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O PROBLEMÁTICO

Pedro era tudo de ruim. No trabalho, chamavam-no de Pedro, o “Neanderthal”, dada a sua incapacidade de compreender como o mundo evoluiu para a maior tolerância e convivência pacífica com a diversidade. Isso tudo porque, já passados 22 anos do século XXI, Pedro era o modelo antigo de homem que surgiu talvez na época dos avós de seus pais: machista, homofóbico, xenofóbico, racista, capacitista, etarista, agressivo e intolerante ao extremo. Mas era só um cara de 43 anos, minimamente bem-sucedido, empregado, ocupando um cargo de gerência, que ocupava depois de passar por várias empresas privadas e uma pública, nas quais tinha o mesmo comportamento que tinha nessa: ele era muito eficiente como empregado, mas tinha sérios problemas de relacionamento.

As coisas começaram ali por volta do fim da década de 1990, o primeiro grande emprego de Pedro num banco privado. Era um simples estagiário, mas bem relacionado. Isso rendeu a efetivação no cargo depois do fim do curso de Pedro. Ele, então, botou suas asas de fora. Torcedor fanático do Goiás Esporte Clube, ele compensava a falta de resultados mais expressivos de seu time alimentando uma acirrada e preconceituosa rivalidade com os outros clubes da capital do estado. Ele odiava os torcedores do Vila Nova. Os torcedores do Atlético Clube Goianiense eram taxados de velhos e os torcedores do Vila Nova, de bandidos. Não era assim, mas para ele era. Todos os papos sobre futebol no cantinho do café eram animados, e Pedro, no meio dos rapazes, chamava flamenguistas de favelados, corinthianos de bandidos, palmeirenses de porcos estúpidos, sampaulinos e cruzeirenses de gays. Era comum haver esse tipo de coisa, ainda mais num lugar como Goiás, com poucos times de expressão nacional, era comum que as pessoas torcessem por times do Sudeste.

Um comentário desses, depois de um jogo em que o Flamengo ganhara, Pedro se desentendera levemente com Rivaldo, um colega de banco, que além de um dos gerentes da casa, era flamenguista. O problema maior não foi o comentário depreciativo sobre o time, mas a continuação da história. Pedro, após ter criticado o time de Rivaldo, ainda teceu comentários sobre a aparência de Rivaldo: “aquele nordestino, cabeça chata”, referindo-se ao fato de que Rivaldo era cearense. Na verdade, Pedro foi além, dizendo que não via motivos de se colocar um nordestino no cargo dele, sendo que havia pessoas de origem melhor e mais capacitadas. Isso, claro, foi dito a um dos amigos de Pedro. Aquele amigo de confiança, sabe? Ele também tem um amigo de confiança e o outro também tem outro e esse telefone sem fio fez com que Rivaldo ficasse sabendo e pusesse as coisas em pratos limpos. Advertido seriamente sobre sua conduta, a empresa o manteve no cargo e na primeira oportunidade de corte de pessoal, Pedro foi demitido, enquanto Rivaldo foi trabalhar numa regional da empresa.

Mas, como sempre, racistas e xenofóbicos não são punidos exemplarmente. Quando eles cometem esses atos no local de trabalho, mesmo se demitidos, a informação sobre o motivo ou sobre o comportamento deles, em geral, não é documentado e nem compartilhado entre as empresas. Pedro logo alcançou um posto numa rede de supermercados. Ele trabalhou ali por dois anos seguidos, conseguindo um cargo de gerência. Nesse mesmo ano, mesmo estando noivo e de casamento marcado, mesmo sendo um cristão, dizimista e frequentador assíduo da igreja evangélica da sua quase esposa, Pedro foi acusado de assédio sexual, ao tentar convencer uma faxineira a fazer sexo com ele, dentro de sua sala, na hora do trabalho. Diante de várias negativas, ele não parava de tentar. A faxineira, desesperada, com medo de perder o emprego que sustentava mais ou menos a sua casa, resolveu pedir ajuda à secretária para armar um flagrante. Quando a faxineira entrou e Pedro entrou atrás, trancando a porta, a secretária, de posse de uma cópia da chave, abriu a porta quando a faxineira gritou alto, pegando Pedro no flagrante, de calças arriadas, apertando suas mãos nos dois braços da pobre. Pedro foi demitido, mas novamente, sem justa causa, sem denúncia, sem processo judicial. Depois de muito implorar, seu chefe assentiu em abafar a verdade, assim os rumores e fofocas que chegaram ao ouvido de sua noiva não passaram de fofocas maldosas. Pedro havia sido demitido por motivos de cortes no pessoal, por causa do desempenho da empresa. De fato, naquela época, a rede de supermercados fechou várias lojas e, por fim, foi vendida para outra marca. Não havia como Pedro continuar naquele cargo etc. A noiva acreditou e, antes que o casamento tivesse acontecido, Pedro já estava em outro trabalho.

Dessa vez, ele se tornara contrato temporário numa agência de atendimento ao público da prefeitura de Goiânia. Seu bom desempenho em informática e gestão deu a ele um posto de destaque, mesmo sendo temporário. Ficou cinco anos, tendo saído após várias queixas de um colega seu, cansado de piadas homofóbicas no trabalho. O problema maior de Pedro era que o gerente do posto de atendimento também era gay, primo do prefeito da cidade, na época, protegido e muito sensível à causa dos gays e lésbicas. Pedro foi dispensado, tendo amargado seis longos meses de desemprego, quando foi sustentado por sua esposa, professora de carreira numa escola federal, até que ele conseguiu uma colocação numa rede de lojas de móveis, onde trabalhou por dois anos, depois em outra, onde trabalhou por mais três e assim por diante, sempre dispensado sob alegações muito delicadas: preconceito, intolerância, assédio, agressividade, competitividade desnecessária.

Imagem de Rilson S. Avelar por Pixabay

No último lugar onde trabalhou em Goiânia, Pedro não foi mandado embora. Ele saiu da empresa depois de abraçar  uma oportunidade de ocupar um cargo numa loja no interior. Mas a opção pela vida numa cidade menor não veio exatamente porque ele quis, ou aproveitou o momento de melhorar de vida. Pedro estava fugindo de uma situação delicada, pois havia sido flagrado roubando roupa íntima da filha da vizinha do varal delas. Eles moravam em casas térreas num bairro popular. Pedro foi flagrado subindo no muro com escada para roubar calcinhas e uma camisola do varal. Isso porque a mocinha de quinze anos havia notado o sumiço de algumas peças, depois notado que elas apareciam jogadas no chão, algumas até mesmo mastigadas pelo cachorrinho dela, sujas, amassadas. Com nojo, ela resolveu jogar as peças fora, mas mostrou ao seu pai, que passou a investigar. O louco do Pedro continuou furtando peças e as jogando pelo muro, depois de usá-las em atos sexuais solitários. É claro que isso daria errado em algum momento. E isso aconteceu pois Pedro foi flagrado de meio corpo inteiro para cima do muro, arqueando-se sobre o varal parafusado sobre o muro. É que Pedro sabia onde era o varal, pois já havia entrado na casa dos vizinhos, havia tempos. bastava ele se esticar um pouco que alcançava sempre alguma coisa. Como usava uma escada de alumínio, daquelas retráteis, passá-la pelo muro era muito fácil, ele poderia descer ali e subtrair tudo o que quisesse. O único cão da família ficava dentro de casa. Mas no dia do flagra, o pinscher estava de fora, latiu e o dono da casa flagrou Pedro subindo para surrupiar calcinhas. Foi um escândalo. O problema foi parar dentro da casa da sogra e ficou insuportável a ponto de ele ter de se mudar para se ver livre de cobranças e ter espaço para lidar com a crise no casamento, já que a esposa não quis se separar, mas não facilitou muito para ele. O vizinho, vendo que o agressor se mudara, não o denunciou.

Ele se mudou e um mês depois ela foi, transferida, para um instituto federal próximo. Na loja onde foi trabalhar, Pedro ganhou a alcunha de Neanderthal. Todos o evitavam, ele estava isolado no trabalho e quase não tinha amigos. Os poucos, eram homens que comungavam de algumas de suas ideias. As opções políticas de Pedro sempre incluía posturas conservadoras que sustentavam seu extremo machismo e chauvinismo. No entanto, mesmo nos últimos anos, quando esse tipo de comportamento teve um modelo maior, o Presidente da República, a resistência ao seu modo se ser no coletivo, passou a ser maior. Pedro nunca foi longe na hierarquia dos seus locais de trabalhos. Sempre foi chefe disso, gerente daquilo, mas sempre havia superiores. Alguns desses cargos, ocupados por mulheres e gays, por exemplo. Isso o provocava a questionar, apesar da dificuldade imensa que mulheres, gays, lésbicas ou pessoas trans têm de chegar em certos postos de chefia. Ele era sempre o mais qualificado, pois sua condição de homem o tornava ideal para ocupar espaços de poder.

A história de Pedro não termina. Depois de assediar moralmente um colega gay, Pedro enfrenta, nesse momento,um processo. Sua meia-vida na empresa é curta, todos já sabem disso. Pedro, no entanto, pretende ser demitido, nunca ter o nome manchado por causa de escândalo nenhum, pretende contar com o benefício da dúvida e a pena de todos, inclusive de suas vítimas. Ao longo de sua vida, Pedro sempre foi ajudado e estimulado a ser como ele é: sua esposa o mimou, todas os homens e mulheres que ele ofendeu optaram pelo “deixa disso” e ele permanece sem ser preso. A história de Pedro é a mesma de muitos homens que têm seu comportamento tolerado, avalizado e até mesmo protegido pelos mesmos que são suas vítimas. Até quando isso tem mesmo de acontecer?

Pedro será demitido em breve, depois do movimento das vendas de fim de ano. Mas antes ele continua firme em seu comportamento que faz dele uma figura folclórica da cultura brasileira: o macho abusivo de estimação de todos.  Seu currículo impressionante e sua indenização recebida na demissão fará com que ele e sua esposa invistam na abertura de um restaurante novo em Goiânia, para onde ele voltará, depois de um tempo fora, tempo o suficiente para que todos se esqueçam do episódio das calcinhas. Agora ele será patrão, terá poder sobre um pequeno grupo de funcionários e funcionárias. Sua esposa, preocupada com o comportamento do marido, fará questão de acompanhar de perto a administração do restaurante, junto com o outro sócio para evitar maiores problemas. Enquanto isso, Pedro passa por colegas que se entreolham e riem dele, de seu ar de superioridade e do último comentário que ele fez para um colega gay: “Como eu devo te chamar, no masculino ou no feminino?”

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa do texto: Imagem por Pixabay

2 respostas

  1. Somos Energia e de todas elas, a Sexual Não sendo resolvida gera toda ordem de Distúrbio Psicológico! E essa gama de cargos de chefias que muitos buscam equivale a “Imunidade Parlamentar”! As empresas “abafam” os Distúrbios Psicológicos dos funcionários com chefia, porque o novo empregador, geralmente concorrente, pensará que critérios usa a empresa para colocar na chefia uma pessoa sem sociabilidade nenhuma! Mesmo sendo Órgão Público, o Superintendente de onde trabalhei até 1996, recebeu a ligação de outro Órgão que estava formando a Equipe Administrativa e lhe foi pedido a transferência de um funcionário, em lista tríplice, eu e meu chefe éramos concorrentes a vaga: eu e o colega de outro setor Não houve interesse do outro Órgão para compor a tal Equipe, mas o que era meu chefe, quiseram! Depois em conversa com o Superintendente ele comentou que prontamente cedeu o meu chefe e, ficou perplexo de não ser questionado por logo ter concordado com a transferência dele! E disse a mim que saberia que eu próprio me gerenciava! Depois o motorista que sempre levava demanda para nós comentou que o “escolhido por eles” não demorou para a Administração ficar arrependida! Eu ri e disse com direito a Redistribuição formalizada sem tempo para arrependimentos!

    1. Sua narrativa mostra que nem sempre os critérios de saúde socioemocional são corretamente adotados. Não comungo da crença de que sejamos energia, mas concordo com o conceito psicanalítico de pulsão como vontade e potência conjugadas. Hà milhões de histórias como essas em que pessoas más são privilegiadas por serem de um tipo que merece confiança mesmo que não possam tê-la.

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