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O fetiche poderia ser uma forma de prevenção?

Foto de uma berinjela amarrada com uma corda simulando um fetiche #pracegover
por Michel Furquim

Em uma destas tardes secas de São Paulo, conversava com uma grande amiga da pós-graduação da Saúde Pública. Nesta nossa conversa, como sempre, despretensiosa e virtual, chegamos ao tema que têm orbitado nossas relações e diálogos há meses: a pandemia. Mas neste momento não falávamos sobre a (última noticiada, depois da penúltima e depois da antepenúltima) vacina para o novo coronavírus, nem sobre o número alarmante (e resultado direto da ausência de políticas do (des)governo federal) de mortos. Falávamos de tezão (desculpe o neologismo, mas acho que esta palavra fica mais interessante com um Z no meio), mais especificamente de fetiches. Comentávamos sobre uma notícia que informava o aumento no número de acessos aos sites pornográficos e o aumento nas vendas no e-commerce [1]de acessórios sexuais. Ela, por sua vez, me conta que percebeu rostos novos no aplicativo de pegação relacionamentos que ela usa.

É bem provável que o distanciamento corporal – prefiro este termo no lugar de distanciamento social, afinal nossa co-presença, a partir de smartphone e redes sociais não seria uma aproximação social? – causado pela quarentena tenha alterado as formas de se relacionar sexualmente entre as pessoas, mesmo aquelas que não acreditavam que de fato havia uma pandemia ou aquelas que não tinham o menor interesse em ficar em casa até a curva de contaminação baixar. Motéis, cruising bares[2] e saunas fechados fizeram com que o sexo caminhasse para o cyberespaço

A relação entre sexo e internet não é algo novo e nem desse ano. Inclusive a pornografia virtual (mesmo com todos os seus problemas e desserviços para com a sexualidade) foi catalisadora de muitas das tecnologias que possuímos hoje. Se você pode assistir sua série favorita na Netflix hoje em dia, agradeça ao pornô, que produziu as primeiras plataformas de streaming da internet. Vendas online atualmente só foram possíveis graças ao e-commerce que teve origem nos sites pornô.

Mas se a pornografia produziu novas e úteis tecnologias, ela também foi responsável por disseminar em escala global efeitos que cristalizaram preconceitos e formatos hegemônicos de práticas sexuais que se enraizaram em nossas subjetividades eróticas. Olhando especialmente para a pornografia gay, por exemplo, produtoras de filmes pornográficos reafirmaram e cristalizaram preconceitos a partir de seus filmes, com atores sempre brancos, magros (ou “sarados”), cisgênero, representando uma virilidade, além das práticas que resumiam o sexo a genitais e penetrações (constantes e mecânicas).

Com a expansão da internet banda larga, a partir do ano 2000, a produção de vídeos pornográficos e eróticos começa a se tornar mais democrática e assim qualquer pessoa com uma câmera e um PC conseguia gravar um vídeo e espalhar na rede infinita da internet. É neste período que práticas sexuais não-hegemônicas (que já existiam há décadas, mas que possuíam restrições geográficas) começam a alcançar novos públicos, em diversos locais do planeta, assim como novos adeptos, como é o caso de algumas vertentes da subcultura kink[3], como leather[4], BDSM[5] e fisting[6].

Comunidades como a leather e a BDSM já eram conhecidas desde a década de 70, principalmente nos EUA. Geralmente relacionadas a espaços e redes de homens cis7 gays, um dos fatores para que estas práticas ganhassem novos adeptos (considerado por muitos como uma filosofia de vida, que extrapola a prática sexual), como mostra o autor João Bôsco Góis, foi o aumento populacional em grandes centros urbanos. Assim, pessoas que buscavam vivenciar estas práticas “incomuns” e/ou “proibidas”, encontravam nas grandes cidades, espaços e parceiros(as) para isso.

Com o aumento de adeptos e de divulgação, estas práticas logo ganharam os holofotes da mídia e, consequentemente, de discursos conservadores, não apenas religiosos, mas também discursos “médicos” patologizantes e da própria comunidade gay (que via nas práticas de fetiche, representações que atrapalhariam o reconhecimento e a legitimidade do resto da sociedade em relação aos movimentos por direitos civis).

E durante a epidemia do HIV/AIDS, na década de 80 e início de década de 90, algumas destas práticas kink, foram absorvidas por muitos homens cis gays como forma de se proteger do vírus que se alastrava pelo planeta. Obter prazer sem contato com fluídos ou penetração era a única saída para se proteger da doença mortal, que jornais, rádios e TV (universidades, médicos e igrejas também) chamavam de “câncer gay”. Somente mais tarde os preservativos penianos (externos) se tornariam parte das políticas públicas de prevenção. O sexo com acessórios e a obtenção de prazer através de práticas que não necessitassem de sexo anal, por exemplo, perdia pouco a pouco o caráter “exótico” e assim se tornava mais uma possibilidade no gigantesco leque de opções da sexualidade.

E perceba que não foram psicólogos, médicos, epidemiologistas que sugeriram estas alternativas como estratégia de prevenção. Pelo contrário. Paralelamente, a psicanálise, a psicologia e a medicina reforçavam que relações que envolviam adereços e vestimentas, ou dor (consensual), possuíam algum distúrbio psicológico ou um desenvolvimento patológico da/na infância.

Estas epistemologias negativas não respondiam e desconsideravam às realidades e formas de saberes destas pessoas. Ainda hoje, são raros os profissionais de saúde ou locais que é possível dialogar sobre como realizar alguns tipos de práticas de fetiches de forma segura e saudável. Geralmente, é um tema “polêmico”, ou um tema desassociado a saúde e associado a moralidade. Já é possível encontrar profissionais (geralmente médicos) que tentam falar de forma menos moralista ou mais orientadora em relação a alguns fetiches, mas são poucos, geralmente falam para um público específico (gay) e, alguns, ainda estão reproduzem o “pode/não pode”, “normal/anormal”, em relação à algumas práticas.

O aumento do consumo de acessórios, como trajes de couro, consolos, fantasias e instrumentos, também criou uma demanda de mercado. Surgiam cada vez mais lojas especializadas em atender esse público (e, lógico, lucrar em cima dele), mas também o próprio mercado de filmes pornográficos passou a tentar alcançar essa fatia de mercado. Práticas como fisting e sessões de SM saíram dos porões de clubes e bares underground e se tornaram categorias possíveis e disponíveis na prateleira de consumo. A partir desta disseminação pela pornografia que muitos no Brasil conheceram as práticas kink e de BDSM.

Dando um salto para 2020, percebemos que o interesse por práticas sexuais não-hegemônicas volta a ser interesse de parte das pessoas, tanto pela impossibilidade de manter relações sexuais com parceiros presencialmente, o que torna a busca por acessórios e adereços (através de compras virtuais e entregas à jato) tentadoras, mas também devido ao maior tempo em contato com a pornografia. Não apenas a pornografia “profissional”, mas também a amadora e “live”. Novamente, estas práticas se tornam possibilidades de prevenção, não mais somente para IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis), mas também para o novo coronavírus.

Ou seja, se alguém que se interessasse por dildos, chicotes, consolos, vibradores (self)fisting e/ou cenas antes era considerado pervertido (termo inclusive que já serviu para denominar aqueles que não se encaixavam nas normativas cisgênera e/ou heterossexual), agora podem ser considerados aqueles que estão, de alguma forma mantendo uma prática mais segura, se comparado aqueles que não estão respeitando a quarentena para transar com algum(a) parceiro(a).

Muitos também trabalham com um discurso sobre estas práticas que fogem do convencional, argumentando que “não seria um sexo verdadeiro”, “se não teve penetração não foi sexo” (gouines [7]sabem do que estou falando) ou de que “se não são duas pessoas não é sexo”. Aqui talvez pudéssemos pensar a partir dos pensamentos de Donna Haraway, que questiona se o corpo termina na pele. Será que um sexo através da webcam não é sexo? Se nossos acessórios e instrumentos, possuem o poder de nos excitar, alterar a química de nosso cérebro e produzir prazer, não seriam eles extensões então de nossos corpos? Isso que nem entraremos no mérito de debater aqui sobre como alguns destes fetiches subvertem a generificação – afinal, graças aos sexshops, uma mulher cis pode ter um pau, um homem hétero pode ter uma fantasia bem “feminina”, etc – e a ideia de reprodução que muitos ainda acreditam que o sexo carrega, (hackear o gênero, como diria Paul Preciado).

Estas inquietações não podem perder de vista que o fetiche (e todos os termos advindos dele) é uma categoria criada por um discurso biomédico, para nomear práticas que fogem da norma, consequentemente contribuem para manutenção da normatividade do sexo e da sexualidade. E não podemos esquecer que muitas das práticas e das comunidades também realimentam preconceitos e relações de poder, como utilizando os termos “escravo” e “senhor” (produtos de uma sociedade escravocrata) e de violência de gênero, geralmente associando o “feminino” como passível de submissão.

Mas se algumas destas práticas podem funcionar como estratégias de preservação e de prevenção, não deveriam ser interesse da saúde pública?

Referências

HARAWAY, Donna (2009). «Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX». Tadeu, Tomaz (eds.), Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.

PRECIADO, Paul B. (2018). «Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica». São Paulo: n-1 edições.

GÓIS, João Bôsco Hora (2000). «Olhos e ouvidos públicos para atos (quase) privados: a formação de uma percepção pública da homossexualidade como doença». Physis: Revista de Saúde Coletiva, 10(2), 75-99.


[1] Comércio online.

[2] Cruising bar são bares com estruturas que permitem sexo entre seus frequentadores, na esmagadora maioria homens cis gays.

[3] Kink foi o termo criado para denominar práticas, conceitos ou fantasias sexuais não convencionais, desviantes ou peculiares. Práticas eróticas ou sexuais que desviam do que foi estabelecido como norma pela sociedade.

[4] Leather é o termo gringo para “couro”, que identifica a comunidade de pessoas que utilizam adereços e vestimentas de couro, não necessariamente para fins sexuais ou de BDSM.

[5] Abreviação para Bondage, Dominação, Sado e Masoquismo.

[6] Termo em inglês para a penetração vaginal ou anal com o punho.

[7] Pessoas que não se interessam ou não priorizam relações sexuais com penetração.

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