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O silêncio de Foucault: retrato de uma viuvez homoafetiva

“Um afeto qualquer de um indivíduo discrepa

do afeto de um outro quanto a essência

de um difere da essência do outro”   

Benedictus de Spinoza, in Ética

A noite já se fazia longe, quando Michel Foucault colocou o disco “Ella and Louis” de Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, em sua velha vitrola e, ao som do Jazz About Love, pensou lá com seus botões: “Amar se aprende amando”, lembrando da máxima poética de Carlos Drummond de Andrade. Pensou nos escritos do poeta que tanto descreveu sobre o ser amado, mas logo sentiu-se afligido por pensar, que quando o amor parte para nunca mais voltar – a dor se instala no silencio de uma solidão concreta. 

Na manhã seguinte, depois de ler o artigo “Amores Estranhos” do seu amigo Alex Mendes, no site do Instituto Pró-Diversidade, e de se despedir do corpo sozinho do seu tio James Joyce, numa funerária das montanhas da Iasnaia Poliana, e escutar e presenciar a dor da sua tia Marguerite Yourcenar, numa conversa necessária e profunda sobre o turbilhão de emoções que acometeu a nova viúva, quando ela presenciou a partida do seu companheiro de 40 anos. Neste momento, Foucault pensou na dor da sua tia, e esse movimento lhe fez voltar a experiênciar a outras dores de tantos viúvos e viúvas, que já vinha acompanhando naqueles últimos dias.

Assim, mergulhando nas lembranças da viuvez de outras pessoas, acabou se deparando com a experiência da partida do seu companheiro de afeto.

A viuvez, que trouxe Foucault a estas reflexões, aconteceu numa noite fria e solitária da Pauliceia Desvairada, do último dia de julho de 2003.

Num domingo ensolarado de um inverno frio e tão comum da capital paulistana, Foucault recebeu uma ligação do seu companheiro – Ludwig Joseph Johann Wittgenstein, para as íntimas, somente Wittgenstein, que estava na casa da sua mãe – Simone de Beuavoir, e mais tarde iria lhe encontrar. A conversa foi rápida, Foucault perguntou se ele gostaria de visitar Rosa de Luxemburgo com Oscar Wilde, que iria passar em sua casa, mas ele disse que não, pois iria andar um pouco de bicicleta. E assim Wittgenstein cumpriu o combinado, saiu da casa de sua, passando na residência da sua cunhada – Susan Sontag, onde também estava a mãe, e depois se dirigiu a casa de Foucault para deixar a sua bicicleta e foi para o hospital, pois estava com muitas dores nas costas.

Pausa para o respiro do texto – Amar o ser amado, é viver a plenitude de uma das mais profundas experiencias humanas, que por sua essência e excelência, é emocional, concreta, passível de conflitos e fugaz, consubstanciada por todas as doçuras e amarguras do amor shakespeariano.    

Voltando após o respiro – Gato de botas, era assim que Foucault sempre descrevia Wittgenstein em suas missivas, no tempo do nascedouro do seu namoro e, ele por sua vez, o chamava de gato de óculos. É meu povo, quando se ama, ficamos bregas demais, adoramos criar nomes fofos para nossos amores. Confesso que adoro tudo isso.

Naqueles dias Wittgenstein, queixava-se de dores nas pernas, mas acreditava que eram produzidas por desconfortos musculares, apesar de Charcot – seu médico lhe ter informado sobre o estado das veias dos seus membros inferiores. Mas, ele colocou para o médico, que depois da produção de uns trabalhos iria procurar um especialista vascular para realizar consultas e exames.

Naquele domingo, por volta das 20hs, Foucault estava no banheiro fazendo a sua barba, quando Wittgenstein entrou em sua casa, comendo um lanche e com um pouco de ervas para fazer um chá para aliviar as suas dores, e comentou que tinha tomado uma injeção no hospital, e estava sentindo-se melhor. Assim, que acabou de pronunciar a sua boa nova, soltou um grito e caiu no chão. Naquela cena de desespero, Foucault ajoelhou e colocou a cabeça do seu amado junto ao seu peito, chamando seu nome, movimentando seu rosto, e percebeu que a sua pupila começava a dilatar e seus lábios a roxear. Ainda, conseguiu pegar um pano úmido e passou no seu rosto, mas seu amor não despertou da sua perda súbita de consciência. Foucault deixou-o no chão, e conseguiu ligar para a ambulância, se identificando como colonista da Revista Caras e Bundas relatando o fato ocorrido, e pedindo urgência. Quando o socorro chegou, ele chamou uns meninos, que estavam a frente de sua casa filosofando ervas noturnas, para ajudá-lo a colocar o seu amor na maca e carrega-lo até a ambulância, pois o seu gato de botas era forte, como todo homem que um dia trabalhou na roça.

A ambulância seguiu para o Pronto Socorro, com Foucault seguindo com seu automóvel, quando todos chegaram, seu amado foi colocado na sala de urgência recebendo toda atenção da equipe do SUS. O nosso herói apaixonado e despedaçado ficou ao lado do corpo adoecido do seu amor, observando todas as tentativas de reanimação, mas com o passar do tempo e da chegada de outros profissionais, resolveu se retirar para um canto daquele hospital para tentar organizar o caos emocional que iria se instalar na sua alma e da mãe de Wittgenstein.         

Naquela noite, nos braços de Foucault, seu singelo gato de botas de olhos azuis se despediu da vida, do seu amor e da sua sagrada mãe.         

A doce partida pode ser doce para quem parte, mas não, para quem fica na solidão da dor da perda do ser amado.  

Depois de todo processo junto ao hospital para providencias médicas e funerárias, Foucault, Baudelaire e Paulina Chiziane – irmão e a cunhada, que na altura dos acontecimentos já estavam no local, se encaminharam até a casa da mãe de Wittgenstein para dar a fatídica notícia. Foucault foi o tutor e comunicador da mensagem para sua sogra, que como toda mãe teve uma parte de sua alma arrancada de seu corpo. A sogra recebeu o carinho e as lagrimas dos demais presente e foi para o quarto de seu amado, ficando sozinho com seus pensamentos e confessando para si mesmo, que aquilo era uma das situações mais constrangedoras que uma pessoa podia experimentar na vida – a comunicação da morte de um filho para uma mãe, pois a dor se instala, maltrata as pessoas que você ama.   

No quarto do seu gato de botas, abriu o guarda-roupa e pegou a camisa mais bonita, a calça mais charmosa e um par de meias. Depois, começou a passar ferro na camisa branca, que era salpicada por suas lagrimas silenciosas, quando sua sogra entrou no quarto e falou, que seu filho não tinha nem um terno bonito para ser enterrado. Em algumas famílias das cidades do interior, ainda o costume do uso de terno era um predicado para deixar homens mais bonitos em reuniões sociais, assim como, na sua despedida derradeira.

No dia seguinte, a caminho do velório e diante de um lindo sol, Foucault percebeu que o tempo não desacelerou para lhe dar o devido colo, simplesmente o tempo seguiu, e coube a si mesmo administrar a sua dor no meio do caos de suas emoções.

O velório foi uma celebração da diversidade, de um lado uma explosão de gays, lésbicas, travestis e mulheres trans, do outro uma carreta de evangélicos da família dos cunhados, uma celebração de vidas diversas. Foi o velório mais LGBTQIA+ Power fashion que Foucault viu na vida, pois produziu um encontro de plena diversidade humana, num espaço social, que se uniram para última despedida do destemido Wittgenstein.    

O gato de botas demorou a chegar ao cemitério, mas chegou, e se instalou na capela cheia de flores, pessoas e lágrimas. Foucault e sua sogra, foram os primeiros a tocar no corpo de Wittgenstein, acolhido naquela urna fúnebre que os ocidentais usam para apresentar seus mortos às últimas despedidas. O viúvo percebeu que seu amado estava com uma faixa na cabeça, que era um sinal de como tinha sido difícil a autopsia para chegar na sua causa mortis. Ele passou a mão por sua cabeça e sentiu o corte por debaixo daquela faixa, e ficou triste, pois não entendeu por que fizeram aquilo com seu amado, mas foi necessário, segundo a explicação de Jean Charcot – seu médico.

O velório transcorreu com dores, choros, risos, rezas e canções, e no final seguiu-se o cortejo. Como viúvo e membro da família, Foucault segurou a primeira alça do caixão em direção a campa, caminhando pela última vez com Wittgenstein. O caminho foi curto, dolorido e ensolarado. No momento de descer o caixão, os amigos levaram um aparelho de som e tocaram “Canção da América” do Milton Nascimento.  Foi uma linda e brega homenagem das amigas.    

Ao final daquele dia, Foucault se deu conta da sua viuvez.  

A viuvez é um status social, que nos remete a ideia de um casal de longa idade, mas isso também pode ocorrer na juventude de amores cercado por promessas pueris, ingênuas e verdadeiramente apaixonadas.

Quando um jovem gay se une com outro, ou outros jovens gays, numa determinação de afetos, compromissos e vida conjugal, se vive o sonho do porto seguro tão negado esperado pela nossa sociedade heteronormativa. Este sonho pode terminar por vários motivos, mas a morte é um dos mais pesados, constrangedores e doloridos para qualquer pessoa, principalmente para um gay, que muitas vezes não consegue ou não pode dividir a sua dor com outras pessoas, porque para muitos, isso é um atributo de direito para um viúvo hétero, e não para um gay.  Quanta besteira, não é meu povo, pois a dor da ausência do outro em sua vida é única e intrasferível, e independente de gênero, ou orientação sexual.

Na primeira noite de Foucault, após a despedida do seu amor, o desespero tomou conta de sua alma, pois a casa estava impregnada da ausência do outro. Uma xícara, um par de sapatos, um retrato, um livro aberto na cabeceira e a capa de um disco com uma linda dedicatória machucavam a solidão do recém viúvo. A cama vazia, o cheiro do companheiro nos lençóis e fronhas, perturbaram as noites de Foucault por longas madrugadas.

A dor da viuvez é universal, mas acredito que uns tem mais suporte do que outros para passar pelos primeiros meses da ausência do companheiro falecido, mas vários gays não têm este privilégio.    

Com o tempo, Foucault confessou a Barack Obama: a minha casa, a cidade, e a minha vida eram muito mais coloridas pelo jeito tão singular e genuíno de ser de Wittgenstein.

Foto de Capa de Anna-Louise no Pexels

8 respostas

  1. A título de colaboração a safena passa pela panturrilha e é uma dor que deve ser “investigada” porque pode ser desde uma compreensão ao comprometimento mais sério! Quando senti a dor, ano passado, fui ao Angiologista!

  2. Intrigante texto pois ao ler me vi em uma passagem de minha vida, onde na perda de meu parceiro criou este vacou de ausência. Somente eu dividi esta comigo mesmo.

  3. Sem palavras amigo…. me segurwi aqui pra não chorar, pois vi a realidade de alguns gays nesse texto. Abração

  4. Querido Jean
    Adorei …uma triste história com humor …como não podia deixar de ser. Te amo
    Filó

  5. Maravilhoso texto, um assunto que pouco comentato sobre a viuvez homoafetivo, quando morre um amor a dor da viuzes e a mesma, a partida de um companheiro ou companheira ,não tem orientação sexual , as lembranças não são as mesmas, dor da viuvez não tem orientação sexual, dor é dor, eu acho que as lembranças o companheirismo são as maiores dores, pelo fato que são poucos que encontram um grande amor, o luto é maior.

  6. Adorei Jean, muito bom. Criativo, sensível e instigante.
    Li do começo si fim sem parar.
    Bjs querido!!

  7. Eu tô passada pela profundidade do texto, pelas referências da arte e filosofia que só entende bem quem de fato sofreu com a filosofia e arte modernas e, claro, sobre a reflexão da perda de um ente querido, quando ele é um amante, marido, namorado. O mundo ainda vê a viuvez gay de modo enviesado, como se não pudéssemos sentir real amor. Profundamente tocante, um texto para todos, para muitos lerem.

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