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Pausa para um café

Xícara de café, caderno e caneta.

Só quem é professor sabe como é tomar café na escola. Geralmente, os colegas rateiam o pó, item proibido em todas as merendas escolares. Isso é interessante porque tem sempre os que tomam e nunca pagam, e tem aqueles que pagam e reclamam o tempo todo do tempero da bebida e não querem tomar mais. E as coisas seguem. O café não se paga sozinho, não se faz sozinho e num belo dia se acaba e não tem mais. Ninguém compra e ficamos sem, ai… Que falta ele faz. Logo um ou uma colega balança uma cédula de valor pequeno, mas suficiente para o que precisamos, o café sairá o próximo intervalo, quente e fresco. Sempre me ri dessa suposta antítese. Como o café pode ser fresco, se é feito com água em ebulição? Depois de meditar, descobri. É porque “fresco” significa novo, recém-coado, naquele momento em que o seu sabor e aroma são mais marcantes. E o líquido fumegante, aromático e delicioso se distribui entre os bebedores, cada um ao seu modo, com sua quantidade predileta.

Nesses meus 17 anos de carreira como professor, percebi que, mesmo podendo se acabar um ou outro dia, o café é mais constante que o próprio salário. Tirando os estudantes, o café é o que nunca falta numa escola. Fraco, forte, quente, frio, apreciado ou desprezado numa garrafa térmica ali no canto, é mais que uma bebida, é um hábito, é uma personagem. É ele que adoça bocas amargas ou amarga bocas doces. O café é a testemunha das agruras de um professor, ouvindo lamentos e tristezas entre os goles, ouvindo reclamações sobre alunos, responsáveis, salários baixos e condições de trabalho. Enfim, o café é tudo numa escola, menos os estudantes, claro.

Mas desde de que eu comecei a lecionar, no ano de 2004, eu tenho percebido que não há uma pausa para o café, um momento de relaxamento em que ele faz parte. Em algumas escolas ele é servido cedo, tomado às pressas entre o primeiro e o segundo sinal, queimando línguas apressadas, na hora da oração matinal dos colegas, de anúncios e avisos para a manhã letiva. No vespertino, é tomado como digestivo de professores que almoçaram às pressas entre dois turnos ou mesmo tiveram que comer mais cedo para estarem disponíveis à uma hora da tarde. O café parece uma espécie de combustível, de ânimo para aqueles que o tomam. Mas não há uma pausa, não há um momento dedicado ao lazer, em escolas, o tempo flui com muita rapidez, principalmente na hora dos intervalos, o café faz parte dessa dinâmica.

Muitas vezes, o café já acabou na hora do recreio, a não ser que que ele seja servido somente nessa hora, então é engolido de novo às pressas, na mesma dinâmica que é consumido antes da primeira aula: em pé, ou sentado, mas em meio a conversas rápidas, assuntos espremidos entre as obrigações, avisos, anúncios e instruções para as últimas aulas até o final do dia. Alguns se aproveitam do momento para consumir algum farináceo, outros tomam e repetem a xícara, ou o copinho descartável que vai ser esquecido sobre a mesa, para o horror da coordenadora, que pede que insistentemente usem a lixeira, que poupem copos ou que tragam de casa a sua própria caneca.

E essa moda até que pegou, os inícios e intervalos de aulas são uns festivais de canecas. Bonitas, decoradas, cheias de personagens famosos, versículos bíblicos ou frases de impacto. Tem aquela do Batman, do professor geek, carequinha, barbudo e sempre de boina e barba, risonho e caloroso. Há uma ali com a fórmula de Báskhara, empunhada por uma descolada professora de matemática. Outro geek, professor de biologia, tímido tem uma caneca do Baby Groot, que guarda bem trancada no armário, objeto de desejo de colegas e estudantes. E elas trazem em si, não só o café. Os chás também são bem-vindos nessa hora: prontos ou em saquinhos. Há lugares em que há potes com biscoitos, bonbonnières cheias de guloseimas. Mas não pode faltar o café.

Xícara de café, grãos.

Com tempo para adoçar o bico? Aproveite para ouvir uma musiquinha boa nessa playlist chamada CAFEZINHO.

Image by Christoph from Pixabay

Ainda assim, nada ali faz lembrar um piquenique. É tudo muito rápido, uma sala de professores mais parece um baile de movimentos marcados, idas e voltas ao banheiro, aos armários, à mesa, conferência de material para se levar à sala, todos ao redor da coordenadora checando o horário. De repente a sala congela para um aviso de última hora, uma decisão a se tomar: horários que se adiantam, imprevistos, visitas de inspeção, reuniões de área do conhecimento, aplicações de avaliações. Tudo acontece ali, tomando minutos ao descanso e a primeira aula após o intervalo.

Eu tinha uma colega muito gente boa. De tanto reclamar com a direção e a coordenação, ela conseguiu que todos questionássemos as micro-reuniões pedagógicas no horário do recreio. Assim, o direito de todos descansarem pelo menos quinze minutos nos intervalos estava garantido. As pessoas podiam ir ao banheiro, alguns saiam do prédio para fumar um cigarro. Ao voltarem, no primeiro sinal, a coordenadora estava a postos, esperando o momento certo para iniciar uma lista de avisos. Mas mesmo ali naquela escola, o intervalo era muito rápido, até mesmo para uma pausa para o café.

As pessoas não se aquietavam um momento, não curtiam o momento. Eu já vi professores se aninharem no sofá, cobertos em seus casacos, mas aproveitando instantes mínimos de descanso, em meio a conversas estridentes, gritarias de piadas sobre estudantes ou mesmo sobre eles mesmos. Em sala de professores, o curto espaço do intervalo se tornava um momento de apresentações artísticas, covers, paródias, piadas sobre o último capítulo de uma série famosa, novela e sempre havia um professor alheio, atolado em fones de ouvido, esperando ver a movimentação da turma para sair às suas próximas aulas.

Tudo o que eu quero, quando eu puder dirigir uma escola, é criar uma pausa para o café, silenciosa, com conversas à meia voz, xícaras brancas em água aquecida, pires, biscoitos de polvilho ou torradas. E o café sendo degustado silenciosamente, enquanto os assuntos da escola acontecem lá fora. Na minha escola, o fim do intervalo é inacreditável. Na porta da sala de professores, piquetes de estudantes querendo saber alguma coisa, ansiosos para falar com algum docente, não podendo esperar outro momento. Já vimos estudantes observando pelas frestas das janelas, curiosos. São só quinze minutos. E quando passa disso, lá vem coisa, lá vem novidade, lá vem bronca, lá vem prova. No meio dessa bagunça, meu sonho é que os estudantes, um dia, pudessem olhar para um grupo sereno e tranquilo de pessoas calmas tomando café, chá, suco, mordiscando um sequilho e estando de bem com a vida.

Eu me sinto mal com aquelas pessoas tomando café em pé, apressadas. O café é uma bebida especial que requer calma, tempo, meditação. Por ser uma infusão termogênica, após o café precisamos de um tempinho para nos refrescar. O café nos faz suar os bigodes e buços, tirar gorros e chapéus, afrouxar cachecóis, abrir botões de cardigãs, faz-nos abanar e soprar em nós mesmos, precisamos de um momentinho até que o corpo regule a sua temperatura. Isso ocorre em meio a uma suave sensação de prazer que pode ser também de contemplação em que se fala de assuntos leves.

Talvez isso faça falta aos professores e talvez a todas as categorias que trabalham sob estresse constante, pressão por resultados ou pelo cumprimento de regras, calendários entre outras coisas. Precisamos sim, fazer pausas reais. Não apenas momentos, instantes de correria e mais desgaste. Mas termos o hábito sagrado do repouso e do prazer. Para professores, são quinze minutos em cinco horas de trabalho. Para outros tantos, talvez menos. Mas deveria haver um momento de repouso e prazer, um instante de contemplação que é um gota da vida dos mais abastados em nossa existência marcada pelo sacrifício da labuta.

Pensemos.

Capa: Image by Engin Akyurt from Pixabay

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

6 respostas

  1. É bem isso! Artigo excelente que retrata muito bem o cotidiano da sala dos professores.

  2. Muito bom! Acho que essa escrita deveria ser lida nas escolas no momento que deveria ser dedicado ao café. Aliás deixo meu registro que desisti do café “escolar” levo comigo uma pequena garrafa com o líquido precioso e tomo nos intervalos em goles curtos e divido sempre que encontro um colega desesperado pra tomar um gole de ânimo. Café é vida e no ambiente escolar ressuscita.

  3. Em Goianésia ou em São Paulo, por todo o país, talvez pelo mundo afora a sala dos professores e intervalo do café parecem uma marca registrada da educação. Obrigado por este artigo que tem um aroma universal!

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