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Poder e vida na ópera Turandot

Há algo de comum entre a ópera Turandot, cujo enredo muito me interessa, e a genealogia do poder na nossa sociedade. Ao analisar o enredo da obra, reflexões importantes sobre o poder e a vida surgem, principalmente numa época em que beiramos o poder antidemocrático.

“Turandot” é uma ópera de Puccini, que conta a história da cruel e despótica princesa Turandot, da China. Obrigada por seu pai a se casar, ela inventa um artifício para se ver livre de seus pretendentes: ela impõe a todos os príncipes que a cortejam decifrar três enigmas dificílimos, que eles nunca saberiam, e ela manda decapitar a todos os malfadados. Turandot é uma assassina sádica e estabelece um reinado de terror na China imperial, a ponto de preocupar seu pai, o imperador e os funcionários do palácio. Ela não quer se casar porque uma antepassada sua de um milênio atrás havia sido estuprada por um invasor tártaro, e, mesmo depois de tanto tempo, ela se mostra traumatizada com isso. E é exatamente um príncipe desse povo tártaro, cujo pai está exilado na China, é que se candidata à sua mão e consegue responder aos seus enigmas, depois que todos o tentam demover do intento. Turandot então implora para não se casar, mas seu pai a obriga. O príncipe tártaro, vendo seu desespero, resolve pagar com a mesma moeda: se ela responder a um enigma, está livre dele, e ela o pode decapitar. Ela tem até o amanhecer para descobrir o nome do príncipe. Sem saber como fazer isso, a déspota proibe que todos os pequineses durmam até que alguém descubra o nome do príncipe. Aterrorizados pelo monstro que os governa, denunciam o pai do príncipe, o rei exilado, cuja escrava era apaixonada pelo pretendente da princesa. Turandot os tortura, mas é em vão. A escrava morre durante a tortura e Turandot perde a demanda. Instantes antes de o sol nascer, após humilhá-la, o príncipe revela seu nome a Turandot, que ordena a sua execução, imediatamente.

O enredo romântico da ópera tem como plano de fundo a tirania, o poder despótico de uma princesa absolutista. Ao caracterizar o enredo de romântico, não significa que seja, exatamente, um idílio amoroso. A ópera, ao contrário, possui um enredo fantasioso, sentimentalista, aterrorizante e dramático. Baseada numa peça de duzentos anos antes, quando o Romantismo europeu ainda estava se desenvolvendo na Inglaterra e Alemanha, a peça mostra características do movimento que ainda estava por surgir: gosto pelo trágico, pela cultura oriental e suas “bizarrices”, quando comparadas com a cultura europeia, obsessão pela morte e pelo terror. Peças teatrais e romances de 100 anos depois teriam essas características. Portanto, em 1926, quando Puccini escreve suas óperas, obcecado por personagens neuróticas e cruéis, ele retoma características do Romantismo, visto que a princesa não é uma personagem da realidade, ao contrário, parece uma entidade divina ou ainda diabólica. O terror, as características satânicas das personagens, a aura de mistério e suspense, tudo remete ao Romantismo, inclusive: a animalização do homem, a idealização do poder e seus agentes, a ausência de racionalidade.

A ópera é lançada exatamente na Itália fascista, do período entre guerras (1918-1939). É impossível não se relacionar a figura da princesa sádica com a do Duce, Benito Mussolini, que havia se erigido ao poder dois anos antes. Puccini viveu numa Europa em que o capitalismo e a Revolução Industrial tinha levado o continente a um estado de constante conflito, e conflito armado. Enquanto o fascismo dominava a Itália, tornando-a uma ditadura agressiva, assassina, o nazismo estava se gestando na Alemanha e logo uma onda de conservadorismo e extrema direita assolava o continente, apressando o conflito de 1939. Vemos Turandot nos governantes da época. Na loucura de Mussolini e Hitler, nos totalitarismos e ditaduras que passaram a acontecer em todos os lugares do continente.

O passado retorna para atormentar Turandot. A figura de sua ancestral, estuprada por um conquistador tártaro, retorna na figura de Calaf, o príncipe sem nome. Aquele que vence seus jogos sádicos, cruéis, mas se mostra dono de um amor abusivo, que devolve a ela na mesma moeda. Para se ver livre do príncipe, Turandot propõe enigmas. Ele, para humilhá-la, testar seu poder e sua capacidade, propõe um enigma também. Ambos juntos, assemelham-se tipos como Mussolini e Hitler. Não importa que a cidade de Pequim inteira não durma, morra ou sofra nas mãos da sua governante psicopata. Calaf também não se importa. Esse tipo de poder absoluto e delirante também fez escola na Europa. Em todos os tempos: Antiguidade, Idade Média, tempos modernos ou contemporâneos sempre houve reis absolutistas. E em suas mãos, o mesmo poder que estava nas mãos da princesa pequinesa: o poder de FAZER MORRER e DEIXAR VIVER.

Para Foucault, filósofo francês do século passado, esse poder não favorece a vida, não a administra, demanda violência e controle extremos. Esse tipo de poder não protege a vida. Ao contrário, usa-a em favor dos caprichos de um soberano sempre infinito, divino e inquestionável. O despotismo, a tirania, a ditadura de uma classe sobre a outra, o conservadorismo, todos têm o mesmo poder que, mesmo em épocas distantes da China imperial de Turandot, parecem nos assombrar na figura de um presidente, talvez de um primeiro-ministro. Ou de legisladores maus. Assim como Turandot não pouparia a vida de seus súditos, muitos governantes não pouparam vidas em nome de seus caprichos. Mil e quinhentos, dois mil anos separam a era de Turandot dos tempos modernos. Mas seu espírito ainda vive nas ações do governo de seu povo, capaz de mobilizar e proibir com força e medo, capaz de controlar o que seus cidadão devem ou não fazer de maneira absoluta.

Mas Turandot também está na figura de déspotas dentro do armário, como o presidente que deixou o poder no Brasil, gestando morte e antidemocracia. Ele nunca teve o poder dela, mas sempre quis pautar suas ações com violência simbólica e concreta, e sempre tentou buscar meios de totalizar em si mesmo o poder, mesmo sendo frustrado. Mas o povo brasileiro, esse sim, sofreu como os pequineses sofriam com a princesa assassina de Pequim. A sorte é que a noite de quatro anos, em que não pudemos dormir enquanto nosso sádico buscava o que queria, acabou-se. Para sempre.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

 

Capa: imagem de divulgação do site de The Metropolitan Opera, disponível em: https://www.metopera.org/discover/synopses/turandot/

 

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