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Os LGBTQIA+ da novela

Hoje eu quero falar de novelas, principalmente de obras de Aguinaldo Silva, um autor importantíssimo do gênero. Precisamos falar um pouco de um aspecto já discutido de sua obra televisiva, mas não o suficiente, na minha opinião. Para quem não sabe, Aguinaldo Silva é um dos maiores dramaturgos da televisão brasileira. Sua história pessoal é cheia de fatos interessantes. O maior deles ainda é que ele (incrivelmente) foi um ativo militante pelos direitos dos homossexuais, tendo estado no grupo que lançou O Lampião, primeiro jornal gay do país, durante a Ditadura Militar, nos famigerados anos de chumbo da década de 1970.

Aguinaldo Silva, autor de novelas da TV Globo, investe em Portugal ...
Aguinaldo Silva – Foto: Divulgação/Globo

Outra coisa interessante sobre a vida do autor, é que Aguinaldo Silva é considerado o primeiro e único dramaturgo a escrever predominantemente novelas para o horário nobre da Rede Globo. Além de escrever novelas, série e minisséries, ele ainda é cineasta, roteirista e romancista. Sua carreira é envolta em curiosidades, polêmicas e alguns problemas envolvendo a autoria de alguns de seus textos. No entanto, o seu trabalho e contribuição à televisão brasileira são inegáveis. Assim como o seu passado de luta pelos direitos dos gays numa época em que o Brasil vivia uma pesada repressão. Vamos começar desse ponto. Apesar de aparentemente fazer parte de um grupo intelectual e marginal e de se declarar abertamente gay há cerca de cinquenta anos, durante um regime totalitário marcado pela violência, Aguinaldo Silva tornou-se um escritor, repórter, dramaturgo e ficcionista reconhecido por seu talento. O motivo dessa escalada passa pela luta intelectual contra o preconceito e a favor da tolerância. Mas também por um fenômeno histórico específico, muito bem explicado por John N. Green na sua magistral obra: Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Essa obra se dedica a fazer uma história da homossexualidade do Rio de Janeiro, no século passado. Mas proporciona uma análise que nos faz compreender como as vivências em torno da diversidade sexual aconteciam no país. E a obra é capaz de explicar esse fato que não é tão óbvio: a Ditadura Militar não compreendia a homossexualidade como uma ameaça ao regime, focando seus esforços de repressão em quem fosse diametralmente oposto ao regime, de liberais a comunistas, embora se devesse manter um nível de discrição e a censura barrasse certas coisas, geralmente a pedido de setores mais conservadores da sociedade.

Como o movimento gay no Brasil carecia exatamente de uma identidade esquerdista, ele foi passando de largo, sem toda a censura, mas discreto. Mas foi possível organizar resistências e formas de aceitação que iam para além da identidade carnavalizada do gay brasileiro, que se confundia com a identidade das pessoas trans. Nesse ponto, a identificação dos valores da classe gay urbana do país, centrada nas cidades grandes, capitais, principalmente, era capitalista, burguesa, e centrada em valores individuais e de consumo, principalmente de capital simbólico importado da Europa e dos Estados Unidos da América. Ser gay e militante não impediu que, uma década depois de fazer parte do corpo jornalístico de O Lampião, Aguinaldo Silva fosse o mais promissor de todos os dramaturgos da Vênus Platinada, a Rede Globo, iniciando sua carreira de maneira magistral, assinando capítulos de seriados de sucesso, como o maravilhoso e icônico Malu Mulher e Plantão de Polícia. Mas foi na novela mais icônica ainda, “Roque Santeiro”, que Aguinaldo mostrou seu valor. O projeto havia sido abandonado por Dias Gomes, após 50 capítulos. Aguinaldo então assumiu o folhetim e o tornou um sucesso nacional incontestável.

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Renata Sorrah, caracterizada como Nazaré Tedesco (Senhora do Destino, 2004). Uma das mais marcantes personagens de Aguinaldo Silva. Renata deu vida a outras mulheres marcantes, como Heleninha Roitman, em Vale Tudo (1988) que Aguinaldo foi coautor, ou Pilar Batista de Pedra sobre Pedra (1992). Foto: Divulgação / Rede Globo.

De acordo com depoimento de Aguinaldo para o Canal Viva, Dias Gomes teria retornado ao fim da novela para reassumir o trabalho e assumiu o folhetim a partir do capítulo 161, o que deixou Aguinaldo muito triste, porque o sucesso da novela havia acontecido por causa da dedicação dele à trama e às personagens. No entanto, cumprindo ordens superiores, ele deixou a novela e foi surpreendido, logo em seguida, com uma proposta de contrato que dava a ele uma grande liberdade artística e uma longevidade na empresa que chegou até a segunda década do século XXI. Aguinaldo é o único autor que escreveu novelas apenas para o horário nobre, embora tenha escrito séries, minisséries, roteiros para cinema. Então uma lista de sucessos quase interminável começou, dentre os quais podem ser citadas a colaboração com Leonor Bassères e Gilberto Braga, Vale Tudo, de 1988, Tieta (1989) ou mesmo a avassaldora Senhora do Destino (2004). Escritor de personagens femininas fortes, tramas atraentes e criador de um universo de personagens que comunicavam entre si em algumas novelas, Aguinaldo Silva permitiu à teledramaturgia da Rede Globo ter imensos sucessos e revelar inúmeros talentos. Aguinaldo é o responsável pela continuidade, até o presente, do estrelato de grandes atrizes, como Susana Vieira, ou a inesquecível Renata Sorrah.

No entanto, um detalhe importante da obra de Aguinaldo deve ser discutida. Ou melhor, a discussão sobre ela deve continuar. O modo como um de nossos pioneiros na militância pela igualdade de direitos dos gays encara a diversidade. De fato, isso começou a aparecer com mais força no século XXI. Até então, as personagens gays, assumidas ou não, eram mostradas sob camadas de proteção para que o público conservador da Rede Globo não se escandalizasse. Para isso, era necessário que as histórias mostrassem gays, lésbicas ou quaisquer outros do segmento LGBTQIA+ de maneira estereotipada ou até mesmo negativa, de forma que os telespectadores preconceituosos continuassem a se sentir seguros e confortáveis ao ver as produções. No entanto, o público mais orientado para a diversidade, progressista e até mesmo liberal (no sentido dos costumes) começou a criticar o estereótipo. Mas isso, recentemente, depois de muito tempo de abraço ao conservadorismo.

Não é justo deixar sobre os ombros de Aguinaldo Silva a tarefa de escrachar gays no horário nobre da rede de televisão com mais telespectadores no país. Outros autores, como Sílvio de Abreu, Gilberto Braga, Glória Perez ou o bem-sucedido Walcyr Carrasco também tiveram seus momentos de erros profundos, mesmo tentando tematizar o preconceito e a aceitação. O problema da política de liberdade sexual da Rede Globo tem sido amplamente debatida há décadas. Há inclusive a informação de que atores e atrizes eram impedidos de assumir publicamente a sua sexualidade, para que isso não impedisse a escalação deles e delas no papel de protagonistas ou coadjuvantes heterossexuais. Isso tudo se dá pela folclórica característica do público brasileiro: há uma confusão enorme entre a vida privada dos atores e a existência fictícia de suas personagens de sucesso. Assim, a rede de televisão sempre tentava passar uma imagem conservadora com relação à homossexualidade ou a identidade de gênero.

O fato mais notório, nessa escalada LGBTQIA+, nas novelas, começa com Vale Tudo, de 1988. A trama de Leonor Brassères, Gilberto Braga e Aguinaldo Silva apresentou o casal de lésbicas Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin). As moças eram donas de uma pousada e a relação entre ambas foi exposta e discutida, sofrendo críticas negativas, até que uma delas morre num acidente. O desastre foi entendido como uma forma de interromper uma relação que era entendida como mal-vista pelo público. No entanto, um ponto positivo se segue, pois há um seguimento importante. Laís é herdeira de Cecília. Mas o cunhado inescrupuloso quer tomar posse dos bens da irmã alegando a ilegalidade do casamento de ambas. Depois, revelou-se que houve censura por parte de órgãos federais, ainda vigentes no início da produção da trama. Isso acarretou em corte de cenas ou em reescrita de diálogos. O que se pode afirmar, de fato, é que nessa primeira tentativa, as personagens lésbicas acabaram por sobreviver na história como puderam. E que a discussão da natureza da sua relação foi mais importante do que saciar a curiosidade do público sobre detalhes de intimidades das duas.

No que tange à identidade de gênero, a autora Glória Perez criou as personagens transexuais, Sarita Vitti, da novela Explode Coração (1995). E recentemente Nonato (drag queen) (A Força do Querer) e Ivana / Ivan (homen trans), em busca a transição corporal. Em 1995, a tentativa foi mais um erro, porque a personagem não agradou as mulheres trans e nem as drag queens da época. Já Nonato e Ivana mostraram um esforço inicial de compreensão real da identidade de gênero, tendo sido apontados como personagens reais, fora do espectro gay unicamente cisgênero. Sílvio de Abreu, em A Próxima Vítima (1994) mostrou um casal gay (Jefferson e Sandrinho, vividos por Lui Mendes e André Gonçalves) pasteurizado e com um romance baseado numa proximidade heterossexual, modos masculinos e muita discrição. O mesmo autor, em Torre de Babel (1998), conseguiu inserir personagens lésbicas que foram “cortadas” da história, no desastre da explosão de um shopping center, que muda a trama de fase. Walcyr Carrasco criou uma das personagens gays mais icônicas da televisão contemporânea, o vilão confuso e malvado, Félix. No entanto, o esforço era de representar uma personagem já batida: masculina, mas afeminada, má, corrosiva. Praticamente uma média aritmética de Michael e Harold de “The Boys In The Band”. A maldade de Félix se resolve quando ele busca a aceitação do próprio pai, homofóbico e tradicionalista, enquanto vive um romance pasteurizado com Niko que faz a novela terminar com uma bicota.

Amor à Vida é cotada para substituir Avenida Brasil no Vale a Pena Ver de Novo
Félix (Mateus Solano) em Amor à Vida (2013), de Walcyr Carrasco (Foto: Reprodução/TV Globo). A personagem bem que poderia existir numa trama de seu colega, Aguinaldo Silva.

Enquanto isso, a homossexualidade é abordada por Aguinaldo Silva em Senhora do Destino (2004), mostrando o casal de lésbicas Jenifer e Eleonora, vividas por Bárbara Borges e Milla Christie. Nesse caso, não houve interrupção das personagens, mas houve o corte de cenas em que diálogos reveladores mostrariam a suposta descoberta da identidade sexual de uma delas. De maneira muito controlada, o romance das duas era sugerido o tempo todo, às vezes mostrado claramente, sofrendo o clássico ataque em pensamento de Nazaré Tedesco, chamando-as de “sapatonas”. Esse momento icônico e preconceituoso não foi mostrado como um instante de reflexão ou mesmo de combate ao preconceito, apenas fazia eco ao que os telespectadores da Rede Globo pensavam ali, naquele momento. Mas Gilberto Braga, em uma entrevista dada em 2009, mostra claramente que havia sim, uma política de inibição à homossexualidade na empresa. Assim como a aceitação a personagens homossexuais que não poderiam nunca manchar a reputação dos atores com vistas a escalação em futuras produções.

Então ia-se de um extremo a outro: gays estereotipados masculinizados ou gays estereotipados afeminados, cômicos, geralmente interpretados por atores sem potencial de protagonizar histórias românticas como galã e personagem principal. Mas isso mudou com Félix, que foi personificado pelo jovem e bonito Mateus Solano. Seu namorado Niko foi vivido por Thiago Fragoso, notório por sua beleza e talentos múltiplos. Enquanto o universo do humor e das séries corria por fora dessa política, atores eram mantidos com suas sexualidade em sigilo. Por dentro, uma polícia de bons costumes durou até que, no século XXI, a temática começou a romper barreiras, mas não sem resistência. Por exemplo, A produção de América (2005) teve a cena de beijo entre as personagens de Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro exatamente para que ambos, homens bonitos e atraentes, pudessem encarnar personagens masculinas sem rejeição do público. A transição foi uma tentativa dentro da emissora que contou com toda uma preparação e um estudo minucioso da aceitação das personagens pelos espectadores.

É nesse contexto, pós-beijo gay que Aguinaldo Silva apresenta personagens da diversidade em Império, de 2014. A princípio, assistir à trama seis anos depois mostra que ela envelheceu mal nesse tempo, principalmente nesse quesito. A novela mostra um núcleo cômico (não era de se esperar) capitaneado pela suposta drag queen Xana Summer (Ailton Graça), que na verdade, não gosta de definir, fala de si mesma como um homem diferente, que gosta de se vestir como mulher, ou seja, é uma cross-dresser. Mas Xana, que faz performances imitando Donna Summer no palco, trocou sua vida noturna por um salão de cabeleireiro. Lá, nutre uma paixão platônica por uma manicure, Naná (Vivi Araújo). Ambos vivem na mesma casa e dormem na mesma cama, mas não há indícios que tenham vida sexual. A trama esquenta quando Naná se apaixona por um homem masculinizado e muito bonito, o maître Antônio (Lucci Ferreira) e Xana sente ciúmes. Por Natália, Xana se sacrifica, desvestindo-se de sua feminilidade para encarnar um tipo masculino, suposto noivo da manicure, para que ela possa adotar como filho Luciano, afilhado de Xana. Essa trama estranha termina num suposto casamento poliamorístico entre Xana, Antônio e Naná, os três passam a criar Luciano.

Xana Império
Foto: Felipe Monteiro/TV Globo

A identidade indefinida de Xana (pelo menos no texto do autor) nasce da impossibilidade, talvez imperícia do roteirista de nomear as coisas, de entender como funciona o jogo delicado entre identidade de gênero e orientação sexual. No fundo o interesse de mostrar isso tudo como performances e não exatamente como características cristalizadas levaram ao esdrúxulo de justificar-se o comportamento de Xana como uma forma de resistência à homossexualidade corrente. Ou seja, Xana é como é e não precisa ter o comportamento gay pervertido de ficar com homem ou de querer sexo com alguém que tenha a genitália como sua. Essa interpretação foi induzida pelo texto da novela. Enquanto a vilã Cora (Drica Moraes / Marjorie Estiano) xinga Xana de coisa, bicha, viado, entre outras tanta formas agressivas e homofóbicas de nomeá-la, não há uma decisão de Xana sobre sua própria identidade. Num discurso, explicando para Lorraine (Dani Barros) como se entendia, Xana se mostra mais confusa do que explicada. Ela é um homem, mas que gosta de se vestir como mulher, mas que não desenvolve afetividade por homens e que não quer se definir, que prefere ser como é.

Talvez seja muito para Aguinaldo Silva dizer que Xana é uma mulher trans, que não quis fazer redesignação genital, e sendo mulher, é lésbica e sente afeição por sua amada, Naná. No entanto, isso impediria o desvestir da personagem para que Xana aparecesse de roupas masculinas e falasse de voz grave. Ou então, como nos capítulos iniciais, em que ela enfrenta uma quadrilha inteira, dando uma surra em bandidos que roubaram o carro de Lucas (Daniel Rocha), mostrando um mestre de capoeira por detrás da aparência feminina. Sem essa discussão, não há uma valorização da identidade, ao contrário, Xana se perde no cômico, no esdrúxulo, ora fazendo a drag queen sempre montanda, ora fazendo a mulher que fala em falsete para agradar as pessoas e com voz grave para intimidar. A parte positiva de mostrar a identidade de gênero e orientação como performances, no entanto, perde-se na desvalorização da identidade. Xana seria um gay ressentido, que quer ficar com mulher sem abrir mão de sua feminilidade, ou uma drag queen que não sabe a hora de sair da persona, como muitos criticaram na época. No entanto, o que talvez se quisesse era mostrar a descoberta da identidade de Xana, cross-dresser, mas heterossexual e apaixonado por sua amiga. Isso se perdeu em meio à falta de conhecimento do assunto.

Detalhe: não sou eu que diz isso, quem mostra essa confusão e orienta a se chegar a essa conclusão é a própria novela. A trama ainda possui outros personagens nesse nível de confusão. O bissexual Cláudio Bolgari (José Mayer), famoso cerimonialista, inicia a trama mantendo uma relação discreta com outro homem, Leonardo (Klebber Toledo), sob supervisão e anuência de Beatriz (Suzi Rego), sua esposa. O jornalista Théo Pereira (Paulo Betti) expõe no seu site de fofocas a vida íntima de Cláudio, Beatriz e Leonardo, causando o rompimento entre o cerimonialista e seu filho, o preconceituoso e covarde Enrico (Joaquim Lopes). A trama revela que Théo era apaixonado por Cláudio durante a adolescência, e sofria bullying dele e de seus colegas. E por isso, essa exposição é, na verdade, uma forma de vingança pelo mal sofrido no passado. Théo também é um personagem confuso. Gay assumido, não consegue se sentir seguro com ninguém, vive de gastar seu dinheiro com garotos de programa, tem personalidade irritável, é um vilão como o Félix, de Carrasco. Sua maldade se explica pelo preconceito que sofre, pela dificuldade em ser aceito pelas pessoas, apesar de seus esforços. Seu blog faz muito sucesso, derruba vidas e o Império de José Alfredo (Alexandre Nero), o rico e poderoso comendador, personagem principal da novela. No entanto, o sonho de Téo é ser amado e reconhecido como jornalista sério e escritor, sonho que fica distante quando ele chega à conclusão de que sua sexualidade, comportamento afeminado e maldade o afastam das pessoas, legando a ele a função de acusador, carrasco da vida alheia.

Leonardo, o amante de Cláudio é um caso à parte. Iludido por um homem mais velho, vive anos às custas dele sem ver sua carreira de ator de fato começar. Com a exposição do caso de ambos, ele se afasta e se nega a receber ajuda de Cláudio, conhecendo nesse hiato a personagem Amanda (Adriana Birolli), por quem desenvolve uma paixão platônica, como a de Xana por Naná. Só que sem o dinheiro de Cláudio, Leonardo se vê obrigado a vender o que tem para sobreviver e começa a passar fome, vivendo como pessoa em situação de rua, abandonando o apartamento que ganhara de Cláudio. Amanda e Beatriz conseguem resgatá-lo e fazem-no voltar ao apartamento, Leonardo retoma a sua vida, dessa vez interessado por Amanda. Só que ele percebe que ela não o quer como amante, apenas como amigo, pois está comprometida com José Pedro (Caio Blat), com quem deseja se casar.

Não há e nunca houve uma obrigatoriedade em alguém ter uma orientação sexual cristalizada. A sigla LGBTQIA+ representa bem essa possibilidade, essa diversidade. A possibilidade de trânsito no comportamento sexual é marca da bissexualidade. Mas, de forma nenhuma ela é discutida nas personagens de Cláudio e Leonardo. Ao contrário. A difamação gay, o vexame e a monstruosidade da homofobia tomam o plano e impedem também a reflexão sobre o comportamento de Beatriz, que é extremamente bem-resolvida com a sexualidade dela e do marido, propõe a ele uma relação aberta para que ele possa amar mais de uma pessoa. O constelação poliamorística aberta não é discutida, mas ridicularizada pelo escândalo. Nem sequer há espaço para questionamentos saudáveis nesse campo.

Suzy Rêgo, a Beatriz de Império, fala de amor por personagens marcantes (Foto: Reprodução)
Suzi Rego como Beatriz, em Império. A personagem vivia uma relação poliamorística aberta, em que o marido tinha outro parceiro. Ela não somente sabia, como apoiava, em nome da felicidade de todos. Seu papel polêmico e contestador não foi privilegiado na trama.

Téo Pereira, sozinho, amargurado, continua repetindo seu rosário de maldades até que se encontra na escrita. Mas ele personifica a ideia do gay à moda de “The Boys In The Band”, ressentido, amargurado, atirando para todos os lados para ver quem é atingido por suas setas envenenadas. Sem família, amigos mais próximos, vendo a vida de todos se organizar ao seu redor, Téo é o exemplo do que adianta para gays se assumirem e pagar o preço. Ele passa o recibo de que ser como Cláudio ou Leonardo é bem melhor porque o risco de ser exposto ou questionado é bem melhor pago do que o preço da solidão.

Essa novela comete erros, sob a batuta de seu maestro, o notório militante gay dos anos de 1970. Suas personagens LGBTQIA+ adotam uma postura anti-identificatória como forma de se colocar na sociedade. Elas querem ser como são, agir como agem, mas não querem se identificar. Com isso, não têm empatia com as pessoas reais que estão assistindo à novela. As drag queens não se veem em Xana. Nem as mulheres trans. Essa confusão também existiu no passado, na novela Explode Coração de 1995. Glória Perez convidou Isabelita dos Patins (que fez aparições na trama) para ajudar na composição de Sarita, mas logo teve de ouvir uma reprovação, porque Sarita não era nada, foi chamada pela drag e por outras pessoas, na época, de pessoa confusa, bicha novata que ainda não sabe o que quer, porque fica o dia inteiro vestida de mulher. Não que alguém não possa ficar o dia inteiro vestida de mulher. Desde que isso seja uma expressão de sua identidade. Para a composição da personagem de Glória Perez, aquele comportamento não era o desejado, não era aquilo que faria Sarita ser entendida como drag. Mas como uma mulher trans. Como isso não foi levado adiante, a novela acaba a mostrando como uma travesti, ou uma cross-dresser, mas também sem aprofundar essa ou qualquer outra forma de sua identidade. Na sua ignorância a respeito da diversidade, a autora queria apenas debater e provar a tese de que a homossexualidade existia porque um homem tem uma mulher dentro de si e pode deixá-la sair.

Sarita Vitti: Relembre a controversa personagem de Explode Coração
Sarita Vitti (Floriano Peixoto) em Explode Coração de Glória Perez, 1994 (Rede Globo: Divulgação)

A concepção de Aguinaldo Silva não vai muito longe, infelizmente. Xana não levanta a bandeira trans, nem mesmo milita por sua concepção pessoal, assim como Cláudio e Leonardo não levantam a bandeira da bissexualidade. E nem ao menos Téo Pereira levanta qualquer tipo de bandeira. Sem bandeira, sobra o preconceito, marcado na forma como as personagens são introduzidas e vistas, embora tenha que se dar o braço a torcer. Dificilmente uma novela poderia tratar do tema de outra forma. Até hoje não trata. Dificilmente haveria espaço para mais em 2014. Mas, por outro lado, não é muito pedir respeito, nunca é. Dizer o nome, como falam hoje em dia. Assumir, verbalizar o que está no corpo, pintado na cara. Esse jogo de mostra-esconde só interessa a quem não se sente representado, a quem não quer nos ver representados.

Por fim, há uma última crítica. A Globo escalou, em 2014, um elenco heterossexual para viver LGBTQIA+. Isso é entristecedor. Ailton Graça é um ótimo ator, mas sua personificação de Xana parece mais uma brincadeira de homens tentando imitar mulheres por troça. De fato, ele demora a entrar no papel e, quando isso acontece, é meio tarde, mas a novela continua. Para mostrar a inversão da regra de que galãs não poderiam se associar à homossexualidade, José Mayer, veterano de personagens extremamente machistas e masculinas, encarna um bissexual vivendo uma crise de reputação. Klebber Toledo, branco, bonito, de profundos olhos claros vive a ambiguidade sexual “sem medo”. O mesmo vale para Paulo Betti, que à moda de Aílton Graça, entrega um gay afeminado criado no recreio da escola. Mas isso não impediu que a novela terminasse, inclusive com relativa popularidade e aceitação dessas personagens.

Hoje o beijo gay pode acontecer em qualquer horário de novelas, vide a tradição da bicota acontecer na novela das seis, Orgulho e Paixão, de 2018 que mostra um casal de soldados que selam seu amor com um beijo nos momentos finais da trama.

Luccino (Juliano Laham) e Otávio (Pedro Henrique Müller) se beijam em cena de "Orgulho e Paixão"
Luccino (Juliano Laham) e Otávio (Pedro Henrique Müller) se beijam em cena de “Orgulho e Paixão” – Reprodução/TV Globo

Resta a nós esperar que próximas produções sejam mais respeitosas. E, acima de tudo, que o desejo de se fazer histórias reais, com personagens que representem a realidade leve a emissora a contratar atores e atrizes LGBTQIA+ para esses e outros papéis, imprimindo verossimilhança, causando identificação e empatia. Falta ainda abordar a homossexualidade de personagens simples, de classe baixa. Todos os LGBTQIA+ de novelas são burgueses, ricos, a maioria brancos e as lésbicas e pessoas trans ainda são minoria. Não adianta também apenas inserir a personagem se não vai se valorizar a sua identidade e respeitar o público LGBTQIA+ que assiste.

Rezemos à Santa Clara, padroeira da televisão.


Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

6 respostas

  1. Ainda há um longo caminho para resgatarmos a Década de 60 em que nivelava a Sexualidade entre gêneros iguais e opostos! Ainda há Incompreensão de porque Bissexuais podem deixar de sentir atração por uma mulher em período fértil e transarem com homem. E tive uma colega que fazia controle de natalidade mas da gente perceber ela altamente fértil, mensalmente. Numa dessas ocasiões eu e um colega transamos e, ainda ponderamos que a gravidez acontece se o homem quiser! Como a colega tinha enteado claro que o marido iria querer filho com ela e, a relação do casal esfriou quando a mãe do enteado dela teve filho em novo relacionamento e, claro o adolescente e o pai dele, começaram a estreitar amizade com a “criança” que chegou!

    1. De fato, meu texto trata de estereótipos superficiais e escritos por uma roteirista de novela pouco amigável à real diversidade. Esse tipo de minúcia que você relata se trata, de fato, de microscópica intimidade que só quem vive muito próximo sabe ou acha saber. Obrigado pela colaboração.

  2. Isto não é somente um texto… é uma aula completa! Vale a pena ler e refletirmos sobre inclusão de personagens LGBTQIAP+ e a real inclusão de pessoas LBGTQIAP+ nas novelas!

  3. Um texto profundo sobre as escolhas de quem faz a dramaturgia televisiva do horário nobre. Escolhas estás, que ditaram a presença de uma face, por vezes caricata, do universo gay brasilis. Enfim, evoluimos. Ainda bem que evoluímos. Amei amigo.

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