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Precisamos falar sobre Mateus Carrilho

Todos nós conhecemos a Banda Calypso, cuja presença é de onipresente a forte, há mais de 20 anos nas nossas mentes, rádios, festas, playlists de músicas favoritas. O que dizer de Gaby Amarantos? De timbre marcante, mulher maravilhosa com voz suave, cantando letras propositalmente dançantes, cheias de um cotidiano popular e mágico do Pará, ela apareceu e ficou. O mesmo podemos pensar da Banda Uó, com uma pegada mais urbana, saindo de Goiânia para o Sudeste, levando o electrobrega para o alcance nacional dado pelas produções da MTV e da Rede Globo. Todos esses nomes de artistas e bandas têm algo em comum.

Primeiro é importante a gente estabelecer que a Região Norte é riquíssima por sua cultura e seu papel de trazer para o país a sonoridade caribenha, recriá-la em forma de ritmos dançantes, espetaculares. O centro desse movimento é o Pará, mas isso se propaga por toda a região, inclusive para o Maranhão, que está no Nordeste por convenção geográfica, porque também tem o mesmo papel que o Amapá e o Pará, estados costeiros, que recebem diretamente as influências acima do Equador e abaixo do Trópico de Câncer. Nesses estados, a música se recria e espalha em direção às outras regiões, notoriamente ao Nordeste e Centro-Oeste, caminhos naturais para o Sudeste e Sul, embora atualmente esse tipo de distância não precisa mais ser vencia de maneira física.

Mateus Carrilho tem que ser localizado nesse contexto de contato do Norte com o Centro Oeste. Diferente do que pensam muitos, o Centro Oeste não tem uma cultura sertaneja unânime. Muitos passam a impressão que vivemos todos de camiseta xadrez e calça jeans, falando com um sotaque de personagem de desenho animado. Embora possamos nos identificar com a caricatura divertida e folclórica de YouTubers como Jacques Vanier, somos um pouco mais espontâneos e conectados com a realidade do que ele mostra. Por esse motivo é que o surgimento da Banda Uó, na década passada não pode ser um ponto fora da curva. Ao contrário. Goiás é tributário dos ritmos paraenses, do Calypso ao tecnobrega. O surgimento do electrobrega não pode ser tributado exclusivamente à assimilação dos ritmos paraenses pelo Nordeste, uma vez que a Banda Uó, pioneira no estilo, é goiana e dali saiu para circular nos meios do Sudeste.

O fim dessa banda marca o início da carreira solo desse rapaz bonito de Goianésia, Goiás. Sim, eu e ele temos isso em comum. Ele não vive mais nessa cidade, mas eu sim. Embora não nos conheçamos, pois somos de origens bem distintas, no quesito classe social, temos esse ponto em comum. Mateus Carrilho é reconhecido como uma contribuição goianiense à cultura brasileira, mas de fato ele é do interior, de uma cidade nem tão pacata assim, cheia da musicalidade paraense, vinda com a população flutuante, em busca de trabalho, ou mesmo com imigrantes nordestinos, numerosos. Não tenho ideia de quando ele saiu daqui, não faço a mínima ideia de como é a sua história pessoal, espero um dia que ele fale disso numa entrevista. Porque a explosão do Calypso de Joelma e Ximbinha aconteceu quando ele tinha onze anos de idade. Mesmo que ele morasse em Goiânia, não passaria despercebida essa onda, que inundou rádios, festas, e consequentemente a televisão e a Internet, logo depois.

Mateus Carrilho, vestido de colete, bermuda, camiseta e bolsa de lado, em um fundo vermelho, olhando para cima.
Foto: Mateus Carrilho por @jonathanwolpert

As informações que eu pude colher na imprensa internética e na famigerada Wikipedia mostram que Mateus teria começado o seu trabalho musical em Goiânia, com Davi Sabag, seu namorado na época, com uma banda de folk, pop e rock. Uma festa que Davi organizava para o público LGBT mostrou o nicho do tecnobrega e do pop, bases da sonoridade que utilizaram para lançar a Banda Uó, que por causa disso tem o nome da própria festa. E a partir desse liquidificador musical, saíram versões de músicas famosas, samples e uma sonoridade única, fortemente enraizada nos ritmos populares do Pará e Nordeste, mas com uma identidade específica: a marca antropofágica da versão criativa, ressignificadora de músicas pop e uma verdade muito forte.

Essa verdade é a parte que mais interessa. Uma banda formada por LGBTQIA ganha destaque, sem a necessidade de esconder o que quer que seja, sem precisar ocultar a sexualidade de ninguém, com uma mulher trans nos vocais. Dessa realidade é que surge Matheus Carrilho. Sua estética visual retoma imagens icônicas do mundo pop. O bigode latino, a pele morena e os cabelos escuros: algo que remete aos latino-americanos, a Freddie Mercury. Matheus se veste de maneira icônica, refletindo em sua pele o popular dos ritmos que canta, mas ao mesmo tempo, a pluralidade e intensidade da cultura estrangeira que sempre nos vêm por meio das emissoras de televisão e pela Internet.

A apropriação do visual entendido como brega fica no mesmo universo do kitsch e do camp, no entanto, sem fazer parte da estética específica deles. Embora o brega se aproxime do kitsch, não é por meio da mesma gramática que os sentidos se organizam, isso fica claro na estética da aparência de Mateus, que mostra algo distinto de Liberace, Elton John ou mesmo de Billy Porter. Mateus tem seu jeito próprio de desafiar a masculinidade vigente, principalmente a masculinidade goiana, travada, rígida, que permite uma estética masculina, uma beleza com certa sofisticação, mas não o suficiente para questionar o gênero.

Nesse ponto, Mateus é um padrão de estética gay, ele mostra de maneira marcada aquilo que Liberace e Elton fizeram no passado, tipo: “Essa linha aqui, não passe se não for gay”. Claro, com propósitos estéticos específicos. Mas não deixa de ser algo que remete às suas raízes. Leva à antropofagia do brega, a partir de ritmos, cuja arqueologia chega ao Caribe, ao pop estadunidense, ou a elementos de estéticas europeias, leva ao camp e ao kitsch, mas como já dito, por convergência estética, não exatamente por afiliação estética imediata.

O brega é um elemento de extrema liberdade estética, está filado ao popular. às classes menos favorecidas. Nesse ponto, as coisas ficam complicadas. Talvez porque Mateus represente a estética, não o estrato social que o origina. Na verdade, temos uma situação complexa de produção simbólica. Porque a forma como o signo circula nem sempre está restrita. Por exemplo, Mateus é de origem de classe média, isso permitiu o seu imenso contato com a cultura e também a adequada apropriação de meios de produção e publicação de sua obra. Ao trabalhar em contato com um público que consumia o tecnobrega, calypso, pop, ele pode redirecionar sua ação para esse foco.

Ao mesmo tempo, isso também faz parte da memória de fruição musical e estética dele, uma vez que a classe média é proletária em sua grande parte, pequena proprietária ou mesmo trabalhadora do alto funcionalismo estatal ou empresarial. Ou seja, trabalhadora. E nesse meio, as trocas simbólicas são comuns. Mesmo que não sejam exatamente entre pessoas do mesmo estrato ou faixa de poder aquisitivo. De fato, trabalhadores, mesmo diferenciados por faixa de renda, têm espaços comuns e acesso a bens comuns. Por exemplo, pobres e ricos vão ao cinema. Mas nem sempre pobres podem ir o tempo todo. Nem sempre pobres são educados para consumir teatro e música erudita. Mas não há exatamente um bloqueio aos mais pobres, apenas não há uma disponibilização a partir da formação.

Nesse nicho, é maravilhoso se constatar essas coisas. Que o brega (tecno, electro), calypso, o forró, a bregadeira, o brega-funk, todos esses ritmos de fusão do eixo Norte-Nordeste tenham essa circulação entre todos os meios. Que tenham sido adotados pelo segmento LGBTQIA+. É legal também localizar Goiás no meio disso, é importante mostrar que a música goiana não é isolada no seu estereótipo machista tradicional e traz em si uma variedade muito grande de sonoridades, porque compartilha com as regiões vizinhas.

Mateus, por sua vez, ainda reflete esse lado popular, abandonado pelo sertanejo há décadas. A prova disso são as festas, boates e festivais de sertanejo, caríssimos, frequentados pela classe média ou alta. A sonoridade nortista ainda é popular e sempre será.

Mesmo que não seja um herói das classes menos abastadas, Mateus é povo. Para o povo. Suas canções são bem executadas e produzidas. Sua interpretação é pessoal, usando seu timbre médio de barítono de maneira sensual, dentro de um intervalo de segurança que permite expressividade. As músicas são do tipo chiclete, Seus cinco principais singles, até o momento, contam com quase 46 milhões de reproduções, juntos, o que é um desempenho muito bom para seu segmento.

Mateus Carrilho é um homem bonito, é música brasileira, é Goiás, é mais que chic, camp ou kitsch. Mateus é brega, electrobrega. Não precisa dizer mais nada. Mas temos que dizer que é um vitorioso artista LGBTQIA+, é um astro da diversidade, precisamos observá-lo no vasto céu das possíveis estrelas. Como os nossos melhores artistas, ele tem se posicionado sobre os nossos mais urgentes assuntos sociais, identificando-se com as pautas mais urgentes, mostrando que entretenimento não é alienação. Mas o seu forte mesmo é na produção coerente de sua matéria musical, uma pérola da arte popular.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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