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Por uma justiça que se cumpra e um direito que nos respeite…

“Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (e Deus) falando à multidão, anunciou: A partir de hoje chamar-me-eis Justiça. E a multidão respondeu-lhe: Justiça nós já a temos e não nos atende. Disse Deus: Sendo assim, tomarei o nome Direito. E a multidão tornou a responder-lhe: Direito já nós o temos, e não nos conhece. E Deus: Nesse caso, ficarei com o nome Caridade, que é um nome bonito. Disse a multidão: Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.”

(Trecho inicial de prefácio do escritor português José Saramago para o livro Terra)

Na tradição mítica grega, Themis, filha de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), era a deusa da Justiça, o arquétipo que mantém a lei e a ordem entre os seres humanos. A sua imagem é composta por uma balança, que simboliza o bom senso e o equilíbrio nos julgamentos; por uma espada, que reflete a força de suas decisões; e por uma venda nos olhos, uma menção à objetividade nas resoluções e no tratamento igual para todas as partes envolvidas em um processo, ou seja, à imparcialidade diante dos conflitos intrínsecos à vida.

Na mitologia dos orixás, o arquétipo da justiça é representado por Xangô. Segundo Jorge Zacharias: “Orixá dos raios e trovões, compartilha esse poder com Zeus, Baal-Hadad sírio, com o germânico Thor.  Ele é uma divindade que cospe fogo pela boca. É associado à justiça divina. Xangô é o Grande Rei, poderoso, autoritário, porém justo! A exemplo de Zeus, é vaidoso e sensual.” Na tradição dos povos originários, é associado a Tupã ou Nhanderuvuçú (alma velha, na língua tupi), também conhecido por Nhamandú.

Ademir Barbosa Júnior nos conta: “Em vários dos relatos mitológicos sobre Xangô, este Orixá (paralelo ao Inquice congo-angolês Nzazi e ao Vodum daomeano Heviossô, ambos também cultuados no Brasil) inicialmente é injusto, o que nos alerta que a Justiça é um exercício a ser vivenciado e aprendido. Seu machado bipene, assim como a balança de Themis, aponta e reconhece o contraditório, afinal, se a vingança é um prato que se serve frio, a Justiça, por outro lado, vem aquecida pelo fogo do grande Rei. Esse machado potente, importante símbolo da resistência dos descendentes de escravizados no Brasil (portanto, referencial quilombola) voltou a ser o símbolo da Fundação Cultural Palmares, pois havia sido retirado pela anterior despresidência da Fundação, a qual também tentou, como outra estratégia de branqueamento, alterar o nome da instituição para Princesa Isabel após intensos contatos com os Orléans e Bragança, herdeiros de uma inexistente casa real brasileira. O Rei/Pai Xangô, por outro lado, foi saudado no dia da concorrida posse das Ministras Anielle Franco (Igualdade Racial) e Sônia Guajajara (Povos Indígneas), juntamente com divindades dos povos originários das florestas brasileiras, a lembrar que no estado laico a liberdade de culto é de todos ou de ninguém. O Pai tá on.”

Iconoclastia ou Iconoclasmo (do grego “ícone” = imagem, e klastein = “quebrar”, portanto, “quebrador de imagem”) é a rejeição de imagens religiosas (pinturas, ícones, estátuas), sendo certo que movimentos iconoclastas povoam os livros de História. No Império Bizantino, entre os séculos VIII e IX da Era Comum, mosaicos, afrescos, estátuas de santos, pinturas, ornamentos, livros com gravuras e inumeráveis obras de arte foram destruídos por turbas de fanáticos. Durante a Reforma Religiosa do século XVI, calvinistas tomados pela cólera invadiram igrejas católicas e destruíram ícones sagrados do catolicismo. Em março de 2001, por ordem do governo teocrático do Talibã, as gigantescas estátuas dos Budas de Bamiã (Afeganistão) foram destruídas.

O Brasil também assinou o livro da história do iconoclasmo, como alguns vão recordar. Na madrugada do dia 12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, Sérgio Von Helder, à época bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), atacou com socos e pontapés uma imagem de Nossa Senhora Aparecida diante das câmeras de TV, demonstrando hostilidade à escultura da santa. Além de “chutar a santa”, Von Helder proferia palavras ofensivas. A cena, originalmente levada ao ar em um programa religioso da Rede Record, propriedade da IURD, foi repetida centenas de vezes nos telejornais de outras emissoras. Pode-se dizer que o “chute” de Sérgio Von Helder foi o prenúncio da “retórica do ódio”, pois, a partir desse ato, tornou-se comum desferir chutes e pontapés na diversidade.

A contar desse momento, organizações fundamentalistas, iconoclastas, religiosas e políticas (essa promiscuidade sempre perigosa) se expandiram e aprenderam agilmente que um único pastor pode fazer o trabalho de uma centena de soldados.  A partir da década de 1990, essas forças retrógradas, reacionárias e fascistas construíram uma poderosa midiosfera, a saber, um ecossistema comunicacional voltado para a formação massiva de mentalidade.  Por meio de “estratégias sensíveis”, essa rede colonizou afetos e edificou uma ordem imaginária na argamassa impetuosa da cultura do ódio. De acordo com essa ordem, o “outro” personifica o mal e não deve ter direito à existência, por conseguinte, deve ser eliminado. Dito de outra forma, o “outro” é declarado inimigo e merece pontapés. Furtivamente, o país do “homem cordial” foi se transformando no país da intolerância.

Contribuiu fortemente para a cultura da intolerância e do ódio o advento e a expansão da cibercultura. Milhões de pessoas consomem diariamente conteúdos provenientes das redes sociais digitais, de modo que, por meio de uma inteligência artificial algorítmica, o sistema identifica os gostos e as preferências e, no intuito de manter os usuários fiéis, seleciona os conteúdos que vão ao encontro do paladar do consumidor. Por conta disso, milhões de pessoas cresceram em bolhas, lendo e escutando mais do mesmo, sem o desconfortável e angustiante sabor do dissenso. Apesar do desconforto, sem angústia não há crescimento, mas a consciência infantil não suporta o sortimento do mundo e, quando contrariada, essa psique reage com violência e o ódio emerge contra aquele que confronta. De fato, a psique infantil é narcísica e, para ela, tudo que não é espelho é feio.

Se a cultura do ódio já era perceptível no varejo e em formato discursivo nas redes sociais digitais, no domingo, 8 de janeiro de 2023, a nação brasileira assistiu ao vivo e pelas telas à amplificação massiva da psique infantil, narcísica, iconoclasta e que faz do ódio a sua retórica preferencial.  

O líder da horda infantil jazia em uma mansão em Miami. O autodenominado “imbrochável”, inconformado com a derrota nas eleições, incitou seus asseclas a um ato de onanismo golpista. Assim, organizada e financiada pela elite do atraso, a massa acéfala invadiu a Praça dos Três Poderes em Brasília e, à semelhança do Bispo Von Helder, chutou e destruiu os símbolos da República Brasileira: as sedes dos poderes Executivo (Palácio do Planalto), Legislativo (Congresso Nacional) e Judiciário (Supremo Tribunal de Justiça). Pareceu-me uma miragem fetichista de interdição do gozo e de insatisfação da vida sexual projetada nos ícones dos três poderes da república.

Um exemplo emblemático foi o ataque desfechado contra a escultura Thêmis, obra de Alfredo Ceschiatti, que fica em frente ao edifício do Supremo Tribunal Federal, vandalizada com os dizeres “perdeu, mané”.  

Afirma Lacan que, na reação do ódio, o sujeito revive o drama edipiano e se percebe imaginariamente despojado do objeto de seu desejo. Ao mesmo tempo que o rival o priva de seu objeto, a estrutura imaginária do ódio invejoso se revela fundadora do objeto desse desejo, deixando transparecer seus predicados. Essa imagem odiada lhe revela um objeto perdido que reativa a dor da frustração primordial da separação da mãe. Essa inveja se mostra como irmanada ao desejo, ou seja, o pichador iconoclasta sente-se interditado no seu gozo e expressa a sua inveja na escultura. Uma vez que a escultura pode gozar e ele não, o iconoclasta infantil procura gozar expressando uma inveja destrutiva, que se amplifica na medida em que a imagem da Justiça é uma deusa feminina, medida do ressentimento de um patriarcado destroçado.

Após o anúncio e a confirmação da vitória do Presidente Lula nas eleições de 2022, a horda primitiva inconformada foi tomada pela frustração e pelo ódio e, como uma criança que perde o seu objeto de desejo para o rival, eivada pelo ressentimento, passou a atacar a democracia fechando rodovias e performando cenas que atraíram a atenção até de psiquiatras e psicanalistas. Estávamos diante de um contágio psíquico e da loucura das massas?

A psique pueril, vendo-se subtraída da sua fantasia de poder, ocupou os espaços públicos e aos gritos suplicava por uma intervenção militar. Nesse cenário, as forças armadas correspondem simbolicamente à hipostasia do grande pai que deveria socorrer os desamparados. A despeito de conspirações subterrâneas, o pai da horda manteve-se isolado e em silêncio.

O complexo infantil se inflamou depois da linda posse em 1º de janeiro de 2023, uma cerimônia comovente e repleta de emoção. O candidato derrotado não teve a maturidade para transmitir o cargo e, como uma criança birrenta, fugiu. Diante do vácuo, o Presidente Lula subiu a rampa do Planalto acompanhado de oito representantes de grupos sociais, que passaram a faixa presidencial ao novo chefe do Poder Executivo.

Francisco, filho de uma assistente social e de um advogado que atuam nas causas sociais, é um menino preto de 10 anos que mora em Itaquera, periferia de São Paulo.

Aline Sousa, catadora de materiais recicláveis desde os 14 anos, sendo a 3ª geração da profissão na família — sua mãe e avó materna são catadoras da mesma cooperativa -, é mãe de seis filhos. Em 2012, ela foi eleita diretora secretária da Rede CENTCOOP-DF e, três anos depois, a primeira presidente da entidade. Atualmente, é responsável pela Secretaria Nacional da Mulher e Juventude da Unicatadores.

O cacique Raoni Metuktire dedicou sua vida à defesa da Amazônia e dos povos da floresta, e é reconhecido por indígenas e ribeirinhos como um dos principais representantes da luta pela preservação da floresta e dos povos amazônicos. Da aldeia Kraimopry-yaka, onde nasceu, o cacique rodou o mundo pedindo paz, e com 90 anos segue engajado na causa.

Weslley Viesba Rodrigues Rocha, metalúrgico desde os seus 18 anos, é natural de Diadema, casado e pai de dois meninos. Formou-se em Educação Física com o auxílio do Programa de Financiamento Estudantil (Fies). Também possui na sua formação os cursos técnicos profissionalizantes de Desenho Técnico, Matemática Aplicada, Eletricista e Comandos Elétricos, do Senai e da Escola Livre para Formação Integral “Dona Lindu”. Ele também é DJ em um grupo de rap chamado ‘Falange’ e conta sua caminhada e luta por meio da música.

Murilo de Quadros Jesus é professor, tem 28 anos e é formado em Letras – Português e Inglês pela UTFPR. Morador de Curitiba, Murilo atuou como professor de português como língua adicional na Universidad de La Sabana (Bogotá, Colômbia) entre 2016 e 2017 e foi bolsista Fulbright como professor de português na Bluefield College (West Virginia, EUA) entre 2021 e 2022.

Jucimara Fausto dos Santos mora em Maringá, Paraná, é cozinheira e foi em um concurso de culinária na Vigília Lula Livre que ela foi chamada para fazer pão. Cozinhou lá durante dez meses e hoje trabalha para a Associação dos Funcionários da Universidade Estadual do Maringá e faz pães para doação.

Ivan Baron é um jovem potiguar que teve meningite viral, doença que causou a sua paralisia cerebral aos três anos de idade.

Flávio Pereira tem 50 anos e mora em Pinhalão, no Paraná. Ele é artesão e esteve na vigília Lula Livre durante 580 dias ajudando nas atividades do cotidiano.

Além dos oito cidadãos, a cadela Resistência também subiu a rampa do Palácio do Planalto. A cachorrinha foi adotada com quatro anos por Janja quando Lula esteve preso em Curitiba, em 2018. Sem raça definida e sem um tutor, ela ficava no acampamento em frente ao presídio em que o presidente estava.

Essa cena, que ficará para sempre registrada na História do Brasil, significou o povo brasileiro tomando posse de si mesmo. Justiça foi feita.

Na segunda-feira, 9 de janeiro de 2023, o Presidente Lula, ao lado de toda sua equipe, bem como os integrantes do Legislativo e do Judiciário, foram ver de perto os rastros de destruição. Aproximadamente mil e quatrocentas pessoas foram presas.

Os eventos de 8 de janeiro evidenciaram muitas camadas da psique coletiva. Uma delas é que Von Helder fez escola. Os bolsonaristas fanáticos, os neopentecostais cegos e os patriotas canalhas estão dispostos a continuar a dar chutes e a destruir os pilares da democracia: a liberdade e a justiça. Outra evidência é que as instituições, apesar de ainda estarem aparelhadas com células de membros da extrema-direita, são capazes de reagir e de preservar a democracia.

 

A despeito da cólera dos fanáticos ressentidos, narcísicos, infantis e recalcados, Themis, Tupã e Xangô estão vivos nos corações do povo brasileiro. “Por uma Justiça que se cumpra e um direito que nos respeite.”

Agradecimentos

Ao Miller Guglielmo pela Ilustração, ao Ademir Barbosa Júnior pela interlocução a respeito da mitologia dos Orixás e a Sofia de Souza Ramos pela revisão textual.


Ilustração de Capa: Miller Guglielmo 

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