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Os Cristos, a ética e a diversidade I

Os cristãos se acham donos de verdades eternas sobre o universo, o homem e o mundo sobrenatural. Mesmo quando se trata de discutir problemas concretos da vida cotidiana, como a diversidade, a moral, as leis dos homens. É comum que um cristão aborde a metafísica das crenças que ele tem com força de lei, como se tudo o que envolvesse a religião cristã fosse oriunda de uma verdade muito sólida para ser questionada. Será? Vamos analisar o cristianismo a partir de uma visão histórica, materialista e dialética, nesse texto.

Caso queira subsídios para entender o que eu quero dizer no texto, experimente essa aula do Prof. Leandro Karnall, historiador. Mas aviso que eu não preciso concordar com o que o vídeo diz. Nem você.

A primeira questão sobre o cristianismo que merece ser profundamente discutida, é a existência de Cristo como pessoa, una, como um ser arqueologizável, datado e histórico. A ausência de registro específico sobre a sua vida, que lhe fosse contemporâneo é algo que incomodava mesmo na Idade Antiga ou Média. A manipulação falsificante de textos de Flávio Josefo, por séculos, fez com que isso fosse parcialmente satisfeito. Mas se Cristo, de fato nasceu por volta de 7 a 4 a. C. (depois da correção do calendário Gregoriano) e morreu 33 anos depois, somente em 65 d. C. é que os cristãos foram, de fato, citados em textos históricos, dado ao episódio do incêndio de Roma, atribuído a Nero. No entanto, judeus e cristãos não eram, de fato, diferenciados entre si pelos romanos, e eles eram conhecidos por sua resistência às crenças religiosas do império, mas não eram entendidos como povos separados.

De fato, se cristãos não existiam para a história, até então, provavelmente, se existiu, Jesus era um dentre os muitos invisíveis, sem acesso a escrita, apenas um número, uma cabeça contada nos censos da época, mas não poderia ser alguém de renome, nem sequer alguém que pudesse ter chamado a atenção o suficiente para que viesse a ter, ao seu redor, alguém que lesse, escrevesse ou produzisse registros e armazenasse com segurança e repassasse para os canais oficiais da época . Jesus era um súdito. No entanto, sabemos que, na época que alegadamente Jesus teria vivido, vários Cristos irromperam num movimento messiânico judaico, buscando lutar contra a opressão romana. Então, vários foram chamados de “Rei dos Judeus”,  “O Prometido” e o seu papel messiânico de libertador pode ter incluído vários tipos de pregação, desde a reforma espiritual do judaismo, com elementos místicos e cabalísticos, elementos da filosofia estoica e outros ainda possíveis da espiritualidade eclética do Crescente Fértil (Egito, Mesopotâmia). Some-se a isso, a moral romana e suas influências clássicas. Tudo isso aparece em O Sermão da Montanha, texto clássico do cristianismo, atribuído a Jesus. Infelizmetne, escrito décadas depois do desaparecimento de todos os Cristos que surgiram.

Não quero gastar meu latim falando mal,  ao refletir sobre as incertezas do início do cristianismo, precisamos pensar o que fez com que essa ideia sobre as coisas tenha se tornado a religião de milhões de pessoas, com tanto poder de determinar coisas na política e sociedade das eras.

Então.

Em primeiro lugar, sim. Cristo deve ter existido, sua função claramente. Ele pode ter sido um pregador místico, com o objetivo de reformar o judaísmo. Ele pode ter sido um líder militar e religioso. Pode ter sido um profeta de classes populares ou mesmo alguém de linhagem sacerdotal, assim como ele também pode ter sido um jovem irredento de uma família judaica de posses. Mas jamais saberemos. Sua pregação pode ter sido difusa, curta, pouco refletida, mas o núcleo da sua mensagem foi preservada, provavelmente de maneira oral, até que o primeiro evangelho tenha sido escrito, cerca de 60 anos depois que Cristo de fato morreu. Ele pode ter sido um, como pode ter sido vários deles em série.

Essa é a outra coisa que temos que refletir. Como Cristo não deixou uma linha sequer do que dizia ou fazia, suas supostas palavras foram escritas tempos depois que ele morreu. Não significa que não possam ter registrado algo em fragmentos antes, anotações etc. Mas o primeiro evangelho foi escrito muito tempo depois da suposta morte de Cristo, um pouco antes da dispersão dos judeus pela destruição de Jerusalém em 70 d. C. dando ao Novo Testamento, uma origem semelhante à do Antigo, que foi organizado durante a dispersão dos judeus na Mesopotâmia. Os evangelhos não representam, de fato, o estabelecimento de uma mensagem cristã. Ela já existia e era propagada por meio da oralidade e das práticas cristãs primitivas. A escrita dos evangelhos visou criar o cristianismo como mensagem ante a sua existência num mundo que usava o grego como língua franca, a partir de uma história que foi criada e espalhada em aramaico pelas comunidades da época. Registrar era preciso, copiar, guardar, disseminar a história, os ensinamentos e práticas era mais que necessário, para que a religião nasccente não fosse tragada por outros esforços de controle do império.

Os evangelhos seriam um milagre se de fato tivessem sido escritos apenas os quatro oficiais. Ao contrário, eles foram selecionados a partir de uma profusão de histórias que mostram vários possíveis Cristos pregando mensagens confunsas, contraditórias. Dizem alguns teólogos que, dos quatro evangelhos, três são sinóticos (com o mesmo ponto de vista) por causa da coincidência de narrações. No entanto, esses três se contradizem profundamente, mostram diversas passagens conflitantes. O último dos três é um evangelho gnóstico, místico, mostra Jesus com um perfil totalmente diferente dos outros. O escritor, supostamente o mesmo de outras epístolas e de O Apocalipse, retrata o salvador como um ser divino que desceu a Árvore da Vida galho a galho, de Kether até Malkuth, para morrer por nós, num ato que nos ensina um amor profundo de um Deus que antes deveria ser uma imensidade incorpórea, mas de uma hora a outra é um cordeiro abatido na Páscoa que dá ao mundo de comer de sua carne.

Não sabemos se o próprio Cristo, caso houvesse existido como um ou mais Messias da época, criou essa teoria sobre ele mesmo ser Deus. Mas esse é o argumento de Paulo, também de existência suposta. Um “apóstolo” de Cristo que se converteu após a morte do salvador e de sua suposta apoteose aos céus, Paulo teria sido também um cidadão romano de origem judaica, fluente em grego, entendedor da política e sociedade, responsável pela suposta perseguição dos judeus e romanos aos primeiros cristãos da época. A origem de Paulo, sua introdução às doutrinas estão todas escritas num livro atribuído a um discípulo de Cristo, Lucas. No entanto, a existência de uma personagem numa história contada sem nenhuma comprovação arqueológica, não significa que essa pessoa tenha existido ou não. Mas a recorrência de um sujeito a quem se atribui uma série de escritos indica que, possivelmente alguém existiu, real ou ficticiamente, e depois outros textos e feitos contemporâneos foram sendo agregados ao nome, como forma de organização do discurso religioso em busca de algum tipo de autoridade que foi investida a esse sujeito pelo mesmo discurso religioso.

Paulo é evidentemente mais corpóreo que Cristo, nessa coisa de ter de acreditar em documentos que ninguém sabe de fato quem escreveu o quê e nem quando (literatura sagrada). A ele se atribui, de fato, a invenção do cristianismo como ideário com alguma coerência. Os seus textos costuram a figura de Cristo no painel da espiritualidade judaica, além de trazer para dentro do pensamento dos rabinos a filosofia platônica, estoica e pitadas de misticismo escatológico. A obra de Paulo é vasta e, com certeza, quanto mais se lê, menos se entende que seja uma obra de uma pessoa só, notam-se as vozes coletivas, as mudanças de estilo, tom, de temática, à medida em que teólogos medievais e, até modernos, tentam criar uma ficção de Paulo como um supermissionário da Antiguidade, ao mesmo tempo em que ele teria uma vida pessoal para além da religião: uma série de problemas de saúde, família para cuidar e problemas com o Império Romano no fim da vida.

Assim como Cristo, Paulo foi transformado em profeta num movimento de recomposição de sua imagem por quem tinha que registrar a tradição em forma de texto. Coube a Jerônimo, o santo, compilar a escrita sagrada do Antigo e Novo Testamentos, 500 anos depois de Cristo, produzindo um código de verdades escritas que solidificaram coisas esparsas, unificaram dispersões, fundindo em uma só pessoa os muitos Paulos e Cristos.

Quero retornar aqui a algo muito interssante: o cristianismo então não seria verdade. Não seria e não é, de fato, em termos absolutos. Mas, como toda tradição religiosa, esotéria, mística ou espiritual, o cristianismo produz a sua própria verdade para não ter que lidar com outras. Até porque o cristianismo é fonte de que se pode dizer dele, é o cristianismo que faz o recorte de sua própria história e ele alça ao status de reais os seus seres criados, inventados, seus santos, santas, com nomes de pessoas, cuja existência tem de ser mais aceita que a existência de um imperador romano daquela época, de quem sobejam registros e provas. E isso não é, senão a produção de uma regime de verdade sem sustentação, ou seja: a imposição de um pensamento religioso como saber, tornando-o criador de uma certeza, subsidiária de um passado não documentado, que se foi no ocaso dos tempos, cuja existência de registros e provas é fortemente controlada pelas instituições de uma época, que impede que o resto do mundo saiba, se é que há algo para se saber, o que de fato sucedeu em torno de certos fatos e eventos. O cristianismo é uma religião que foge da história como ciência e disciplina do conhecimento humano, porque arrazoa para si mesmo as suas origens e finalidades, mas não resiste, de fato a uma análise profunda, que mostra seu discurso como possível dentro do contexto histórico da era, enraizado naquilo que os cristãos depois vieram a chamar de politeísmo e paganismo.

Além disso,  há algo que pretendo analisar num próximo momento, duas coisas que o cristianismo acaba estimulando: o culto a personalidades que podem ser criadas ou recriadas num contexto de monopólio da verdade pelo clero autorizado. A segunda coisa é a disponibilização dos corpos de seus fiéis como sendo politicamente mais fracos, domináveis, supostamente mais dispostos ao dever, algo que tornou a religião mais afeita ao poder.

Claro, isso fica para o próximo texto.

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