Título meio grande o de meu texto, né? Mas é só o título que é complicado. Eu quero falar sobre como a opinião de um cantor sertanejo sobre uma colega da música pop põe em evidência a demolição da masculinidade e do machismo que conhecemos hoje em dia. Vamos à treta, então. Tudo surgiu quando o cantor Zé Neto, da dupla Zé Neto e Cristiano, num show em Sorriso, Mato Grosso, teria tecido comentários sobre a Lei Rouanet e a cantora. No seu pronunciamento ele disse que não precisava de tatuagem no “toba” para se promover e nem da Lei Rouanet, porque eram cantores de sucesso e quem pagava pela apresentação deles era o público. Por detrás dessa declaração, havia a intenção clara de julgar a cantora Anitta pela sua exposição de seu corpo e intimidades como estratégia de popularidade. Além disso, ao criticar a Lei Rouanet, o cantor deixa clara a sua adesão ao ideário conservador e crítico à cultura brasileira, o mesmo que fez com que o governo atual também criticasse essa lei, extinguisse o Ministério da Cultura e dificultasse o aceso a esse e outros mais programas de fomento a atividades artísticas.
Vou ser bem direto, porque o tema dá tanto espaço para debates que a gente se perderia esmiuçando tudo. Zé Neto e Cristiano são de um universo em que mulheres fazem menos sucesso que homens, mesmo com a presença estelar de pessoas como Marília Mendonça, Maiara e Maraísa e outras tantas mulheres e duplas femininas. Aliás, o sertanejo feminino, sobre o qual eu já falei nessa coluna, é um movimento de resistência à constante presença masculina nesse tipo de arte. Outra coisa que incomoda bastante é o sucesso de Anitta. Seu sucesso não veio de uma tatuagem no ânus. Eu não tenho coragem de negar que expor isso nas suas redes sociais é algo que produz efeitos diversos e críticas. E que polemizar sobre uma tatuagem num local tão íntimo não tenha produzido engajamento e sucesso. Produziu sim. Mas não parece ser invejinha do sertanejo? Há coisas que só podemos fazer com o corpo quando somos mulheres ou homens muito livres. No caso de Zé Neto e também no caso de seu parceiro de dupla, Cristiano, não há como eles tatuarem os seus ânus em busca de sucesso. O limite que a arte que escolheram traz é muito pequeno, nesses casos. Eles precisam de uma imagem de homens heterossexuais e bem-sucedidos. O mais interessante é que eles poderiam estar agora no mesmo platô de sucesso em que se encontram (infelizmente bem abaixo de Anitta…) se fossem solteiros e tivessem mais liberdade do uso de seus corpos. No entanto eles escolheram se vender assim, engajando-se numa pauta conservadora, mostrando-se como homens bem casados, com família e amigos ao redor de si, filhos, seguindo um sonho interiorano e burguês de bem-estar e êxito pessoais, alcançados graças a valores e crenças que compartilham com seu grupo.
Questionar o sucesso estrondoso de uma cantora por detalhes e declarações suas sobre seu corpo, sobre ele todo ou sobre partes particulares, é justificar que ela só faz sucesso por ter um comportamento “depravado”. Esse tipo de comportamento é algo que um homem pode ter, e com ele, se levantar para julgar uma mulher. Foto: Laranja-da-baía, disponível em: https://www.reddit.com/r/mildlyinteresting/comments/b5aro3/this_orange_has_an_anus/
No fundo eles querem se vender como pessoas de bem, coerentes, cujo trabalho e esforço os levaram a si mesmos longe. Nâo precisam de escândalos momentâneos, como precisou Anitta, a ponto de expor sua intimidade em detalhes, tatuando seu ânus quase que publicamente, para que todos pudessem se engajar nas suas postagens e garantir sucesso. Ironicamente, essa crítica produz engajamento. Anitta, indiretamente, é usada por seus colegas de show biz brazuca para fazer sucesso nas redes. Enquanto polêmicas são criadas e o assunto invade de modo insuportável todas as redes sociais, o nome da dupla vira trand topic, e sabe-se lá quanto isso aumenta os acesso ao conteúdo pago deles.
Eu, inclusive, falando sobre isso, espero ainda ter alguma atenção para meu texto. É uma oportunidade. Todos estão falando, então se eu der minha opinião agora, há uma mínima possibilidade de ser mais lido, mais notado etc. Não que eu queira me aproveitar, mas de fato, eu sou um articulista, meus assuntos devem fazer sentido dentro do recorte temporal em que eu decido publicar meus textos. Enfim, metalinguagens à parte, é hora de pensarmos se Zé Neto é mesmo o exemplo de conservador e trabalhador da música que pode, de fato, questionar o uso que Anitta faz de coisas fúteis e questionáveis, como tatuagens íntimas. Uma coisa de cada vez, porque o texto está crescendo muito dentro dessa caixa. O assunto pede muita conversa, por isso menos é mais. Pensemos bem. Zé Neto já foi flagrado usando sua fama de modo narcisistico, como quando expôs seu corpo num traje de banho, com um notado e comentado volume na frente, o que causou um debate fervoroso sobre seus dotes. A beleza física do cantor é uma questão de opinião. A sua voz aparece mais que seu rosto, seu companheiro de dupla, Cristiano, é visivelmente mais bonito e simpático. No entanto, ele não pensou duas vezes em postar uma foto com sunga apertada, conforme noticiou a imprensa de celebridades, há dois anos, conseguindo mais de 600 mil novos seguidores em uma hora. E assim como todos comentaram o ânus de Anitta, Zé Neto precisou sim, mostra seu pênis espremido numa sunga verdade para conseguir engajamento.
Seus valores conservadores não conseguiram evitar que ele também já tivesse feito declarações “bem humoradas” sobre zoofilia e seus hábitos sexuais na “roça” que viveu: São José do Rio Preto, com quase 500 mil habitantes e que hoje já forma uma região metropolitana com 36 outras cidades. Para mim, é uma roça bem asfaltadinha, né? Apesar de que cidades grandes tenham cultura caipira, assumir que fazer sexo com éguas seja algo normal, faça parte da formação sexual do homem interiorano é algo muito delicado. Isso não faz parte da formação mental de homens interioranos no geral. Mas talvez aconteçam com pessoas que não tiveram nenhuma orientação sexual na adolescência e não tiveram nenhuma forma de apoio de seus pais ou homens mais velhos da família em orientá-los a procurar formas saudáveis e respeitosas de terem prazer e afeto. Zé Neto ou o Presidente da República precisam encarar esse momento específico de seus passados como algo que não deve ser usado como motivo de vanglória. Não vivemos mais na antiguidade, não estamos mais numa sociedade que precisa ser condescendente com esse tipo de crueldade contra animais.
Então duvidar da ética e da seriedade de quem expõe uma tatuagem anal como forma de engajamento não é extamente a melhor saída para quem já expôs o próprio corpo e suas intimidades para gerar, no mínimo, polêmica e engajamento. Isso tentando ainda se equilibrar como pessoa crista, conservadora, comportada e casada. Casos extraconjugais e esses supostos escândalos vieram novamente à tona. Fãs da Anitta, irritados com a atitude do sertanejo, não têm deixado barato.
Mas de fato, independente de julgamento, a carteirada de trabalhador, pessoa de bem e conservador, é algo que Zé Neto só dá porque é homem, porque se acha numa posição de superioridade. Nessa posição, vale foto de seu pênis em evidência, vale transar com fã, ter filho com prima, transar com animais e falar mal dos outros e querer sair incólume do processo todo. E o fato de que as opiniões se dividem mostra que somos uma nação cuja população, em parte, quer continuar a privilegiar o lugar de fala de homens que são hipócritas, machistas e abusadores. Ou seja, a liberdade de ser é consignada ao sexo biológico, ligada a um papel específico e identidade de gênero que, combinada com valores cristãos e conservadores, apagam qualquer coisa que um homem possa ter feito de errado e abominável. O certo mesmo é ganhar a vida com esforço próprio e sem ajuda do governo.
E isso entra na Lei Rouanet, que por décadas se tornou a principal forma de financiamento público de ações culturais. Para um cantor sertanejo pode não ser importante, mas a Lei Rouanet garantia o ganha-pão de toda uma parcela da classe artística no país. O governo atual a questionou duramente, numa ação clara contra uma classe artística, que fez outras coisas, como já citadamente, extinguir o Ministério da Cultura. De fato, eles faturam muito. E os métodos de enriquecimento incluem também a exposição aparentemente indevida do corpo para conseguir engajamento. O problema, talvez, seja descobrir que Anitta consegue bem mais que eles com isso tudo, muito mais trabalho e sendo mulher.
Zé Neto mostra hoje a opinião de pessoas em franco processo de decadência: o machismo desenfreado dos meados do século passado. Não sei se Anitta é exatamente o nosso ideal de heroína, pensando do ponto de vista de quem também é capitalista e enriquece numa indústria de entretenimento exploratória. Mas sei que as pedras estão clamando. Se for preciso que outras Anittas tatuem seu ânus para que entendamos de liberdade e equidade, que seja!
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos