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Política e Sombra Coletiva

O conceito de sombra foi desenvolvido por Carl Gustav Jung sob a rubrica teórica da Psicologia Analítica.  Jung propôs uma definição mais direta e clara da sombra: “a coisa que uma pessoa não tem desejo de ser” (OC 9/2, § 13). Com isso, a sombra não é dotada de juízo de valor, maniqueísmos ou posições absolutas de boa ou ruim, bem ou mal, pois ela é apenas o contraponto compensatório da consciência do ego, ou seja, da consciência que o ser humano tem de si mesmo.

Sombra é todo conteúdo pessoal, rejeitado pelos padrões sociais que a pessoa reprime com receio de não ser validada pelo ambiente cultural. O ser humano teme sua própria sombra, pois nela pressente a presença de tudo que, na verdade, desejaria esquecer ou fingir que nunca existiu.

Como a sombra é indesejável, nós preferimos projetar no “outro” aquilo que rejeitamos em nós mesmos. A projeção é um mecanismo muito usado pelo ego. Por meio da projeção, a pessoa transfere o ‘mal’ que o aflige no outro.  Este “outro” pode ser o governo, o chefe, o pai, a mãe, a namorada, a esposa, o sistema, o partido político. Pelo mecanismo de projeção, o outro   é sempre o responsável pelos nossos males.

A sombra é o pano de fundo da polarização. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso grupo”, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Quando nos deparamos com um “outro”, o grupo “do diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis.

E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe. E quando esse “outro” apresenta características que o “eu” não suporta de tão temerário o “outro” emerge como o “mostro” que precisa ser destruído.

Por isso, em épocas de eleições, observa-se a projeção da sombra coletiva. O filósofo renascentista italiano Nicolau Maquiavel escreveu em sua obra O Príncipe que “o sentido da política é a conquista e a manutenção do poder”. Nesse sentido, a disputa pelo poder sempre carrega projeções sombrias uma vez que o político oponente passa a ser o alvo das projeções sombrias.  É sempre o oponente ‘outro’ que é portador do mal. O recrudescimento das projeções sombrias fortalece o clima de polarização uma vez que a projeção separa, desune, aparta, segrega e marginaliza o outro estabelecendo sentimentos de ódio e intolerância.

Como agir em épocas de polarização e projeções de sombras coletivas?

Aprendemos que não há manifestação no mundo psíquico que não esteja envolta em uma polaridade. Um polo não existe sem o outro. A psique humana é complexa, diversa e indeterminada.   Ter a consciência que esses opostos vivem dentro de nós possibilita dar permissão para que eles se manifestem fora de nós e reconheçamos como nossos também. Nossos opostos precisam ser confrontados, compreendidos, aceitos e integrados.

O desafio consiste em integrar a sombra, ou seja, dar um lugar na nossa existência. Reconhecer a sombra, pois quanto mais acolhemos a sombra viveremos mais integralmente. Integrar não significa dar a sombra o controle. Mas significa reconhecer que ela existe e que faz parte da nossa cultura.

A pessoa que enfrenta a própria sombra será convocado não apenas ao conceitual “conhece-te a ti mesmo” socrático, mas ao pragmático “torna-te quem tu és” nietzschiano.

 

Jorge Miklos

Sociólogo, psicólogo e psicoterapeuta na abordagem analítica integrativa. É mestre em Ciências da Religião e doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutorado em Comunicação Comunitária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisa a interface entre Psicanálise, Religião e Cultura. Suas reflexões abordam o vínculo social, o mito, a literatura, a produção audiovisual, a cibercultura, os conflitos, a política e as questões contemporâneas como gênero, masculinidades, religião, vida digital e diversidade. Atua como Professor de Psicologia Analítica do Instituto Freedom.

Foto de Capa por Pixabay do Pexels

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