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Playlist no aleatório, psique e a luta de classes

fosoforos com um queimado

Eu não iria tratar dessas temáticas de início. Eu estava pensando em tratar do mês do orgulho, as sensações de pertencimento e aceitação, e o modo como esses processos vão afetando os nossos entornos etc., enquanto eu olhava alguns textos que eu havia feito nesse semestre de faculdade. Mas, eu estava com a playlist no aleatório.

Geralmente escuto lofi quando estou escrevendo ou estudando, no entanto, dessa vez, eu deixei em uma lista do youtube e depois de uns minutos tocou em sequência “Semana Que Vem da Pitty, “Tô Pra Vê” do Criolo com o Rael e “Sem nome, mas com endereço” da Liniker, e um turbilhão de pensamentos e emoções que me atormentaram nesse semestre vieram a cabeça. Na última aula, um dos professores fez reuniões com cada um dos alunos, valendo-se do mesmo estilo de empresa para falar sobre o desempenho.

A mim ele questionou o porquê da queda d minha produção. Expliquei que eu estava em condições de trabalho terceirizado, com grandes jornadas, de domingo a domingo, mal remunerado, tendo que fazer bicos no fim de semana para complementar a renda, e, junto disso, noites de insônia e crises de depressão. Foi um pouco difícil falar sobre o que eu estava passando, pois eu tenho muitas travas que me impedem de desabafar mesmo com amigos próximos e assim que terminei de falar o professor me respondeu: “Tudo bem. Você fechou as três matérias com média sete, mesmo com os atrasos. Precisa melhorar, então acho bom você aproveitar melhor suas noites de insônia. Sim?”. Fiquei atônito por uns cinco segundos antes de responder um “sim” abafado e só fui pensar nisso de novo quando cheguei em casa e aí comecei a me sentir mal. Mas passou rápido. E aí que entram as duas primeiras músicas.

Enquanto tocavam, eu olhava os textos produzidos e me lembrava de que, apesar da minha situação econômica e psicológica, eu tinha que continuar produzindo, me esforçando, trabalhando e fazendo o melhor que eu posso. E sim, aproveitar as noites em claro para fazer os trabalhos, lendo mais, estudando mais… também arranjar mais um bico no fim de semana para melhorar a renda… Que problema eu tenho para já não ter feito isso? E, é lógico, não vamos pensar nisso durante uma crise, e talvez nem depois dela, mas é uma tragédia como de modo catastrófico o Ethos liberal da nossa sociedade tem a capacidade de estraçalhar a nosso psicológico e emocional em um único momento, e, com isso, nos fazer sentir culpados, ao invés de analisar isso como um fenômeno social na organização da nossa sociedade.  Dias depois, mexendo no Google Podcasts, ouvi o episódio 141 do Revolushow, onde os hosts falavam com Heribaldo Maia sobre o seu livro “Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas Universidades”.

Um dos dados apresentados por Heribaldo é: “passou de 27% para 86% o número de estudantes que dizem ter tido abalos emocionais, afetivos ou psíquicos em decorrência da atividade acadêmica de 2004 a 2018”. Também demonstrou ser o período noturno com o maior número de alunos na situação, mas precarizada. Inclusive o autor e entrevistado do Podcast afirma ter vivido essa situação, e, devido a esse fato, quase desistiu do curso, tornando-se o motivo para o trabalho apresentados em seu livro, apresentando um ponto de análise social e é nessa ideia que acontece a virada de pensamento sobre o que eu havia sentido, mas vamos por partes.

Estudos que se debruçam sobre esses assuntos vem desde o século XVIII. Engels, por exemplo, em 1845 escreve “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” abordando a precarização da classe que vivia com pouca comida, nas piores moradias, com uma saúde lastimável e sem a mínima expectativa de melhora de vida, dentre outros pauperismos, e assim condicionadas a passar fome e ser explorado até a morte, entrar para o crime ou se suicidar.

Então chegamos a 2022, onde sindicatos mal tem poder de barganha, direito trabalhistas foram sucateados e vamos ter que trabalhar até no mínimo 65 anos para aposentar, sem esquecer os que não vão aposentar porque ou seja trocamos uma jornada de dezesseis horas em uma fábrica para dirigir um carro contratado por um aplicativo? Em tese sim. No entanto, deixar tal paralelo tão simplista assim é, além de uma ingenuidade, um insulto à inteligência de você que está lendo, então vamos a análise histórica.

Engels faz essa análise no fim da primeira revolução industrial, período no qual o movimento sindicalista e os sindicatos estavam se organizando legalmente, pois só em 1824 o parlamento inglês aprova o direito à livre associação, antes disso as manifestações de qualquer forma eram reprimidas violentamente e ainda vai demorar até 1830 para uma grande movimentação de massas em prol do reformismo na Inglaterra que viria ser conhecido como Cartismo.

Com os anos os sindicatos ingleses se organizaram tão bem a ponto de auxiliar igualmente trabalhadores afastados da produção devido a problemas de saúde, greve, problemas familiares etc. por meses garantindo salário e auxílios; principalmente no setor de mineração de carvão. Quando Margaret Thatcher se tornou a primeira-ministra do Reino Unido, no período 1979 a 1990, e tomou medidas para fechar minas e fazer demissões em massa, os protestos e conflitos começam e deflagrando uma greve de um ano.  Infelizmente Thatcher sai vitoriosa desse impasse, usando da desregulamentação da importação de carvão, tornando mais barato importar do que extrair, além de promover a retirada de benefícios dos sindicatos, que com o passar do tempo acabaram ficando sem dinheiro para manter a greve e perdendo metade dos seus filiados.

Assim sendo, tem-se o início da desindustrialização do Reino Unido e a financeirização do país, o que faz a população se mover para a área de serviços. Com isso, o caminho para o capitalismo tardio; uma terceira fase do capitalismo resultante do modus neoliberal; é feito e teremos novamente pessoas trabalhando dezesseis horas por dia e quase nenhum bem-estar social, porém agora atrelados a formas de trabalho intermitente, intensificado com pandemia, a pressão moral de saber que você poderia estar pior e que por isso tem de ser grato que está ligada ao Ethos liberal, que ordena as características morais e sociais do comportamento da cultura que é a raiz das ideias e costumes da sociedade, em parte ligado a essa moral e te culpabiliza por não você não estar em uma situação melhor por “falta de esforço, porque as oportunidades estão ai” ou “se esforce mais que você consegue” e qualquer outra frase motivacional pronta. E com isso é gestada uma sociedade com índices alarmantes de doenças ligadas a psique.

Agora a indagação principal que surge disso, que é a mesma que Freud propôs em 1929 em O Mal-estar na Civilização: é possível pensar saúde em uma cultura doente? Primeiro que não há uma resposta simples ou exata para essa pergunta, mas se objetivo é a melhora vejo três pontos que seriam o caminho: mudança do pensamento e da estrutura social, coletividade e políticas públicas.

A estrutura social que vivemos, moldada pelo capitalismo, reproduzindo a mentalidade do racismo estrutural, homofobia, machismo, gordofobia etc., e do Ethos liberal, acaba por essencializar a pessoa, pondo-a como se suas decisões e comportamentos fossem algo natural, próprio delas, e não como existisse uma estrutura que a induz a tomar determinada ação ou condicioná-la a determinado pensamento. Então, a forma para quebrar o modo com que essa estrutura social opera é gerar uma mudança de pensamento e realizar a mudança estrutural, por meio da luta política, atrelado às políticas públicas e a mudança do pensamento pessoal. Isso possibilitaria demolir essa estrutura que nos faz jogar a culpa exclusivamente para o individual/particular, como o Ethos liberal manda. E sequer estou falando de uma revolução aos moldes marxistas.

Obviamente, uma reformulação do capitalismo poderia gerar essa mudança, mas provavelmente seria revertida em prol dos interesses da burguesia, apresentando-se à sociedade como uma melhoria, mas sendo, na verdade, algo prejudicial, bem próxima da realidade experimentada na Europa vista por Engels, no Reino Unido de Thatcher ou no cenário brasileiro atual. É a serpente engolindo a própria cauda.

Abordando a coletividade vale citar o trabalho de mestrado de Guilherme Boulos, intitulado: “Estudo sobre a variação de sintomas depressivos relacionada a participação em ocupações de sem-teto em São Paulo”. Em sua dissertação, Boulos realiza uma pesquisa com aproximadamente trezentas pessoas, todas elas recém ingressadas nas ocupações. Posteriormente, de modo a comparar e obter mais os dados, refaz a coleta de dados com os mesmos indivíduos, agora integrados à realidade das ocupações, constatando melhoras significativas de quanto entraram meses antes. E o porquê disso? O principal seria o sentimento seria o de acolhimento, a sensação de se sentir útil, de que as pessoas se importam com você. Boulos afirma em seu trabalho: “Havia algo ali, além da demanda de moradia, que as motivava e fazia com que se sentissem melhor e até curadas da depressão”.

E, numa cidade como São Paulo, isso quer dizer muito, já que segundo a FAPESP quase 30% dos habitantes da Região Metropolitana de São Paulo apresentam transtornos mentais, de acordo com um estudo que reuniu dados epidemiológicos de 24 países, e a prevalência de transtornos mentais na metrópole paulista foi a mais alta registrada em todas as áreas pesquisadas. Logo, observa-se a coletividade como um caminho não só para a união em prol de uma causa, mas como um processo de reabilitação e partilha e de quebra do Ethos liberal através dessa união.

Aqui a situação fica um pouco mais complicada. As políticas públicas dos últimos anos vêm justamente na contramão dos direitos trabalhistas e fortalecendo cada vez mais a precarização. Mark Fisher no livro “Realismo Capitalista” e no próprio blog “K-Punk” faz um trabalho primoroso usando de exemplos pop para descrever esses fenômenos do neoliberalismo e capitalismo atual e seus efeitos na psique humana. Porém, antes de falar das políticas públicas, vale falar de um caso que aconteceu recentemente ligado a movimentos trabalhistas. Em uma matéria da Agência Pública, realizada por Clarissa Lev, mostra a atuação do iFood na desmobilização dos trabalhadores através de uma agência de marketing, buscando enfraquecer o movimento liderado por Paulo Galo, iniciado em 2020, o qual busca garantir direitos para os trabalhadores de aplicativos.

Para atingir esse objetivo, eles usaram da estratégia conhecida como “Lado B”, utilizada em campanhas políticas e gabinetes do ódio. As campanhas grandes têm uma equipe Lado B que basicamente faz um conteúdo sobre os oponentes. A matéria explica que a campanha funcionou de modo que, ao invés do iFodd se posicionar oficialmente contra as manifestações dos motoboys, as agências contratadas criaram páginas que tivessem uma opinião contrária à de Galo e a do movimento dos Entregadores Antifascistas. Antes é preciso ressaltar que traidores da classe e do movimento sempre existiram, e provavelmente sempre vão existir, indo de apoiadores dos burgueses, outras lideranças que discordavam das formas, métodos etc. de protesto, ou agentes infiltrados e o que mais é possível pensar, a questão aqui é a “criação” de uma forma, ou ramo, de profissionalização do desmonte de movimentos de reivindicação de direitos – pra deixar essa ideia mais palpável imagine uma sketch do Porta dos Fundos com o título “Sabotagem” e nela Tabet apresenta uma empresa, com toda a irreverente e caricatura possível, de como o marketing de sabotagem é a área do futuro para o controle de funcionários e aumento de lucros.

E caso ainda pareça caricato demais, ou algo distante, procure o que a Amazon faz atualmente contra os seus funcionários e os sindicatos. – Então além do lobby que patrocina políticos para criarem leis e emendas que vão contra os interesses da classe trabalhadora, temos as empresas, que podem não exercer uma força como os lobistas, tentando destruir a principal forma de poder da nossa classe que é a organização. E isso é o que nos mostra que precisamos estar organizados e conscientes a cada dia mais e mais, mesmo com o nosso cotidiano nos cobrando de forma injusta. E não somente com consciência de voto e cobrando quem foi eleito a respeito de seus votos no plenário, como se organizar para levar projetos, organização social para exigir a aplicação desses projetos e de exigir direitos, reformas socies, dentre outras ações que depende do ambiente de políticas públicas.

Isso tudo é um grande exercício constante de construção e infelizmente o que eu estou falando pode muito bem soar como ideias do juspositivismo, uma ideia de trabalhar enxugando gelo uma vez em que estou trabalhando no campo das ideias, ainda que falando de algo passível de ser aplicável. Entre a ideia e a ação tem a materialidade, a capacidade de aplicação. Eu consigo aplicar essas três ideias de alguma forma no meu cotidiano, porque mesmo estando em uma situação de stress relativo, eu ainda estou em uma posição de conforto em relação às 33 milhões de pessoas não têm o que comer, às mais de 180 mil pessoas em situação de rua e eu ainda estou vivo, sorte que quase 700 mil brasileiros não tiveram por causa da COVID. Nesse ponto a questão acaba por se tornar pessoal, no entanto não deveria, só que trabalhar na materialidade é o que vai realmente fazer as coisas mudarem e não somente uma discussão metafisica, ajudar lutas como a do instituto pró-diversidade que está me concedendo esse espaço, o MTST, a CUFA, a ONG Interferência, enfim não falta quem precise de ajuda e tudo começa com organização.

E faltou falar de “Sem nome, mas com endereço” da Liniker. Bom, eu comecei a escrever esse texto depois que voltei para o interior, ontem eu moro, depois da semana que houve a Parada LGBTQIA+ em São Paulo, aproveitando ao máximo tudo o que eu podia, e quando começou a tocar essa música um amigo me mandou mensagem perguntando como eu estava e dizendo que estava com saudades; pouco tempo depois, outro amigo, que conheci naquela semana, também enviou mensagem dizendo o quando foi maravilhoso aqueles dias e que estava ansioso para a volta. Ao ler as mensagens todo o caos em minha cabeça se esfacelava e sumia…

[…]

Me pega pela mão

Te dou meu coração

Deixo você entrar

Me pega pela mão

Te dou meu coração

Deixo você entrar

Você tem flores na cabeça

E pétalas no coração

Tem raízes nos olhos, excitação

Acalanta o meu coração

[…]

 Aqui eu reservo um singelo agradecimento a todos aqueles que me perguntaram como eu estava, se eu estava bem, me abraçou, é impressionante quanto algo tão simples nos faz tão bem, e finalizo com uma frase atribuía a Frida Kahlo: “Ao fim do dia, podemos aguentar muito mais do que pensamos que podemos”.

 

Texto revisado por Salviano Nery

Foto de capa por Nataliya Vaitkevich em Pexels

 

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