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O mês da diversidade em Goianésia, GO

Moro num lugar que facilmente poderia ser chamado de fim de mundo, mas na verdade é no meio do país e da América do Sul: O Estado de Goiás, na Região Centro Oeste. Minha cidade, cuja população estimada é de pouco mais de setenta e dois mil habitantes, no entanto, é um próspero lugar. Dominada pelo agronegócio do açúcar, álcool e pecuária, a cidade tem uns ares de grandezinha, mas tem aquelas características de cidade interiorana: poucos edifícios grandes, ruas largas ar pacato, morros ao fundo da paisagem. Mas é uma cidade agitada pelas três usinas de açúcar e álcool, tem comércio aquecido e empregos a ponto de chamar a atenção de migrantes e imigrantes. A proximidade relativa com Brasília e Goiânia traz um movimento pendular característicos: jovens e adultos saem para os centros maiores buscando estudo e formação, depois voltam atrás de melhores condições de vida, menor custo de moradia e emprego mais acessível. Aqui também temos algunas instituições de ensino superior, de forma que, em duas décadas, a cidade de Goianésia deixou de ser uma próspera cidade do interior para se tornar um lugar atrativo para as pessoas que antes se iam daqui com a perspectiva de raramente retornar. Isso tornou a cidade um lugar diverso: migrantes de várias regiões, estudantes universitários, população de rua, trânsito complicado, eis que, num piscar de olhos, nem parece que estamos no fim do mundo do interior do Estado de Goiás, a pegar uma fila de carro de dois quilômetros avenida abaixo para chegar na faculdade, ou ver a cidade cheia de semáforos na tentativa desesperada de controlar um trânsito intenso a abafar o som do sino da igreja anunciando a festa do santo padroeiro. E o que dizer daquela casa ali do lado em que já moraram duas ou três famílias só esse ano? Ou do número impressionante de bairros novos que vão surgindo, fazendo sumir as fazendinhas, sítios ao redor da cidade?

Imagem de fotografierende por Pixabay

E como fica a diversidade no meio disso tudo? Não fica. O mês de junho passou sem nenhum arco-iris no céu ou na terra. De fato, junho é um mês seco, frio e seco, extremamente ensolarado. Há semanas que não vemos uma nuvem de verdade, o que dizer de arco-iris reais no céu? Essa secura se estenderá até setembro, então nada de muito diferente nos fenômenos meteorológicos por aqui. A previsibilidade do clima também se reflete na previsibilidade das relações humanas. Se, por um lado, a cidade parece crescer a cada dia que passa, o respeito à diversidade e a presença da população LGBTQIA+ parece cada vez menos importante. Obviamente que, como crescimento da população, vemos mais gays, lésbicas, pessoas trans entre nós. Isso é considerado já comum. Percebo isso na conversa de meus estudantes, que têm entre 10 e 18 anos, é uma geração mais ligada à existência e relevância de uma diversidade sexual. Mas isso não significa que o respeito e a tolerância sejam automáticos.

Ao contrário, perecebo claramente uma banalização desse assunto, da existência de nós como pessoas, mas raramente isso vem junto com o reconhecimento de nossos direitos, o que se dirá de nossas potencialidades e desejos. A sociedade ainda é fechada para nós. Não acreditam na validade do nosso amor, nem na eficiência dos nossos corpos para o trabalho, assim como duvidam de nossos valores humanos, pois raramente podemos conviver no meio de outros com conforto e segurança. Ao contrário. A cada momento, fica mais evidente que temos estado longe do ideal. Falo por mim mesmo. Esse ano, já fui questionado algumas vezes por exercer meu trabalho sem esconder minha sexualidade. Estou consciente de que isso é bem mais fácil porque eu sou cisgênero, com boa passabilidade. Sou professor de língua materna e estrangeira numa escola pública, portanto uma figura continuamente vista, ouvida e questionada por meus estudantes e as pessoas ao redor. A sensação geral que tenho é de constante vigilância. Por parte de meus pares, porque esperam que, em algum momento, o assunto de minha sexualidade gere polêmica entre os garotos e garotas, por parte dos estudantes, que manifestam diferentes formas de compreender e lidar com um professor gay.

Geralmente, o que mais acontece aqui e em qualquer ambiente de trabalho é uma versão tupiniquim de “don’t ask, don’t tell” das forças armadas dos EUA. Muitos colegas gays ou lésbicas não falam sobre o assunto no trabalho, não respondem a perguntas, assim como a máxima de que “não tenho nada a ver com sua vida” também vale. Mas não é possível se viver escondido dentro de uma escola com centenas de estudantes e curiosidades acesas. Eles perguntam, alguns querem interromper o melhor momento de sua aula, no momento em que você ensina o valor de uma conjunção na argumentação, para questionar se você é gay, se é verdade o que dizem, alguns já perguntam negando: “Ah, não, tio… Não é verdade, não, é?” E sempre é. Eu sempre digo, arremato o assunto e continuo a aula, quando é possível.

Quando comecei a minha carreira, há dezoito anos atrás, isso traria um problema imenso para mim, com o qual eu precisaria lidar por semanas ou meses, dependendo da turma, com auxílio de alguém da coordenação ou direção da escola. Um evento desses, em 2005, fez com que dois alunos atirassem pedras e frutos de uma árvore da calçada em mim, enquanto eu saía para ir embora. Em 2018, sofri bullying e ciberbullying depois que estudantes expuseram conteúdo de meus perfis de redes sociais, nos quais eu falava abertamente sobre minha sexualidade, fazia humor ou apenas me comunicava com meus seguidores para a escola toda. Detalhe. Eu era um professor recém-chegado na unidade, eu mal havia tido tempo de me apresentar e conversar com eles sobre quase tudo. O fato de que eu não escondia ser quem eu era provocou a ira de um ou mais estudantes que resolveram expor minha vida como forma de humilhação pública. Além de andar pelos corredores ouvindo de adolescentes que o próximo presidente do país mandaria matar os “viados e travestis”, eu me vi num círculo de violência verbal e psicológica adoecedora ali, daquele momento. Pedras reais ou virtuais são dolorida demais.

Mas estamos no mês da diversidade. O que mudou desses anos para cá? Muito, talvez. Nada, talvez. O que eu sei é que as pessoas estão um pouco mais tolerante. Minha sexualidade não é mais novidade para ninguém, ao mesmo tempo em que eu vejo crescer na minha frente o número de adolescentes que se assumem gays ou lésbicas e ficam à vontade no meio dos colegas com isso, algumas pessoas até se impõem com certa desenvoltura. Há uma liberdade maior. Mas vivemos aqui algo parecido com que paulistanos e cariocas viveram há trinta ou quarenta anos em suas cidades cosmopolitas: uma diluição normalizadora, que esconde atrás de si muita violência e pouco reconhecimento de fato da diversidade, para além do simples existir. Muitos dos adolescentes que já se mostram como gays ou lésbicas podem estar em conflito com a família ou comunidade, vivendo em segredo ou mesmo tendo uma vida precária longe de seu núcleo original. Outros precisam adiar seus sonhos até que possam morar e sobreviver em lugares que permitam expressar a si mesmos, fazer a transição de gênero, buscar relacionamentos possíveis.

Quando vemos a cidade em junho e percebemos nenhuma comemoração à diversidade por parte do poder público, pensamos também no tipo de governo conservador, no perfil político daqueles que jamais farão qualquer coisa nessa direção. Não existe parada gay na cidade, embora algumas cidades do interior a façam com relativo sucesso. Não existe decoração arco-iris nas lojas, nem sequer naquelas lojas de departamentos de redes famosas, que em Goiânia e Brasília estendem tapetes arco-íris para consumidores cheios de pink money. De fato, o pink money aqui é irrelevante. Ninguém topa queimar seu filme mostrando as cores da diversidade na sua marca, ninguém quer se indispor.

Mas se indispor com quem? No século passado, sempre havia, na figura de senhores e senhoras de respeito, ou de líderes religiosos, como um bispo católico, um pastor ou um juiz de direito a bradar contra os atentandos aos bons costumes. Hoje em dia isso não é mais assim. O preconceito é disseminado. Por mais de uma centena de anos, a diversidade de gênero e orientação sexual foi considerada doença, desvio de caráter e algo ilegal. A geração de hoje nasce com pais e avós que ainda acreditam nisso como uma forma de viver no mundo. As igrejas católica e evangélica não dão um refresco nas regiões interioranas, sem igrejas inclusivas ou mesmo manifestações religiosas mais acolhedoras, porque seriam minoria incipiente por aqui.

Sem arco-írias por aqui, é difícil não intepretar as coisas pelo viés material. Aqui LGBTQIA+ é invisível porque o mercado não sente sua falta. Economicamente falando, não há como essa parcela da população exercer qualquer tipo de pressão, eleger qualquer político ou mesmo consumir ou deixar de consumir de modo sensível e interessante qualquer tipo de produto. Então não. Não existimos, quase. E não precisamos ter direitos respeitados.

Seria até desnecessário termos nossas cores estampadas numa bandeira, num mastro, ou na lateral da torre da Igreja Matriz, ou no condomínio Aquarius, escondido pelo vale do córrego dos Buritis que nem existe mais. Como o córrego dos Buritis, no centro da cidade, a dignidade LGBTQIA corre subterrânea até sumir em outro curso, disfarçada, mas ainda aparente. Nas cidades maiores, o mercado deixa você ser gay, aqui, a gente dá licença para não atrapalhar as compras da família tradicional goiana, território do machismo, do abuso, do feminicídio, da agressão.

Goiás é o estado com as estatísticas mais preocupantes de feminicídio e de violência contra mulheres. Os dados da violência contra LGBTQIA+ são varridos para debaixo do tapete porque quem quer saber que existimos? Mas onde há violência contra mulheres, há violência contra lésbicas e mulheres trans. Há também intolerância e assassinato constante de gays, há a fuga de pessoas trans para grandes centros, em busca de uma existência possível ou tratamentos.

Minha cidade não tem sequer um centro de referência para prevenção e tratamento de IST-Aids, que distribua PrEP ou PEP, não tem sequer um atendimento voltado à população LGBTQIA de rua e, nos últimos aos, vi algumas tentativas desaparecerem, e o capital intelectual pela diversidade daqui migrar para outros lugares. Num ambiente como esse, as pessoas deixam o coletivo de lado e passam a priorizar seus sonhos pessoas em detrimento do coletivo. Isso quando não esquecem o social para lutar pelo panem nostrum quotidianum, porque esse não tem Pai Nosso que dê.

Complicado, né?

Mês da diversidade, dia 28 de junho. Enquanto você prepara seu carrosel de fotos da última parada ou sua frase bonita falando da LIBERDADE DE AMAR, pensa em quem nem pode existir e amor, de fato, é um horizonte acima da linha do fundo poço.

Pensou.

Não, né? Posta então, seus seguidores não esperam mais do que isso e nem menos.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

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