outro amigo, mosquinhas azuis cintilantes que lhe captavam a atenção. Eu ficava às favas. O álcool sempre acompanhou a nossa relação. No início eram seis cervejas compradas ali na distribuidora, virando a esquina. Ele bebia, eu não. Ele voltava para casa de ônibus. Depois ele arrumou um carro e passou a pernoitar em casa, afinal de contas ele havia bebido.

Depois ele estava dentro da minha casa, com cópia de chave e tudo. Ele me levava para cima e para baixo para fazer compras, ele me ajudava a lavar roupa, fazia comida. Depois ele passou a usar minha casa. Recebia amigos, clientes ali. Eu fazia de tudo para manter as coisas confortáveis e limpas. Até que descobri uma casa melhor, mudei para dentro dela, ele veio junto. Nosso quarto tinha duas camas de solteiro, coladas uma na outra, Era para ser o meu quarto. O dele jazia na casa da sua mãe, com toda sua mobília e quinquilharia.

Um dia, achamos uma casa maior ainda e toda a quinquilharia veio junto, ele tinha um lar comigo. Já poderíamos nos casar, bastava ir ao cartório, o Supremo Tribunal Federal já tinha declarado constitucional o casamento de duas pessoas do mesmo sexo. Mas eu não me casei, não forcei a barra. Eu não queria me casar, até hoje não quero. Com ninguém. Mas com ele eu já era casado, com ou sem papel. A essa época, ele bebia muito, passava o dia todo estudando e bebendo, eu deixava. Deixei tanta coisa. Não sei se deveria ter questionado. Não adiantaria muito.

Mas talvez eu tivesse conseguido me livrar dele logo. Mas eu queria isso? Não. Eu queria ele ali. Bêbado, mau, agressivo, falso, mentiroso, traindo-me pelas costas. As pessoas falavam, riam-se de mim, vinham me alertar de diversos modos. Eu fingia não ver. Ou então escancarava minha sem-vergonhice disfarçada de contemporaneidades: dava uma de moderninho, de ser contra a monogamia tradicional, amava a ideia de um casamento aberto, de total liberdade.

Na verdade me faltava coragem de enfrentar medos e problemas que apareceram, e me envergonhava o fato de que eu havia permitido demais, exposto a mim mesmo demais. Não sentia desejo de terminar. De fato, uma contradição acontecia. Eu brigava com ele para que ele me tratasse melhor. Mas ficava louco para que ele pedisse desculpas, ou exigisse para que eu pedisse. Eu estava dependente. Codependente. Viciado nele. E exatamente naquilo de pior que ele tinha a me oferecer.

Os últimos anos juntos foram os piores. Ele desenvolveu uma paixão patológica por um cara que não saía de nossa casa. Mas por quê ele não saía de lá? Porque a minha permissividade havia chegado naquele nível que vovó sempre dizia: “Quem muito abaixa mostra a bunda”. E a minha estava de fora, suja, cheia de moscas varejeiras. Minha situação era ridícula. Meu “marido” passava a semana inteira bebendo, enchendo o saco de um suposto pretendente, tentando obrigá-lo a ir nos “visitar” nos finais de semana. Eu provia a casa, os víveres, ele confortavelmente desfrutava daquilo tudo, mas me rejeitava por causa do outro. E eu não via modos de resolver aquilo de um modo civilizado.

Um dia, um amigo em comum me contou do “caso” de meu marido com o outro. E me contou outras coisas. Eu apenas ouvi e assenti com a cabeça. Eu já sabia. Então me senti ridículo. Outro veio dizer o mesmo. Mas eu estava crente de que o melhor era a liberdade. No entanto, eu não tinha liberdade, não tinha o desenlace que ele tinha, nem tempo para galinhar por aí, trabalhava muito, tinha uma casa cara para pagar no fim do mês.

Um dia, o suposto amante me liga, dizendo que o meu marido estava o infernizando demais. Essa informação trouxe a desgraça para meu lar. Quando ele chegou, eu explodi. Foi nossa primeira altercação física, depois outras vieram. No final, ele não conseguiu o que queria, pelo que eu descobri, até recentemente, não. Mas ele conseguiu brigar com o pretendente de maneira supostamente definitiva, reatou com ele e não me contou. Ele parou de beber e a vida começou a entrar de novo nos eixos, no entanto, o ódio dele por mim era muito claro. Ele ainda estava apaixonado pelo outro. E continuava a me tratar mal.

Num dia, depois de semanas de cuidado desdobrado por ele, eu me vi em uma das muitas brigas que começávamos do nada. Em vez de brigarmos até a exaustão eu simplesmente saí de casa, liguei para minha mãe e pedi para que alguém andasse duzentos quilômetros de carro para me buscar, e assim eu voltei para a casa de onde eu havia saído havia onze anos. Saí mais triste do que feliz, despedaçado. Hoje, ao falar disso na terapia, mais uma vez eu senti uma sensação ruim. Essa história nunca terminou dentro de mim, nunca pusemos um ponto final nas coisas e eu nunca mais falei com ele. E nem quero falar. Isso serviria para ele, apenas, para mim, nada.

Mas eu me senti duplamente mal, por ainda carregar esse cadáver em putrefação e pela sugestão de que isso já deveria ter sido resolvido. Intimamente, é algo que incomoda e eu queria me livrar de tudo. Mas queria também imaginar que eu tenho certo direito de pensar como eu penso, de agir como eu ajo e eu, de fato, me sinto bem e produtivo, apesar do trauma.

Eu já estive em fase pior. Estive como o eu-lírico da canção “Flinch” de Alanis Morissette, em pânico só de pensar na possibilidade de rever um ex-amor, ainda que seja de modo acidental:

Alanis Morissette, Flinch. Do álbum “Under Rug Swept”. Essa performance foi incluída no YouTube em 2008.

Hoje eu sinto que eu conversaria com ele, se as condições fossem favoráveis, inclusive se não houvesse destempero emocional. Mas dificilmente eu perdoaria, provavelmente não. Talvez eu concedesse a ele um momento para ser ouvido sobre algo que jamais mudará a realidade do mal e do abuso que ele cometeu. Perdoar é necessário. Mas no meu caso foi impossível mesmo. E continua.

Não sei quão patológico tem se tornado guardar todo esse ressentimento, mas eu me sinto, de certa forma no direito de senti-lo. Pelo menos eu entendo isso como normal. Depois de tudo o que eu passei, embora eu reconheça a necessidade de me curar de feridas tão doloridas, eu acho normal sentir ainda tudo o que eu sinto por muitos motivos que encheriam páginas e páginas de muitos e muitos livros.

Talvez eu esteja reagindo com exagero às provocações da psicologia. Mas é que eu sou sensível a uma certa crueldade dos saberes da saúde, da exigência que recai sempre sobre o indivíduo que tem que passar logo de vítima de uma violência para responsável pela cura dela. Eu me sinto sozinho nessa, mesmo com ajuda de um profissional. E cansado também. Mas vamos caminhando, parar e sentar à beira da estrada não é uma escolha.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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