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O que esperar da esquerda

A possibilidade de que o candidato do Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva, seja eleito pela maioria dos votantes, nesse domingo, dia 30 de outubro, é real, matemática. Cientistas políticos e jornalistas apontam como certa a vitória dele e de seu partido, já que não há mais espaço de demanda entre os votos válidos para os candidatos ganharem ou perderem uma quantidade significativa de votos para mudar o rumo das eleições. Isso é um fato. No entanto, a cautela deve reinar na preocupação de todos os brasileiros eleitores, porque, afinal de contas, em qualquer lugar do mundo, quando se trata de política, as paixões suplantam a racionalidade e coisas impensáveis podem acontecer. Mas vamos trabalhar por hipótese.

E se Lula de fato se eleger no domingo? De fato, ele só vai assumir em primeiro de janeiro do ano seguinte e então começaremos uma nova era idílica de muita alegria e paz no país? Provavelmente, não. Teríamos sim, momentos de extrema dificuldade e recuperação econômica, provavelmente, boa parte dela, às expensas dos mais pobres. O que resta saber é como o novo governo lidará com esses reveses. Mas esperamos todos que tudo dê certo. Na verdade, o ideal é que mantivéssemos essa mesma fé no futuro independente do governo que viesse, mas sabemos que não dá para ser assim. O atual governo, numa possível continuidade, aprofundaria uma série de problemas sociais na tentativa desesperada de tornar o Brasil um país menos democrático e mais duro com os mais pobres, para que o capital estrangeiro se derrame em atividades de agronegócio, mineração, exploração de nossas jazidas de petróleo e outros recursos naturais que temos de sobra, como florestas tropicais e água doce. Mas a principal mercadoria que o governo atual quer disponibilizar a preços atraentes é a carne humana. De pobre. Venderíamos mão de obra explorável com um baixo salário mínimo. Tão baixo que o emprego formal se tornaria insuficiente ou mesmo indesejado para os mais pobres, que teriam que se entregar à exploração mais barata ainda para sobreviver. Isso desoneraria a economia para os mais ricos, que passam a lucrar mais, às custas dos mais pobres, que passariam a sobreviver, mas sem as garantias de antes, sem a seguridade social, ou mesmo serviços públicos de qualidade.

Quem viveu esses últimos quatro anos sabe que isso tem se tornardo uma grande realidade no nosso país: o desmonte de um estado democrático que um dia poderia ser mais igualitário, equitativo, e é isso que eu quero abordar aqui, depois desse panorama tenebroso de desmonte de direitos humanos e básicos da população brasileira, começando pelas nossas bases econòmicas, começando pela criação de um sistema que não inclui os mais pobres na distribuição ainda que mínima das riquezas da nação. Fica claro que, numa situação de extrema penúria, parece ser exagero querer mais, pensar a respeito de outros direitos humanos básicos. Mas, ainda assim, eu ouso perguntar: A quantas anda a cidadania LGBTQIA+ nesse processo todo?

Antes de responder a isso, vamos pensar em algo muito importante. Depois de um hiato de cinco ou seis anos, o Partido dos Trabalhadores tem chances de voltar ao poder, e na cabeça de sua chapa, o seu líder mais popular e carismático. As esperanças de parte do povo brasileiro se depositam numa nova era de bem-estar e melhores condições econômicas. E nessas condições de florescimento da economia, é que floresceram também as universidades públicas brasileiras, que promoveram um boom na ciência brasileira sem precedentes, com programas de formação superior em graduação e pós-graduação, aqui no Brasil e em conjunto com universidades do exterior, programas todos sucateados, atualmente, sem recursos e estrutura. Mas em uma década e meia, o Brasil colecionou bons resultados, experiências positivas e um desenvolvimento das ciências que também passou por uma divulgação maior de descobertas nem tão novas das ciências humanas a respeito da sexualidade e da diversidade de gênero. Isso também veio na esteira da criação de uma cultura juvenil universitária, que passou a incluir negros, indígenas, pessoas de baixa renda. Isso promoveu maior visibilidade à população LGBTQIA+.

Imagem de Ryan McGuire por Pixabay

A turma da diversidade, as feministas, os indígenas e negros passaram a combater o preconceito montados na estrutura da ciência das universidades, que passaram a se ramificar dentro de comunidades, escolas, quilombos, aldeias e outros espaços. Isso também pressionou a política por mudanças estruturais e por atendimento aos direitos dessas pessoas. A ideia sempre foi associar a representatividade com pariticpação política efetiva desses segmentos. Disso surgiram práticas. propostas de leis, reconhecimentos legais e marcos “como nunca antes na história desse país”. No entanto, a primavera da diversidade também veio com oposição forte do conservadorismo, capitaneado pelas igrejas evangélicas fundamentalistas, que fomentaram a oposição ao governo do Partido dos Trabalhadores, ajudando o Congresso Nacional a destituir a governante Dilma Rousseff do poder, dificultando a militância sociopolítica da diversidade, quando a sociedade brasileira elege, em 2018, o Congresso mais conservador de todos os tempos. Ou seja: o governo que já era reticente em atender a demanda das minorias, passou a se opor a elas, no legislativo e executivo. Restou o judiciário, destacando-se a atuação do Supremo Tribunal Federal, que em 2019, criminaliza a homofobia, mesmo sob protesto do governo federal e de seus deputados e senadores aliados.

A partir disso, embora esse Congresso não tenha tido força política para minar conquistas já ganhas, é interessante notar o total desinteresse ou repulsa pelas pautas da diversidade. Esse desinteresse é histórico e atravessou o período de treze anos de governo do Partido dos Trabalhadores, de 2003 a 2016. Embora o governo tenha sido permissivo em alguns pontos e assertivo em outros, mesmo que, ainda assim, o governo tenha investido na saúde da população LGBTQIA+, isso não se deu por beneplácito de um governo amigo de todos. Mas por demandas que se acumulavam, uma atrás da outra, em constantes judicializações pelo direito de tratamento à saúde, pelo acesso a medicamentos de alto custo, reconehcimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo ou mesmo direitos básicos, como estar dentro de uma escola e ser respeitado ou respeitada. E isso continuou em demandas  até que o governo federal passou a custear tratamentos, quebrar patentes e criar grupos de trabalho e opções públicas de tratamento para HIV/Aids, IST, tratamento a pessoas em transição de gênero, passou a combater a homofobia ou a reconhecer direitos, por exemplo. Não devemos NUNCA entender esse tipo de coisa como benefício unilateral e miraculoso do governo. Na verdade, tudo isso é resultado de décadas de luta, pessoas que se sacrificaram e iniciativas inovadoras de pessoas ligadas à diversidade. Aos poucos, isso foi sendo incorporado a ações governamentais, na medida em que essas soluções se mostraram eficientes em promover cidadania e bem-estar.

No entanto, muitas ações em prol da diversidade foram barradas pelo governo. Um exemplo emblemático que entrou para a história perversa da esquerda brasileira é a que envolve a criação de um “kit gay” para a educação de crianças e adolescentes nas escolas. Essa fake news correu os corredores do Congresso Brasileiro, quando a presidenta Dilma Rousseff, vetou a pedido de aliados do governo, em 2011, a produção de um kit anti-homofobia que seria produzido e distribuído nas escolas. Na verdade, esse kit nunca existiu como material didático produzido e distribuído, mas como projeto. O objetivo era ensinar a crianças e adolescentes a tolerância e o respeito a crianças e adolescentes que manifestassem identidade de gênero e sexualidade diversas. O material não continha ensinamentos de como se tornar gay, lésbica ou pessoa trans, como queriam os deputados evangélicos. Essa incompreensão, no entanto, foi a origem da pressão dos evangélicos pela supressão da ação do governo. Desse modo, a produção do material nem foi levada adiante.

Tempos depois esse fato foi duplamente explorado. Por um lado, opositores, em franca campanha contra o Partido dos Trabalhadores, criaram a ficção de um material didático que estaria estocado dentro das escolas, aguardando uma canetada do governo para espalhar a corrupção e o pecado na cabeça das crianças. Por outro lado, opositores esquerdistas do Partido dos Trabalhadores, passaram a mostrar que a presidenta negociou direitos da população LGBTQIA+ para aprovação de orçamento que privilegiava os mais ricos, que permitia ao governo dar pedaladas fiscais e gastar mais do que arrecadava num momento em que a economia passava por uma retração e o governo não conseguia cumprir metas de desenvolvimento. O desgaste do governo com a população LGBTQIA+ sempre aconteceu, no entanto, a baixa potencialidade de perda de votos ou ganho para o outro lado, faz com que governos, mesmo de esquerda, só façam algo pela diversidade quando isso não atrapalha o trânsito dos poderes e influências. Num momento de acirramento como agora, as propostas para essa população, em específico, sumiram do programa de governo do Partido dos Trabalhadores, assim como não foram discutidas nem colocadas em destaque nas campanhas, mesmo que personalidades e candidatos LGBTQIA+ tenham abraçado Lula e seu governo, passando uma espécie de recibo de que está tudo bem, as coisas vão melhorar para esse lado.

No entanto, há o real o acirramento do debate em torno da diversidade, com poderosos opositores com poder de voto, como a bancada evangélica, que tenta impor uma antropologia bíblica binária e focada no sexo para a reprodução, machista, misógina e homo-lesbo-bi-transfóbica. Esse apelo pelos valores tem apoio de parte da população brasileira, fascinada pelo fascismo e conservadorismo desses políticos e religiosos. Ademais, o que podemos esperar do governo de esquerda que pode ser eleito no domingo? Não tenho uma resposta exata, isso é, de certa forma, um pouco decepcionante.

O que eu sei é que todos se desviam desse tipo de discussão a todo o momento. Um vídeo que entrou em voga nas redes sociais essa semana, mostra um bolsonarista entrevistando uma pessoa que defende os valores da esquerda e o voto em Lula como forma ideal de expressão política dos valores cristãos. Uma das coisas que o entrevistador, cuja cara não aparece no vídeo, pergunta ao entrevistado, é a sua opinião sobre as pautas identitárias de esquerda. No entanto, ele responde de maneira muito direta e incisiva dizendo, em paráfrase, que pauta da esquerda é o fim da fome, é emprego para todo mundo, distribuição de renda. Com isso, ele evita ter de responder sobre assuntos espinhosos, delicados e desconfortáveis. Veja o vídeo:

Há uma lógica um pouco perversa nesse tipo de coisa: a hierarquização das necessidades humanas. Nesse tipo de argumento, coisas como a necessidade de comer e trabalhar são usadas como desculpa para que outros direitos humanos sejam colocados de lado, principalmente se isso agrada a grupos que demandam ou disputam o poder. Na verdade, os direitos da população LGBTQIA+ são transversais, ou seja, eles podem ser garantidos enquanto se garante alimento ou trabalho, uma vez que eles dependem de mudanças de atitude e de valores, dependem da educação da população e de atitudes cujos custos podem ser mínimos ou até nenhuns, comparados com outras ações para gerar empregos ou distribuir comida.

Na verdade, para que a eleição possa ser ganha, para que o atual presidenciável, Lula, possa continuar em alta e administrar a vantagem que ele possui em relação ao presidente que está no cargo, assuntos delicados não podem ser exatamente tratados agora. Eu fico um pouco constrangido com isso. De fato, eu apoio iniciativas e políticos que tentem tirar o país desse buraco de ignorância e sérios problemas socioeconômicos. Mas, por outro lado, ofende perceber que eu estou meio à parte disso tudo, e que meus problemas, minha identidade, meus direitos fazem parte de assuntos delicados. É com certo receio que vi lideranças LGBTQIA+ engajadas fortemente numa campanha que não as contempla por uma simples questão de “estratégia de luta”, uma luta que evita a verdade de frente com medo da reação das pessoas, parcamente comprometida com a realidade de que pessoas LGBTQIA+ existem, têm direitos e precisam ser visibilizadas, inclusive em prospectos de campanha política.

Vencer o conservadorismo deletério, misógino e LGBTQIA+fóbico não se faz com concordância tácita ao seu silenciamento duro e agressivo contra nós. Ponto a menos para esse governo que pretende nos redimir desses seis anos de governos omissores e agressivos. Esperava um pouco mais. No entanto, terei aquilo que o povo resolver que eu devo ter. O que eu espero é que a defesa dos meus direitos possa ser retomada, pelo menos.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa do post: Imagem de Ryan McGuire por Pixabay

 

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