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Moralismo em pó

Imagem: Recorte da obra ECCE OMO, de Honoré Daumier (1850). O foco do autor é mostrar o moralismo e as expressões cruéis e acusatórias das pessoas, ante a figura diminuta e imprecisa de Cristo. #pracegover

Apesar de vivermos numa época de relativa liberdade, ainda é uma época que preserva profundos moralismos. E moralismo é uma palavra que a gente acha que sabe o significado, parece ser um apreço por comportamentos entendidos como justos, certos, aceitáveis. Moralista parece aquela pessoa chata, certinha, que sempre julga os outros como errados. Na prática, pode até ser isso mesmo. Mas, de fato, o moralismo é uma tendência social conservadora. Mesmo quando aparentemente não vivemos num meio conservador.

Essa é a grande questão desse texto. Vivemos num mundo conservador? Como que o Brasil, país do Carnaval, do samba, da alegria, pode ser considerado conservador? De fato, não faz muito sentido, se olharmos a nossa cultura como um todo. O povo brasileiro é conhecido por um comportamento pitoresco, de alegria, incluindo nisso uma certa dose de esperteza, malandragem e uma tendência a escapar das regras de comportamento entendido como moralista. É o que conhecemos como jeitinho brasileiro, que permite burlar regras, cortar filas, entrar sem pagar, pagar atrasado e toda uma série de pequenos favorecimentos. Mas mesmo nós sabemos que o jeitinho brasileiro também inclui corrupção, peculato, vista grossa para erros graves e toda uma série de ilegalidades. É um tipo de comportamento em que crimes e favores estão muito próximos. Isso é uma constatação prática de que não somos moralistas, nem legalistas, ao contrário, seríamos um povo que tem um comportamento líquido, tomando o termo de Bauman de empréstimo.

Então vamos aos fatos. Todo comportamento humano é fluido. E não importa aqui a leitura que podemos fazer da cultura de determinado lugar como mais séria, justa ou austera. Essas impressões são efeitos de discurso. Elas, de fato, distraem as pessoas de outra realidade das práticas que envolvem a verdade e os poderes em curso. Toda sociedade não pode ficar sem regras claras impostas por leis e levadas a termo prático por instituições, que também fiscalizam e impõem regras, interdições, sanções e até penalidades. No entanto, esse poder todo sobre o corpo e a população permite uma larga margem de resistência. A ação da resistência traz a contrapartida do poder e assim, sucessivamente, até que as coisas se tornem, de fato, líquidas. Ou até mais do que isso. Como disse Marx, no Manifesto Comunista: “Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens”. Com isso, Marx define um conceito muito importante de modernidade, em que os valores mudam de acordo com os ventos da burguesia e mercado. Mas por que então um mundo em que tudo evaporou, há mais de cento e cinquenta anos atrás, voltou a ficar líquido, viscoso, até? Porque os valores que entendemos como antiquados, ligados a uma ideia medieval ou antiga de crenças, vida e religião ainda persistem?

Essas respostas são complexas, mas há como respondê-las imediatamente. Os valores antigos da humanidade, especialmente os valores que herdamos da colonização dos europeus não são abandonados em função da gestão do corpo em sociedade. O corpo é uma superfície na qual os poderes sociais funcionam de fato. É uma máquina que precisa ser dominada para que o trabalho aconteça. À consciência que habita esse corpo, ao sujeito que o carrega, ele é dado em consignação. Ninguém possui um corpo sem pagar o preço de estar na sociedade, seja um preço pequeno ou grande, seja utilizá-lo intensamente para o trabalho e o prazer, seja largá-lo a dormir no relento, para que outro corpo seja rico em seu lugar. A contenção do corpo não é prática, uma vez que somos bilhões de corpos no planeta. É mais fácil tentar convencer a humanidade a seguir um roteiro de valores morais válidos, cujo fim é o bem de todos. E esse convencimento vem por várias estratégias. Uma delas é a manutenção de moralidades contraditórias, concorrentes ou mesmo a criação de novas moralidades, moralismos e deixar que as pessoas os sigam, quase que automaticamente.

É muito difícil se aprofundar nisso, então nada melhor que um exemplo prático. A moral judaico-cristã ainda é muito forte no nosso meio. Fomos colonizados por portugueses católicos romanos, e a principal manifestação dessas regras tem a ver com a interdição dos corpos, da sexualidade e da submissão da mulher ao homem. No entanto, é impossível se imaginar que isso seja obedecido à risca hoje, de fato não é. Na prática, as pessoas aparentemente desobedecem à vontade essas supostas regras religiosas, ainda que possamos identificar quem as siga. Mas essa moralidade não desaparece. Ela se torna um moralismo, ou seja, juízo de valor sobre as pessoas, que passam a ser julgadas por um parâmetro de espiritualidade. E isso gera uma ideia perturbadora, quando se percebe que esses valores são muito mais disseminados e aceitos do que se imagina. E que aquela flexibilidade em relação a esses valores que alguém manifesta ao desobedecê-los desaparece quando é para se julgar outra pessoa. De fato, apesar de essa briga parecer ter um fim em si mesma, que se trata de um conflito dentro do universo da fé cristã, certamente é algo que colabora para uma economia do uso do corpo para o trabalho e para o prazer.

Ainda assim, não é suficiente se pensar todas as moralidades e moralismos da nossa cultura apenas sob o ponto de vista judaico-cristão. Há uma moralidade muito profunda que vem das práticas sociais entendidas como certas, justas e verdadeiras. É a moralidade quase espiritual que vem de quem cumpre a lei, julga-se e julga ao outro a partir disso. E a moralidade de quem faz o que é certo, de acordo com o que a medicina prescreve. Mais que a moral laica que é entendida como transversal à organização lógica e justa da nossa sociedade, a moralidade da verdade, da justiça e da saúde avança sobre as liberdades pessoais, a fim de tentar ajustar o corpo à mesma economia de uso para qual a moral religiosa trabalha. A moralidade médica, por exemplo, é um exemplo muito claro da interdição de corpos a partir de noções de saúde e higiene com fins de manutenção da vida. De fato, enquanto moralidade, os valores médicos não precisam provocar nenhum tipo de interdição arbitrária que possa depois ser eticamente condenável. Mas pode-se tornar um moralismo. Como é o caso clássico da interdição de homens gays à doação de sangue. Entendidas como potencialmente contaminados com infecções sexualmente transmissíveis, essas pessoas não tinham o sangue testado antes de encaminhado à doação. De fato, essa negativa criou uma profunda cultura de segregação, que gerava discriminação em bancos de sangue ou pontos de coleta, que impedia que pessoas saudáveis pudessem doar sangue para seus entes queridos necessitados, por exemplo.

Enquanto Marx acha que tudo que era sólido havia se desmanchado no ar, como uma fumaça que some, dispersa, enquanto Bauman vê nisso tudo, uma liquefação dos valores, liberdades, sentimentos, institucionalidades, entre outras coisas. Eu vejo diferente de ambos. Acho que nossos valores morais viraram pó. O pó é sólido, não escorre, mas é tirado do lugar pelo ar, mesmo que jamais desapareça nele, sublimando-se. Nossos valores se misturam. As pessoas têm seus corpos e sua vida comandadas por uma série de valores pulverizados, misturados de maneira definitiva, que jamais se separam, contra os quais é difícil se organizar em resistência.

E na nossa sociedade, brasileira, principalmente, o moralismo chega à frente. Ele é a indignação, a brutalidade, o horror, a reação exagerada, a linchamento, a base de quase toda a violência banal que temos à disposição aos nossos olhos. O moralismo impede a separação entre liberdade individual e deveres civis. O moralismo reinante impede de se entender que valores religiosos são relativos e restritos àqueles que concordam com eles. O moralismo, de fato, os moralismos da cultura brasileira são a característica mais perversa do nosso alegre jeito de ser. É o pior de todos os efeitos colaterais de nossa recente história colonial e aristocrática.

Ecce Homo, 1850, é uma pintura não terminada do pintor, gravurista e caricaturista francês Honoré Daumier, Museu Folkwang, Essen, Akemanha. O caráter inacabado da pintura dá um tom dramático à cena bíblica em que Cristo é acusado pelo povo. O foco do autor é mostrar as expressões cruéis e acusatórias das pessoas, ante a figura diminuta e imprecisa de Cristo.
Ecce Homo, 1850, é uma pintura não terminada do pintor, gravurista e caricaturista francês Honoré Daumier, Museu Folkwang, Essen, Akemanha. O caráter inacabado da pintura dá um tom dramático à cena bíblica em que Cristo é acusado pelo povo. O foco do autor é mostrar as expressões cruéis e acusatórias das pessoas, ante a figura diminuta e imprecisa de Cristo.

Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos

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Uma resposta

  1. Alex, mais uma vez parabéns pela análise crítica do nosso “moralismo”. Como historiador, enxergo “ondas” que se repetem de tempos em tempos nas quais emergem os conceitos internalizados do moralismo, e que vivemos hoje essa “nova onda” com o “surgimento” dos bolsonaristas e suas pregações quase infantis.

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