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Feminejo

Por que escrever sobre as mulheres do sertanejo? Primeiro porque é um movimento artístico popular, influenciado pela música estrangeira, mas distinto dela o suficiente para ter uma identidade brasileira, caipira e, acima de tudo, parte de uma contemporaneidade descontínua e em construção. Apesar das origens sudestinas do movimento sertanejo, os seus focos de atuação são espalhados por todo o Brasil caipira e tem em Goiânia, Goiás, seu principal polo criativo e de negócios. O sertanejo precisa ser visto, ouvido, compreendido, questionado e criticado. Não aquela crítica excessivamente urbana de “música de corno”, “música de roceiro que veio para a cidade”. Não para alimentar a dicotomia estúpida entre urbano e rural, não para alimentar a hierarquia musical delirante que coloca movimentos musicais oriundos dos Estados Unidos da América e Europa como superiores. Precisamos ouvir o sertanejo para nos ouvir, para ouvir o coração do nosso povo e da nossa cultura, para nos conhecermos e, por fim, produzirmos as críticas necessárias e reais.

Não pensei em escrever esse texto por ser Dia Internacional da Mulher, nem mesmo quero me desdobrar sobre um tema que seria mais bem tratado por uma opinião feminina, quero apenas dar a minha opinião de analista de discurso, consumidor de mídia e, acima de tudo, de observador da minha própria cultura. Por isso resolvi comentar essa espécie de movimento, de tendência dentro da música sertaneja: o sertanejo feminino, o feminejo. Reitero que não é uma opinião que tenha que ser aceita amplamente e nem é enunciada a partir dos melhores lugares de fala. Sugiro às leitoras que se manifestem ou mesmo às colunistas do site que deem sua opinião, refutando ou complementando a minha, isso seria riquíssimo. Descobrir-me equivocado e tendo de mudar de opinião, nesse caso, seria um aprendizado único e desejado. Mas, enquanto isso, vamos às minhas descobertas.

Mulheres do feminejo homenageando Roberta Miranda em seu DVD: gerações distintas, tempos distintos. Foto: Divulgação.

No princípio

Não há como falar sobre música sertaneja feminina sem se falar, primeiro, de música sertaneja. Como toda música brasileira, é um fenômeno complexo que envolve influências diversas e uma caminhada histórica dentro do século XX. Para a região Centro-sul do país. A cultura nesses lugares é muito parecida, principalmente no que tange à fixação do homem ao campo, à agropecuária e principalmente à tradições locais que variam, mas acabam passando por muitas convergências por causa de uma base cultural comum. Temos um mundo caipira que se reconhece pelos sotaques parecidos, pelas comidas e pela música.

feminejo (Foto: GLAMOUR) — Foto: Glamour

De Inezita Barroso às cantoras da década passada: vozes femininas e ousadas. 60 anos de música sertaneja feminina. Foto: Glamour – Globo.com

Antes do sertanejo, havia a música caipira, executada por descendentes dos colonizadores e dos imigrantes europeus mais tardios (século XIX e XX), usando instrumentos tradicionais, como a viola de doze cordas, violão, acordeom, criando uma música de características românticas, no sentido literário do termo, de resistência à modernização do país, principalmente após os anos de 1930. Nessa época, o rádio também ganhou força como difusor de cultura e logo a música caipira ganhou seu espaço. O movimento sertanejos, com esse nome, que começou por volta de 1910 e chegou à primeira gravação de Cornélio Pires, em 1929, culminou no surgimento de vários grupos e duetos (duplas sertanejas) usando viola, violão, cantando de um modo que se tornou tradicional, canônico, na música sertaneja: duas vozes, com a diferença de uma terça entre ambas, do início ao fim da canção. Os instrumentos eram acompanhados de percussão e mais tarde de baixo elétrico, bateria, cordas ou metais.

Masculina

Além de masculina, a música sertaneja era romântica. A princípio, tratava da vida no campo, das belezas da natureza e contava histórias, causos rurais, alguns deles trágicos e cheios de lições de moral. Era um mundo em que o homem e a mulher do campo viviam como os indígenas: com o mínimo para sobreviver, em total harmonia com a natureza. A temática começou a variar para a música mais romântica, a partir dos anos 50: entraram nas influências os ritmos europeus, como a polca, sem, no entanto, perder a temática. A harpa e o acordeom passam a ser mais comuns, assim como a entrada de ritmos brasileiros (samba, forró, coco, embolada) e latino-americanos (guarânia paraguaia, o bolero e outros ritmos caribenhos, de maneira mais sutil), num movimento que durou até o início dos anos de 1970. A música sertaneja torna-se uma música também da noite: dos bordeis, casas noturnas e, por isso, masculina. As poucas mulheres dessa época desbravaram um duro caminho.

Já nesse período (1970-2000), o sertanejo assumiu de vez ares de música urbana, sempre saudosa do mundo rural, acompanhando a cultura sertaneja: rodeios, bailes, festas de peão, e passou também a se referir ao mundo da agropecuária extensiva, e se mostra semelhante à cultura country dos Estados Unidos. A música sertaneja ganha as paradas de sucesso, nos anos de 1980 e se consolida como um fenômeno da música pop, genuinamente brasileira, importante, na década seguinte. Rádios, TV, paradas de sucesso, telenovelas, programas especiais de televisão. Um fenômeno de massas que preencheu um espaço na arte popular brasileira que estava sendo tomado pelo pop norte-americano e europeu. Esse mesmo tipo de movimento na música sertaneja acontecia em paralelo com o forró nordestino, que também desembocou em sucesso nacional nos anos de 1990 e na década seguinte, o mesmo período em que a massiva aparição da Banda Calypso, do Pará reconfigurava os espaços de fruição da cultura popular pela música.

A chegada da Internet trouxe uma dinâmica diferente ao sertanejo. Enquanto as duplas da década de 1990 ensaiavam hiatos ou se dedicavam a projetos menos abrangentes, a galera do mp3 lança o sertanejo universitário, porta de entrada do movimento feminino. Se por um lado, a música sertaneja das décadas passadas deu espaço a garotos roceiros, por outro a atual trouxe garotos urbanos para o jogo. Zezé di Camargo e Luciano ou Leandro e Leonardo vieram da roça, mas as duplas dos anos subsequentes eram formadas por estudantes, que viram as festas universitárias, o circuito de bares e casas noturnas de Goiânia, por exemplo, como um espaço ideal para mostrar suas composições de início de carreira. Esse meio abraçava tanto gente do interior quanto da própria capital e o potencial de Goiânia fez deslocar para lá empresários da noite do Sudeste inteiro. As duplas eram formadas, fermentadas em Goiás e de lá, para o país inteiro.

É um sertanejo tipo industrial: músicas fáceis de cantar, fáceis de aprender, todos os rapazes bonitos, com aparência padronizada: cortes de cabelo parecido, roupas modernas, temática musical dançante e romântica. As duplas antigas iam ficando para trás, enquanto as novas povoavam os festivais, como o Villa Mix, que batia recorde atrás de recorde em participação popular, apesar de caro e elitista. Nisso, houve um salto “qualitativo” e financeiro da música sertaneja: ela passou a produzir produtos que só podiam ser consumidos por mais ricos, reproduzindo a lógica da economia do espaço e da diversão das casas noturnas. Cada show tem sua lista vip, tem seu espaço com bebida exclusiva, com preços exorbitantes.

Feminejo ou sertanejo feminino

Quando o século XXI chegou, o sertanejo não era o único movimento de música popular que vendia muito e arrastava multidões. Mas isso não foi um problema para a música sertaneja, que passou todo o século XX se consolidando. Havia espaço para todos e o gosto popular se demonstrou democrático. Na verdade, permitiu um contraste: a música sertaneja era menos inclusiva. Apesar de ter contado com a adesão feminina ao seu gosto, as bandas de forró nordestinas e de tecnobrega do Pará eram muito mais inclusivas. As mulheres desempenhavam papéis importantes nos vocais, em carreiras-solo, por sua vez, a participação feminina no sertanejo ainda era tímida, até recentemente. Esse “recentemente” é a década de 2010. Duplas femininas e cantoras solo começaram a aparecer e, em busca de espaço, elas trouxeram consigo uma novidade: o ponto de vista das mulheres naquilo que cantavam.

Há quem chame o feminejo de feminista, mas não há exatamente uma adesão desse movimento musical aos princípios do feminismo e aos seus questionamentos mais atuais. Ao contrário. A demanda das cantoras é por uma aceitação maior no campo dessa arte ao mundo feminino, ao seu ponto de vista do mundo e do amor cantado, sem qeustionar tão profundamente o papel do homem. De fato, a música sertaneja, apelidada de “música de cornos, traídos e infiéis” cantava somente as mazelas do amor masculino, em associação com a bebida, as festas mundanas e a lógica masculina da conquista e do amor. Na música sertaneja, prevalecia a visão da mulher como objeto de desejo e até mesmo de consumo do homem: é uma figura erótica, mas ao mesmo tempo produtora de malefícios. O homem sempre vê a mulher como a fonte dos seus problemas: é ela que seduz ou enfeitiça quando seduzida. A mulher é também o motivo das dores masculinas. É a mulher infiel que trai, a indiferente que mata com o olhar. E as mulheres que cantam e ouvem? O que acham de tudo isso?

A ONDA FEMINEJO: Como as mulheres dominaram um dos redutos de música mais machistas do país

Marília Mendonça, Paula Fernandes, Simone e Simaria e Maiara e Maraísa. As “Patroas” no poder, ressignificando a denominação irônica e depreciativa que os homens dão às suas esposas e namoradas, as “Patroas” do sertanejo mostram independência de pensamento. Foto: Montagem do site Aratu Online. Leia a matéria de origem, clicando na imagem.

Até onde se sabe, as cantoras sertanejas sempre cantaram músicas femininas, mas nunca que desafiassem essa visão masculina do mundo. Apesar de poucas, as cantoras sertanejas também dividiam com os homens o mesmo repertório, muitas vezes cantando canções cujo eu-lírico era masculino. Algo que não acontece com frequência quando homens cantam. Especialmente no sertanejo. A misoginia profunda de um dos nossos clássicos da música caipira, Cabocla Tereza, mostra bem essa visão cristalizada a respeito da mulher como problema. Outra coisa importante. Dentro do movimento sertanejo, a música caipira ou mesmo a sertaneja moderna se afastam da política, dos problemas sociais e seus dramas, tendo raros momentos em que tematizam isso.

Já o feminejo, assim que surgiu, ousou mais, num meio machista arraigado e querendo garantias de lucro, no qual mulher era objeto de consumo ou vilã de uma história de amor malfadada. No clipe abaixo, Naiara Azevedo, Maiara e Maraísa expõem a traição do homem numa canção cheia de despeito, fúria e revolta. Na letra, ainda persiste o ressentimento da mulher traída pela amante, temática que evolui, em canções posteriores, para a compreensão de ambas as mulheres são enganadas por um homem de caráter duvidoso, evidenciando alguma sororidade e autonomia do pensamento feminino.

A tendência veio mostrar o ponto de vista da mulher que sofre por um homem também indiferente e infiel. Outro passo importante: a música feminina tematiza, além das traições e dores, o próprio amor e o sexo, o desejo feminino, as suas declarações sentimentais e amorosas, agora possíveis de serem comunicadas sem censura e timidez. A mulher moderna não tem mais medo de dizer que sente tesão, atração, que acha homem bonito, que bebe até cair ou que lida com problemas emocionais iguais aos masculinos, de maneira aberta.

Cantoras sertanejas ganharão documentário no GNT - Portal Roma News

Cantoras do feminejo. Foto de divulgação do Documentário “Autênticas – As Rainhas da Música”, do GNT.

Essa diferença temática, no entanto, não aparta o feminejo do sertanejo masculino, ao contrário. Aproxima mais a ambos, reconcilia homens e mulheres que passam, pelo menos no teatro musical criado pelos artistas, a se entenderem mais, a se compreenderem e coexistirem em paz. Com isso, o cenário musical passa a ser mais sensível ao empoderamento feminino, diminui a distância entre os sexos, os gêneros. As mulheres passam a serem mais aceitas, embora não questionem profundamente o papel feminino de gênero que ainda desempenham: ainda são mães, ou querem ser, sustentam famílias, dão-se aos papéis de gênero mais comuns e querem ser amadas. No clipe abaixo, o dilema feminino da mulher rejeitada que recorre à prostituição para sobreviver, cantado por Marília Mendonça:

O feminejo busca empoderamento e equivalência de poderes, uma luta que é travada dentro e fora do campo musical. Por um lado, as mulheres tentam se afirmar como capazes dentro uma arte dominada por homens, por outro precisam ser levadas a sério no íntimo de suas relações. Mas não é só nesse ponto que as coisas são difíceis. Mulheres têm dificuldades de serem compreendidas, ouvidas, são silenciadas antes que terminem uma fala e muitas vezes só escutadas quando um homem referenda o que elas dizem. No entanto, em 2016, o feminejo explode, com o sucesso múltiplo de várias cantoras ao mesmo tempo: Marília Mendonça (solo), Maiara e Maraísa (dupla), Simone e Simaria (dupla), Naiara Azevedo (solo). Nesse ano, Yasmin Santos e Lauana Prado também se lançam como cantoras, entrando nessa onda, engrossando o movimento que também reconheceu os nomes femininos anteriores, como a mineira Paula Fernandes, que se lançou em carreira solo bem antes do movimento, ou mesmo nomes clássicos, como Roberta Miranda, Sula Miranda (irmã de Gretchen), as Galvão ou Inezita Barroso, cujo sucesso já é consolidado há décadas. Ao contrário, as cantoras da geração atual mostram um profundo respeito pelas mulheres que asfaltaram a via em que elas fizeram o seu caminho.

No clipe abaixo, Paula Fernandes faz uma “profissão de fé”, cantando suas origens mineiras. Extremamente ligada às suas raízes, a cantora tem o repertório mais lírico e sofisticado de todas as cantoras do feminejo, afastando-se do lugar comum das músicas que tematizam festas e bebedeiras, em prol de um romantismo melodramático, piegas, mas elegante sóbrio. O mundo sertanejo permite esse tipo de negociação de sentidos:

Fim de causo

O feminejo é um subgênero do sertanejo, de acordo com os próprios críticos e analistas do movimento. Só faz sentido ser do feminejo se a intérprete for mulher, se adotar a valorização dos sentimentos femininos, se mostrar o seu ponto de vista numa dialética que precisa do homem para existir. Não há um profundo questionamento daquilo que é o papel da mulher na sociedade, de fato. O que se tem é um questionamento de como as mulheres devem viver o seu papel, quais os valores que devem guiá-lo. De qualquer forma, as mulheres do feminejo querem ser mães, amantes, querem cuidar de suas famílias, mas, acima de tudo, querem decidir como e quando querem fazer isso, quando e como devem sair de um comportamento de busca do prazer para a busca da responsabilidade. Isso não significa que queiram seguir sempre os homens nesse itinerário. O feminejo busca tirar a mulher de espaços idealizados e de submissão, dando a elas uma igualdade, mesmo que isso não signifique a equanimidade necessária para que, certamente, homem e mulher possam desfrutar dos mesmos benefícios sociais, mas cada um no seu papel.

Do ponto de vista musical, o feminejo traz frescor e diversão num nível maior que o do sertanejo masculino ou dominado apenas por eles. A sinceridade das letras e as novas temáticas atiçaram os fãs e trouxeram empolgação pelo gênero. As cantoras femininas também entraram numa onda de conformação a um padrão televisivo, cinematográfico de beleza e produção de seus materiais audiovisuais, tudo isso, conforme atestam por si mesmas, ficaram “lindas” para valorizarem a si mesmas. Aparentemente saíram do escopo do desejo masculino para entrar no padrão da televisão e da Internet de beleza. Maiara, Maraísa, Simone e Marília Mendonça emagreceram, submeteram-se a tratamentos de beleza para parecerem mais sofisticadas e anunciarem a nova verdade do evangelho sertanejo. A presença delas nos programas da televisão aberta e fechada, as constantes participações na mídia, a profusão de seus canais privados nas redes sociais mostra-as como protagonistas de uma vida de sucesso que passa pelos negócios, como empresárias, ao mesmo tempo em que as cantoras enfrentam uma dura rotina de shows pelo país, vivendo em camarins, aeroportos e areonaves.

No clipe abaixo, gravado em 2021, “As Patroas” cantam o drama da mulher que tem que sair correndo para socorrer seu marido ou namorado bêbado, que só lembra de declarar seu amor quando precisa de ajuda para voltar para casa, inconvenientemente. Um drama feminino que deixa no ar um cheiro de conduta abusiva, de problemas mais sérios, apesar de ser uma canção cheia de humor e cantada numa linguagem acessível e contemporânea:

O ritmo de trabalho dessas mulheres empoderadas do sertanejo é intenso. Por isso, Marília Mendonça morreu precocemente, em novembro do ano passado, num acidente de avião, a caminho de um evento em que era atração principal. Todas as cantoras do subgênero se unem na sua despedida, demonstrando manter firme a chama do movimento. Seguindo cada uma seu caminho, a popularidade ganhada nos últimos cinco anos as fizeram diversificar as atividades midiáticas. Naiara Azevedo traz à tona discussões sobre sua carreira, vida pública e pessoal, após se inscrever e ser aceita no elenco do Big Brother Brasil 22, um teste para sua popularidade e carisma. Maiara e Maraísa herdam um álbum gravado com Marília Mendonça, em alta nas plataformas digitais desde a morte da cantora. A dupla administra tanto o sucesso do empreendimento quanto a perda da companheira.A dupla Simone e Simaria passou algumas temporadas em programas musicais da Globo, agora retornam aos lançamentos de singles e shows, com a flexibilização das atividades de público, durante a pandemia.

A música sertaneja vê mais uma vez um ritmo nordestino, a pisadinha, assim como foi o arrocha há dez anos, inundar as rádios com canções que concorrem com as suas. E mais uma vez, os cantores sertanejos deixam mais essa influência entrar, pois os objetivos de diversão são iguais para todos. Nesse ínterim, as mulheres correm por fora, levantando a bandeira de uma igualdade que não desfia a lógica que a incompatibiliza com a realidade, mas que marca um espaço diferente. Não são feministas de fato, mas são femininas e trazem consigo a conquista de poder ousar dentro dessa identidade conflitiva e em construção, que é a mulher contemporânea do século XXI: com muito a conquistar e tendo que aprender a lidar com o que conquistou, sem folga, sem facilidades, sem colher de chá por parte de uma sociedade machista, capitalista e nada inclusiva.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

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