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NEIL GAIMAN: A ONIPRESENÇA DO MITO

Meu ponto de vista a respeito do conhecimento mítico é regado de cinismo, algo que os quarenta e tantos anos me trouxe. Provavelmente porque eu me interesso muito por assuntos ligados à religião e ao sagrado, embora não tenha formação acadêmica específica para entender disso. A curiosidade me aproximou de dois campos distintos: a Ciência da Religião (sou um mero leitor do assunto) e da literatura (sou um consumidor ávido de tudo o que seja fantástico, místico, sobrenatural e religioso).

Gaiman

Naturalmente, eu encontrei Neil Gaiman e seu trabalho de ficção com mitologia. Quando eu alcancei Gaiman, no entanto, eu já estava maduro, com muitas leituras, já entendia o que eu entendo hoje sobre mito, religião e outros assuntos correlatos. Uma das coisas que eu sempre gostei fazer é coser e descoser as figuras míticas e seus arquétipos e tipos distribuídos na nossa cultura cotidiana. Normalmente, seguimos padrões culturais conscientes ou não, fazendo referências ao religioso, ao sagrado e até mesmo a crenças que não temos como válidas.

Notei isso, outro dia. Sentado numa sala de espera, ouvi alguém comentar que fulano sofria de um grande “Complexo de Édipo”. Nada na conversa me fazia crer que aquela pessoa entendia do mito de Édipo, Laio e Jocasta. No entanto, a psicanálise freudiana “banalizou” o banalizado de uma maneira interessante, dando um verniz de cientificidade, racionalidade a nomes, personagens de um mito que há milênios não é mais compreendido como um saber religioso válido.

Talvez por isso eu goste tanto de Gaiman. Sua obra não tem pena de nenhuma mitologia especificamente. Todos os deuses e seres míticos encontram nas suas páginas espaço para serem humanizados, diminuídos, relativizados de uma maneira praticamente idêntica à literatura sagrada real. Ou seja, a qualidade literária da sua narrativa é tão boa, sua pesquisa é tão bem feita e consistente, que a literatura sagrada se torna banal, perto do que ele escreve.

Século XX

Filho do século passado, Gaiman só pode escrever o que ele escreveu por causa de uma era específica. O capitalismo das sociedades europeias e suas ex-colônias criaram um circuito cultural que começou com o século XVI. Eu me atentei para isso, muito cedo, estudando literatura. Aqui, no Brasil, desde o descobrimento que há a presença da língua portuguesa escrita e falada. Menos de cento e cinquenta anos depois do descobrimento já temos Gregório de Matos escrevendo poesia à moda europeia na Bahia. E isso não parou por aí. Quando trazem o poema lírico e satírico para a colônia, os ibéricos criam um linha de transmissão cultural que não mais se interrompeu. No século XX, todo o esforço de exploração das Américas, Ásia, África e Oceania mostrou a sua cara. Havia um mundo dependendo da normalidade europeia, mesmo quando se revoltava contra isso.

É esse universo de concordâncias, discordâncias e questionamentos que permite, quer queiramos ou não, a circulação de cultura por um mundo aparentemente globalizado. Na verdade, a globalização não é nada mais que o que restou de um mundo pós-colonial, cujas relações de dominação deixaram de existir como um pacto de posse, mas ainda acontecem como relações econômicas de trocas materiais e principalmente, de trocas simbólicas.

Ou seja, Gaiman só chegou até mim porque eu vivo num país que, no século XVI, era colônia de um outro país europeu. E ser ex-colônia de Portugal significa que valores europeus, cultura de europeus vai entrar a todo momento na minha casa. E assim também, permitiu que eu nascesse num “lar cristão”, fosse batizado como católico romano. Na verdade, até mesmo a “liberdade religiosa”  que me permitiu sair do catolicismo é europeia. Essa liberdade me permitiu passar para a fé protestante e dela transitar para a Umbanda, outras formas de misticismo e, por fim, declarar-me ateu e agnóstico. Ela é europeia, mesmo estando aqui, abrasileirada. Porque a identidade brasileira é, inegavelmente, descendente, em parte, de colonizadores europeus.

Violência

A colonização foi uma relação entre povos e culturas mediada pela violência. A globalização também. Tudo, em qualquer cultura, é mediado basalmente por relações de poder e dominação em que a violência tem um importante papel a desempenhar. No entanto, nas culturas europeias, a violência passa a ser uma importante exceção, depois do século XIX. Embora as mais encarniçadas guerras que já conhecemos tenham vindo depois do século XIX, pela primeira vez elas podem ser justificadas como um abuso do poder sobre a vida. Pela primeira vez, a geopolítica aparece como uma forma de justificar o injustificável. Uma nação destrói outra, o genocídio acontece quando o direito humano inalienável de existir passa a ser ameaçado. Cada guerra envolvendo nações europeias ou suas descendentes tem uma justificativa legal, depois disso.

Gaiman e o mítico: uma abordagem do fantástico

Gaiman existe e é um mestre porque sua obra faz sentido nesse contexto complexo em que os deuses morrem a todo momento, atolados em justificativas geopolíticas, ao mesmo tempo em que o pensamento religioso envolve tudo com sua calda de incoerências. Isso acontece nesse recorte geopolítico. E no mundo que se define por seu oposto, como na Ásia, África ou na periferia latino-americana. Gaiman nos explica melhor que a Bíblia. Isso faz com que suas obras, como “Sandman”, “Belas Maldições” ou “Deuses Americanos” sejam tão reais e nos salvem melhor que a Bíblia.

Porque a Bíblia é só uma dobra do seu universo.

Gaiman é um Homero moderno, um Machado de Assis adentrando o século XXI, um Shakespeare falando do fantástico, somente. Gaiman é um Joyce, uma Lispector, caso um dia eles resolvessem escrever histórias mais divertidas. E Gaiman só faz sentido em conjunto com todos os imortais que o precedem, reais ou imaginários.

Desistam de deus, de seus deuses, santos e anjos. Abracem o misticismo, o imaginário da literatura e creiam sem o compromisso de cultuar.

Funciona.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Imagem da capa: Alegoria mitológica para Os Quatro Ventos: Bóreas (em latim, Aquilon) o Vento Norte; Zéfiro (em latim, Favonius) o Vento Oeste; Euro (em latim Vulturnus) o Vento Leste e Noto (em latim, Auster) o Vento Sul. Todos comandados pelo deus Æolos. Imagem de Gordon Johnson por Pixabay

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