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O mito de Platão na era das séries

Todos nós já ouvimos a alegoria de Platão (427-347aC). Seja por meio de piadas e anedotas, pelas animações e vídeos existentes, livros – principalmente – ou mesmo pelas complexas análises e interpretações de seus significados, sabemos como esta saga termina. Não irei me prender, em nosso bate-papo de hoje, sobre a narrativa do antigo mestre. Mas, observar suas possíveis relações com a contemporaneidade.

Em linhas gerais, a alegoria de Platão versa sobre homens presos em uma caverna, os quais não conseguem ver o lado de fora, mas somente as projeções das sombras na parede. Por causa disso, tomariam as sombras como verdade, sem conseguir ver de fato a origem das imagens. Após um dos prisioneiros conseguir se libertar, passa a ver a realidade negada aos demais. De volta aos companheiros, tenta alertá-los sobre a existência de um mundo de cores, formas definidas e cheiros, convidando-os para segui-lo, no intuito de ver a verdade. Porém, é criticado, tomado como louco, por questionar o que todos viam.

Essa alegoria diz muito sobre o comportamento humano. Nossa latente necessidade em procurar zonas de conforto, negando as dores da realidade tal como ela é. Queremos acreditar que nossos 5 sentidos alcançam a verdade. E por isso, qualquer coisa diferente seria um absurdo! Será que nossos sentidos são inquestionáveis? Em programa de televisão, uma senhora norte-americana afirmou não só ter visto o pé grande, como também alegou que o gigante a visitava com certa frequência para pedir alho. Não duvido dos benefícios do alho para a saúde, ou a provável dificuldade em encontrá-lo na natureza, mas a descrição mostra que é provável que os olhos preguem peças.

Quantas vezes você foi questionado por não gostar de pratos que nunca provou? Verdade seja dita: você não precisa colocar algo na boca para saber se irá engolir ou não. Se temos 5 sentidos, basta não ter cheiro agradável ou não parecer visualmente apetitoso, que automaticamente você terá certeza que não deve provar! Ou seja, os sentidos se moldam às situações. Dependem de nosso ânimo, sensações, critérios subjetivos e culturais – dependem de nossas vontades e caprichos. Por isso, tudo que nos afasta do prazer é considerado nocivo.

Essas peculiaridades são muito visíveis hoje. Aumenta com o passar do tempo o número de jovens, de 30 e 40 anos, que não tem pressa em sair de casa. Parece loucura alguém querer sair do conforto da residência para ter de pagar contas e boletos. Para homens e mulheres é maravilhoso ter as mesmas mordomias da época da infância. Alugar moradia, pagar contas, abastecer o carro e fazer supermercado é um desafio com o salário atual. Mas, se não é você quem paga, quem paga por você? Seus pais? Seus avós? Alguém está se sobrecarregando.

Amadurecer tem relação com a saída da caverna. Os grilhões são o sofá – ou cama – dos quais muitos não se afastam por nada. As sombras projetadas são as imagens das telas planas afixadas na parede, que passam horas e horas projetando um mundo idealizado, feliz, para o qual adoraríamos nos mudar. Por que as séries estão em alta hoje? Simples, você pode passar 48 horas ou mais vendo episódios de 30 a 40 minutos. Sãos curtos, mas passamos dias e dias admirando e contemplando a vida daqueles personagens.

Então, para quê encarar as mazelas da política? Ou perder tempo explicando e demonstrando nossa crise econômica? Por que deveríamos incentivar a pesquisa no Brasil e reconhecer o trabalho dos professores? Tudo isso daria muito trabalho! Seria necessário virarmos adultos; assumir nossa parte na solução e no problema da realidade atual; precisaríamos entender que pais e avós não vivem para sempre; que dinheiro não dá em árvores; e que nossos direitos podem ser roubados de nós a qualquer minuto. Ser adulto não significa ter barba ou ter um emprego e procriar. Mas, principalmente em atuar na vida coletiva e pública, em nome de nossos direitos, os quais evaporam por estarmos ocupados demais com as preocupações dos personagens da televisão e da internet.

Não queremos sair da caverna. Queremos, sim, o conforto de uma vida que possa ser oferecida por alguém que nos manterá, nos proverá, até o amor (dinheiro) acabar. E quando isso ocorrer, começaremos uma nova temporada.

Foto de capa de Patrick Doyle no Pexels

2 respostas

  1. Adorei a análise professor Daniel, parabéns! Como sempre, cirúrgica a sua abordagem de diferentes aspectos que englobam o comportamento de quem quer se eternizar na casa dos pais. Sair da caverna vai doer porque a vida não ensina nos envolvendo de plástico bolha como muitos pais fazem, mas vale muito a pena se permitir cair, ter cicatrizes e evoluir.

    1. É verdade, Michele. Precisamos aprender a seguir em frente. Amadurecer é aceitar a vida como ela é…

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