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PUMPED UP KICKS

A canção “Pumped Up Kicks” do grupo Foster The People, banda de rock indie estadunidense, sempre me causou algum desconforto. Por ser uma canção animada, bonitinha, eu não queria prestar atenção à letra. Mas eu fui obrigado, porque ela apresentava algo muito inquietante: a cena de um garoto que vai com uma arma para a escola atirar nos seus colegas. O que motiva essa barbárie da letra, não fica claro ali, nos versos que seguem repetindo isso num coro animado e depois mostra flashes da vida de um lá menino cujo pai trabalha o dia todo e provavelmente vai se irritar com ele porque ele não fez o jantar para ambos. Inspirada no massacre de Columbine, de 1999, é uma canção ambígua. Não sabemos exatamente o que achar da letra. Ela parece zoar com a situação. A canção tem remixes para ser dançada em boates, foi tocada em rádios, usada em séries de TV, o que prova que se tornou conhecida e cultuada no mundo pop. Ao se conhecer de perto a história da canção, no entanto, pode-se entender outra história. O compositor, Mark Foster, tenta mostrar um instantâneo das suas memórias, em dois momentos distintos da sua vida. No primeiro, quando ele mesmo foi um adolescente do tipo que sofre bullying e fica revoltado porque no ambiente escolar onde ele cresceu, não havia suporte emocional para quem era vítima desse tipo de violência. Não havia e nem há até hoje, de maneira adequada, em nenhum lugar do mundo.

A nossa maior sorte é que não há predomínio de psicopatas na maioria dos nossos adolescentes oprimidos pelo adoecimento mental, trazido pela vida cotidiana, pela ansiedade, pelo excesso de informação e por relações nada saudáveis dentro e fora de casa. Vivemos num estado de relativo conforto, embora já seja comum no Brasil, casos de violência dentro e nos arredores de escolas, relacionados a prática de bullying, discriminação, relacionadas ou não a condutas ultraviolentas de jovens e adolescentes, relacionadas ou não à hiperexposição desses sujeitos a conteúdo midiático violento por meio da internet, TV ou cinema. A prova disso é o ataque de um adolescente a duas escolas, em Aracruz, no Espírito Santo (no último dia 25). O ataque deixou 13 pessoas feridas e pelo menos três mortes (duas professoras e uma aluna), de acordo com a maioria dos relatos de notícias, com exceção do jornal Estadão, cuja reportagem principal, para assinantes pagos, relata quatro mortes (três professoras e uma aluna).

Isso não é exatamente novidade, mas já forma uma série histórica nos últimos 20 anos: 11 casos similares, com modus operandi parecido. Nesses, jovens aparentemente revoltados com a sociedade ou com suas condições de existência premeditam e perpetram crimes. O inacreditável é como eles conseguem fazer isso: aprender técnicas de combate (em alguns casos), incluindo o manejo de armas de fogo restrita, comprar armas brancas, aprender a fabricar artefatos incendiários, entre outras coisas debaixo do nariz de todo mundo. Isso, geralmente, acontece dentro de lares aparentemente normais, com essas crianças vivendo em meio a “pessoas de bem”. No caso do ataque de Aracruz, de sexta-feira, no entanto, uma enxurrada de informações inundou a rede, mostrando que o adolescente em questão era uma espécie de psicopata treinado, e suspeitam que seu pai possa tê-lo adestrado para matar, porque é um policial admirador do líder nazista Adolf Hitler. Ou seja: a história de terror de filmes, como em O Massacre da Serra Elétrica, de 1974, parece ser real, com famílias em pais ensinam seus filhos a serem psicopatas.

Diferente do caso da canção Pumped Up Kicks, em que Mark Foster, alegando cantar a respeito de seu passado, porque sofreu bullying e era próximos a vítimas do massacre de Columbine, no qual inspirou essa canção, o jovem de Aracruz não quis apenas desdenhar de algo tão dolorido para uma sociedade livre e democrática. O adolescente, de fato, quis matar e matou, entrando para a história como um dos grandes monstros dessa geração que cria esses monstros. Às vezes são apenas jovens brancos, alegres e bonitos cantando sobre violência de maneira descompromissada e cínica. Isso é o que vemos no clipe da música da banda Foster The People. Em nada a banda se parece com os jovens que sofrem bullying. São um grupo de rapazes brancos, bonitos, bem vestidos, de dentes clareados e alinhados, com acesso ao acirrado, concorrido e seletivo mercado da música norte-americana. Eles estão se aproveitando desse tema para gerar polêmica em torno de algo tão dolorido. A música chegou a ser banida em muitas rádios, exatamente pelo medo de trazer uma nova onda de atentados, por romantizar o ponto de vista de quem é assassino. No entanto, não mostra o ponto de vista de ninguém. Nem dos jovens revoltados que veem na morte o alívio para a pressão que sofrem, nem o ponto de vista das vítimas, horrorizadas, traumatizadas, para sempre marcadas por algo tão difícil.

E isso não tem graça. De fato, a maioria dos jovens que cometem esses crimes bárbaros é branca, mas se sente excluída por problemas financeiros ou adoecimento mental causado pelo ambiente familiar, pelo bullying na escola e pela cultura de competitividade, beleza e sucesso acima de tudo. No entanto, o crime de Aracruz mostrou que essa patologia existe em família, remontando-se ao crime de Goiás, em 2017, quando um adolescente levou a arma da mãe, policial militar, para a sala de aula, tendo matado dois e ferido mais quatro colegas. Também nesse caso, detalhes da vida do pai e da mãe, policiais, foram usado como forma de tendar compreender como esse adolescente optou por resolver seus problemas com assassinato.

Esses são os fatores mais comuns e sempre serão apontados nesses casos: abusos na família, podendo ser violência, abandono, falta de atenção e controle no acesso a mídia e conteúdos, adoecimento mental e conflitos na escola. Eu trabalho com adolescentes e costumo ouvir suas conversas, algumas despudoradas, nas salas de aulas e corredores de uma escola de Ensino Médio. Muitos relatam ter contato com conteúdo na Internet que inclui violência extrema, fake news, blogs que ensinam de tudo: de teorias conspiratórias a práticas violentas. Nunca, no entanto, podemos ter certeza se eles falam a verdade ou blefam. Na verdade, quando perguntados, eles se fecham e somente os seus pais ou responsáveis poderiam, em tese, olhar para dentro do sigiloso mundo de seus computadores, tablets e celulares. Mas muitos não o fazem, não se interessam por isso ou acreditam piamente que jamais seus filhos possam ter atitudes ruins ou serem potencialmente perigosos.

De fato, as estatísticas não permitem afirmar que os jovens estejam contaminados com esse tipo de formação terrorista. Mas outra coisa mais insidiosa se apresenta. Os adolescentes de hoje em dia são incapazes, em sua grande maioria, de se posicionar corretamente diante do mundo e julgar com ética o que deve ou não deve ser feito, no tocante a uma série de assuntos: tolerância à diversidade, respeito ao próximo, comunicação cordial e não violenta com o próximo, respeito aos corpos e mentes, identidades culturais minoritárias. A maioria faz comentários racistas ou homofóbicos e relutam em deixar de fazer isso no ambiente escolar, usando como parâmetro o comportamento da geração que os precede.

A violência é uma serpente que sai de um ovo que chocamos a cada dia, quer seja por nossos comportamentos pessoais, quer seja por nosso modo de ser conivente com coisas que já nos acostumamos. Hoje em dia, quando eu ouço comentários racistas, fascistas ou extremamente violentos vindo da boca de adolescentes, eu busco fazê-los refletir sobre e se envergonhar da consequência de suas ações. Mesmo em estado profundo de denegação, muitos se calam, com temor de que o que dizem na escola seja levado ao conhecimento de seus responsáveis. Outros nem se importam tanto, ou parecem estar fazendo isso de propósito, para que seus pais descubram. No entanto, há limites a se respeitar. Numa escola, nós professores não temos o direito de invadir todo e qualquer limite que os estudantes nos apresentam. Assim como não podemos avançar sobre coisas que dizem fazer sem evidências de que isso, de fato é um problema. Há uma infinidade de adolescentes que não se sentem aceitos nem em casa, menos ainda na escola e apenas a minoria reage a isso de maneira negativa. Chegar a matar motivados por bullying ou por terem uma personalidade patológica formada, é algo ainda menos significativo estatisticamente, mas sempre preocupante. Um ponto positivo da educação contemporânea, no entanto, é a abordagem de competências socioemocionais na escola, que encorajam os estudantes a lidarem com seus limitese e aprenderem a serem resistentes a críticas indevidas e resilientes a condições adversas de vida. No entanto, ainda é muito cedo para que tenhamos, de fato, frutos positivos. Sigamos colhendo os frutos ruins de um passado recente e ligado ao presente, de abandono, silenciamento e alienação de muitos jovens a uma massa de informação sem orientação, ou com orientação duvidosa. Pensemos bem. Será que nossas igrejas e famílias são capazes de impor aos jovens uma conduta ética frente ao mundo conectado e sem limites para se informar, como acontece hoje em dia?

Pensemos.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Imagem da capa: Detalhe de um fotograma do videoclipe da banda Foster The People, citado na matéria, presente aos 0:58 do vídeo.

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