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Parece que foi ontem: quem parou o bonde sem freios da década de 1990?

Fita Cassete de música

Eu tenho ouvido e lido ultimamente, principalmente nas redes sociais, de maneira mais frequente, conclusões interessantes sobre os anos de 1990, como a década da liberdade de expressão e de uma certa libertinagem. Como muitos dizem, é uma libertinagem gostosa, saudosa: pessoas falando palavrão na TV, pouca censura, pouco mimimi por causa de grupos conservadores. De repente, o século XX se acaba e nos joga num mar de podes-não-podes sem-graça. No entanto, eu me pergunto sempre se as coisas realmente aconteceram desse modo.

No Brasil, em 1990, eu era uma criança de nove anos fazendo a quarta série. Na televisão em cores da Semp Toshiba, a Rede Globo comemorava seus 25 anos. A majestosa novela Rainha da Sucata, de Sílvio de Abreu, trazia Regina Duarte, Glória Menezes e Toni Ramos numa história impactante, trazendo em seu enredo uma boa dose de críticas social e os problemas econômicos da época. Ano de Copa do Mundo, vimos o Brasil deixar a competição nas oitavas de final, eliminado pela Argentina, num jogo dramático e polêmico, com água batizada e muitas tretas.

Foi a década da minha entrada na adolescência, em 1993. A década em que eu terminei o Ensino Médio, em 1997 e entrei na faculdade. Foi um período muito intenso, que deu o tom da cultura mundial, girando em torno, primeiro do rádio e da televisão, depois em torno da Internet. Foi a década da expansão ao infinito da cultura pop, a década dos Backstreet Boys e de Britney Spears. A década que consolidou o reinado de grandes divas e deuses da música, a década do cinema, dos filmes arrasa-quarteirão.

Na televisão brasileira, os programas de sábado, domingo ou eventualmente programas noturnos de entretenimento eram cheios de ousadia. Cantores, dançarinos sensuais, corpos à mostra, mulheres e homens em roupas de banho minúsculas dentro de uma banheira se esfregando. Noutro canal, uma pin-up sádica depilava homens excitados por seu corpo em trajes de dominatrix. Noutra emissora, grupos de samba e pagode faziam coreografias praticamente pornográficas em frente a crianças também vestidas em trajes pequenos, reproduzindo os mesmos movimentos eróticos.

E tudo isso soava normal.

Trinta anos após isso tudo ter começado, as pessoas se perguntam o que aconteceu com o mundo naquela década, porque tudo era tão permitido, tão imoral, tão docemente pecaminoso. E por que tudo acabou? Na verdade, a resposta é simples. Nada de fato mudou. Vivemos, naquela época, uma euforia de fim de século, uma efervescência cultural muito grande. Nada, no entanto, de origem erudita ou sofisticada. Os anos de 1990 foi o trunfo do popular, da massificação sem imposições burguesas. O mundo via a televisão, o rádio e o cinema crescerem absurdamente. Mas era também uma época em que as coisas estavam mudando. Em 1995, o Estatuto da Criança e do Adolescente fazia cinco anos, seu cumprimento pleno demoraria mais tempo para se efetivar. Enquanto isso, as crianças eram expostas a conteúdo sem classificação, dançando músicas de cunho sexual, cantando suas letras. Cabia à família filtrar o que achava que seus filhos deviam ou não ver. Mas a magia do entretenimento adentrava todos os lares. As crianças se vestiam para dançar ao som de É O Tchan, imitando movimentos de cópula, cantando letras de duplo sentido. A família tradicional brasileira nem sempre conseguia dizer não a esse assédio do rádio e da TV. Por outro lado, a resistência conservadora de grupos religiosos se somaram a tantas outras formas de crítica a isso tudo e de repente, a chatice venceu, de alguma forma. Mas não por causa das críticas, mas porque havia coisas que de fato precisavam mudar. O mundo havia mudado.

E de repente ficamos tão caretas, duas décadas e meia depois. Ficamos mesmo? Eu duvido disso. Sempre fomos contraditórios. Seletivamente conservadores. O que faltava acontecer é esse conservadorismo ocupar seu lugar. A hiperexposição de crianças à mídia não era uma questão de gestão familiar do que pode ou não pode. Mas questão de lei. Da Constituição Federal, do governo, da justiça agindo com o apoio dos saberes científicos em estabelecer papéis específicos para a família, para o Estado, para a escola e também para a mídia, que passou a ter coparticipação na tarefa de ajudar na criação de nossos infantes e infantas. O lento, mas constante, desenvolvimento de nossas instituições democráticas passou por uma pequena revolução nos direitos das crianças e adolescentes. As meninas vestidas de top e shortinho imitando Carla Perez de repente desapareceram, assim como a grande maioria da publicidade infanto-juvenil na programação da TV aberta e rádio. Por outro lado, um movimento de universalização da escola para todos aconteceu na gestão do ministro Paulo Renato de Souza, do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Ao mesmo tempo, os Conselhos Tutelares se tornaram importantes instrumentos de mediação de conflitos e garantia de direitos por todo o país, mantidos pelo poder público, em contato direto com a comunidade, escolas, delegacias e poder judiciário. Até certo ponto, o mundo que tanto amamos odiar ou odiamos amar, dos anos de 1990, não era seguro e nem saudável para as crianças. Nem era, antes disso: trabalhos domésticos forçados, abuso sexual, direito à educação negado, exploração sexual. Coisas que ainda são a realidade hoje em dia, não são fruto da modernidade, nem da exposição ao sexo na TV. Era a realidade que o pátrio poder ocultava no seio das famílias, era a realidade das camadas sociais de invisíveis e excluídos, pessoas para quais não havia justiça, escola, delegacia ou saúde.

Os anos de 1990 foram uma espécie de modificação mais visível dessa realidade. O sexo sumiu das produções de TV para a família, etiquetinhas de classificação etária aparecem em todos os programas das emissoras abertas e fechadas. A Internet já entra nos lares com um mínimo de possibilidades de controle de conteúdo. Os primeiros ensaios de educação sexual para adolescentes na escola.

Enfim, nos anos de 1990, apesar o fim de século decadente, porém carnavalesco, éramos mais conservadores que somos hoje. Mas éramos mais irresponsáveis e talvez um pouco menos hipócritas. Mas ainda assim, é necessário entendermos que não havia uma liberdade sexual maior nessa década. Havia uma superexposição machista dos corpos, em função do desejo masculino. Havia revistas gay nas bancas. Até hoje elas ainda existem, o que muda é o fato de que não é tão mais necessária ou significativa a divulgação de pornografia em meio impresso. Essa mudança também atingiu revistas masculinas. Não foi uma questão de conservadorismo, mas de liberalismo econômico, de capitalismo. Nos anos de 1990 ainda havia crime de feminicídio sendo justificado por defesa da honra. Os debates pelos direitos da mulher eram intensos, mas ainda não havia a Lei Maria da Penha. Há muitas coisas que não havia na época e hoje há, como maior liberdade sexual e religiosa, cidadania trans e leis que garantem isso, cidadania para casais LGBTQIA, casamento para quem quiser formar família, adoção de filhos, para quem deseja. Aliás, nos anos 90, LGBT eram GLS, apenas.

Ademais, tanta coisa mudou de lá para cá, o mundo ainda é um lugar injusto e cruel com os mais pobres. Mas antes era pior. E não podemos nos esquecer disso. Ou então, temos que tomar essa consciência.

Todas as vezes que alguém chegar dizendo que vivemos um paraíso de liberdade nessa década, lembre-se que até 1990, homossexualidade era doença. E demorou até que as pessoas entendessem isso. De fato, os 31 anos que se passaram, desde então, não foram de intensa campanha a favor da homossexualidade como algo saudável. Ao contrário, toda a sensualidade e liberdade do uso do corpo nos anos de 1990 excluía a homossexualidade, as pessoas trans. O tratamento para HIV e Aids nessa década também era deficitário, comparando-se com hoje.

Os anos de 1990 foram bons de se viver, para toda uma geração, isso é inegável. Era nossa primeira década sem ditadura. Era o início de um ciclo de euforia econômica e social que termina nesse ano de 2021. Era uma época dourada, comparada com os anos de chumbo anteriores. Mas não tínhamos mais liberdade. As coisas eram mais liberadas por uma irresponsabilidade, por uma certa demora no cumprimento de nossas novas leis e por nossa demora em experimentar uma certa libertinagem depois de um tempo de alguma repressão.

Não quero que essa década volte, embora eu queira muito que essa que está no seu primeiro ano ainda venha nos agraciar com algum tipo surpresa no campo da liberdade, da autonomia e do prazer em viver, com mais justiça social, saúde e alimentação para todos. Porque somente assim, valerá a pena, em 2050, lembrar-se de coisas boas acontecidas há anos.

No entanto, nem tudo era ruim naquela época. Não há nada de mal em lembrar das músicas, filmes, programas, rir bastante com aquilo que vivemos na frente da TV, da tela do cinema ou na Internet da Pedra Lascada. Uma dica é o Canal 90 no YouTube, do apresentador e escritor Danilo Nogy.

Capa: Image by Sapto Cahyono from Pixabay

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

2 respostas

  1. Que texto maravilhoso, quanta informação que muitos deveriam saber e ter!
    Amei a imagem do post!

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