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Por que a gente é assim?

Há uns dias, um amigo postou um tweet no qual criticava a necessidade que muita gente tem de explicar a homossexualidade ou o ateísmo em função de algum evento trágico ou doloroso na vida do homossexual ou do ateu. Quando li esse tweet, lembrei-me de outro que havia lido recentemente, no qual alguém perguntava o que levava uma pessoa a sentir-se atraída por pessoas gordas. A esse segundo tweet, respondi perguntando o que levava uma pessoa a sentir-se atraída por pessoas magras.

No fundo (ou nem tão no fundo assim), o que essas pessoas querem mesmo saber ou explicar é porque os homossexuais, os ateus e os que gostam dos gordos não são “normais”. A verdadeira pergunta por detrás da busca de uma explicação para que essas pessoas sejam como são é: “por que você não é como deveria ser?” E não chega a ser surpreendente que a maneira mais fácil de encontrar uma justificativa para a suposta infelicidade de não ser como os outros seja através de um trauma qualquer, forte o suficiente para desviar uma pessoa do seu caminho “natural”.

Admito que algumas (ou mesmo muitas) das pessoas que fazem esse tipo de pergunta ou que propõem esse tipo de explicação possam não fazê-lo por mal. Talvez elas estejam genuinamente preocupadas conosco (pois, embora não seja ateu, sou homossexual e gosto de gordos, entre outros desvios). Talvez elas realmente sintam a necessidade de compreender o que nos leva a ser como somos. Talvez algumas delas sintam-se de alguma forma culpadas e responsáveis por essa situação que consideram lamentável (“onde foi que nós erramos?”, perguntam-se muitos pais de homossexuais). E talvez não percebam o quanto pode ser ofensivo, doloroso, incômodo ou simplesmente irritante ter que se justificar a todo momento por algo que simplesmente é do jeito que é. 

Não digo isso para desculpar ou normalizar a homofobia nossa de cada dia. Pelo contrário, estou convencido de que a homofobia, assim como o racismo, o machismo e todos os discursos e práticas que buscam eliminar ou subordinar as diferenças, devem ser denunciados e desconstruídos a cada oportunidade. Mas suspeito também que perceber melhor como se estruturam os mecanismos criados e desenvolvidos para controlar as diferenças, quando não as eliminar, é essencial para, justamente, combatê-los. Inclusive em nós mesmos. O que não elimina, naturalmente, a necessidade e a urgência de medidas e políticas públicas que coibam comportamentos homofóbicos e discriminatórios de um modo geral e que garantam o direito de todos a uma vida digna e sem violência. 

“Não se nasce mulher. Torna-se mulher.” A famosa afirmação da pensadora, escritora e intelectual francesa Simone de Beauvoir na clássica obra “O Segundo Sexo” tem um alcance que vai muito além da questão feminina. Eu diria mesmo que ela se aplica a todos nós. E ousaria talvez sugerir que o que nos tornamos antecede nosso nascimento. Chegamos ao mundo com nosso lugar marcado. O quarto já pintado de azul ou rosa, as roupas já escolhidas sob medida para o que se espera que venhamos a ser. Isso sem falar nos condicionantes socioeconômicos e étnicos que delimitam o espaço dentro do qual poderemos nos mover. Para o mundo que nos cerca, já nascemos homem, mulher, branco, negro, indígena, rico, pobre, ou qualquer combinação desses fatores. E não se espera mais de nós do que aprender direitinho o nosso papel e desempenhá-lo da melhor maneira possível.

O problema é que, como diz Caetano Veloso, “a vida é real e de viés”. Nem sempre nascemos vocacionados para nos tornar o que o mundo espera que venhamos a ser. Nesse sentido, talvez o trauma que aqueles que querem explicar nossas diferenças definindo-as como desvios gostam tanto de invocar exista de fato, mas tenha uma outra natureza. Não se trata de um trauma que nos desvia do bom caminho, e sim o trauma permanente (ou quem sabe uma sucessão de traumas) de se ver ou de se sentir obrigado a caber dentro dos limites estreitos que tentam nos impor e nos quais, muitas vezes, acabamos acreditando. Quantas vezes não nos culpamos por não sermos o que esperam de nós e não buscamos, nós também, explicações para isso no nosso passado, na vã esperança de quem sabe corrigir o nosso rumo (mesmo que no fundo saibamos que isso é impossível)?

Lembro-me com muita clareza do momento em que decidi, pela primeira vez, engajar-me num processo terapêutico. Eu tinha recém completado 29 anos e estava caminhando numa praia meio deserta no litoral do norte fluminense. O dia estava um pouco nublado e, olhando para o céu, vi nuvens muito escuras se aproximando. Vem uma tempestade por aí, lembro de ter pensado, e preciso preparar-me para enfrentá-la. E para isso vou precisar de ajuda. Logo que voltei ao Rio de Janeiro, onde morava, liguei para uma amiga e pedi-lhe uma indicação de um terapeuta. Poucas semanas depois, começava minha terapia numa casinha no bairro do Jardim Botânico, que frequentei por uns quatro anos. 

Quando penso naqueles anos e no que me levou à terapia, o que me vem à cabeça em primeiro lugar é a ideia de bloqueio. Objetivamente (seja lá o que isso quer dizer), não havia nada de errado na minha vida naquele momento. Tinha um emprego estável e um namorado, morava sozinho num pequeno conjugado que pagava com o meu salário, tinha até um carro. Entretanto, eu não estava satisfeito ou feliz. Não porque eu achasse que aquilo tudo fosse insuficiente, em termos de sucesso material, mas porque algo em mim dizia que aquilo não era realmente o que importava. Como na música do Raul Seixas, no fundo eu achava aquilo tudo uma grande piada e um tanto quanto perigosa. Mas, ao mesmo tempo, sentia-me bloqueado e sem saber muito bem que direção seguir. E suspeitava que, para desfazer esse nó no qual me sentia aprisionado, tinha que entender melhor como eu tinha chegado naquele ponto.

Devo dizer que a terapia deu muito certo. Quatro anos depois, eu estava largando meu emprego estável (o namorado já tinha ficado no caminho). Paralelamente, começava uma outra jornada com a minha iniciação no candomblé, que redefiniu os rumos da minha vida. Muita coisa aconteceu desde então. Reencarnei em outra profissão que me tem proporcionado inúmeras oportunidades de ampliação de horizontes. Casei. Enfrentei e continuo enfrentando novos bloqueios. Faz parte. Alguns remetem a antigos fantasmas, outros surgem em função das próprias circunstâncias. Não faço terapia de modo regular há alguns anos, mas tenho minhas ferramentas para lidar com os bloqueios quando eles aparecem. E quando achar que elas não estão dando conta do recado, recorrerei à terapia novamente.

Porém, quando isso acontecer, se acontecer, mergulharei no processo terapêutico com a plena consciência de algo que eu somente suspeitava ou intuía quando fiz terapia pela primeira vez: a utilidade e o sentido da terapia não é explicar porque sou o que sou, e sim me ajudar a remover os obstáculos que me impedem de ser o que sou: um campo singular de possibilidades que descubro e atualizo na medida em que o exploro. E que, enquanto houver vida, nunca se esgotará.

Até a próxima!

PS –  As músicas de hoje não precisam de explicação: “Por que a gente é assim?”, com o Barão Vermelho; “A Luz de Tieta”, com Caetano Veloso e Gal Costa; e “Ouro de Tolo”, com Raul Seixas.

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