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Mistério sempre há de pintar por aí

Mistério sempre há de pintar por aí

Completei 56 anos no dia 20 de novembro. Esse foi o último aniversário que passei nessa temporada morando em Portugal (estamos de mudança para a Cidade do México no final de janeiro) e eu havia pensado em reunir alguns amigos em casa para comemorar e começar a despedir-me. Mas o agravamento da situação sanitária em função da chegada da segunda onda da pandemia do Covid-19 fez-me abandonar essa ideia, sobre a qual eu aliás já tinha algumas dúvidas. Fiquei um pouco triste com isso, mas, por outro lado, creio que já estamos vivendo há tempo suficiente nesse contexto pandêmico para continuar insistindo e sofrendo em demasia por todos os impedimentos e possibilidades que ele nos apresenta. Preferi então explorar o campo do que é possível atualmente e acabei comemorando o meu aniversário de forma mais íntima, em casa, com o meu marido e nosso cachorro. Foi bem legal, no final das contas.

De qualquer forma, como costumo sempre fazer, eu aproveitei a data para refletir sobre o ano que passou e tudo o que ele me trouxe.

Creio que, para mim como para todos, 2020 foi um ano de surpresas. Ninguém poderia imaginar, há 12 meses, que estaríamos vivendo a situação que vivemos hoje. Aqui em Portugal, a pandemia chegou no início de março e na segunda quinzena do mês já estávamos confinados e em estado de emergência. Ensaiamos uma volta parcial à normalidade durante o verão europeu, mas desde outubro a situação voltou a se agravar e hoje vivemos um novo estado de emergência, sem data para terminar. O confinamento dessa vez não está sendo tão rígido quanto no primeiro semestre, mas ainda assim enfrentamos diversas restrições, especialmente à noite e durante os fins de semana.

Num nível mais pessoal, eu sabia desde o meu último aniversário que esse ano seria um período de mudanças. O prazo da minha missão aqui em Portugal esgotou-se no primeiro semestre e havia chegado a hora de definir o nosso próximo destino. A previsão é de que teríamos que nos mudar no início do segundo semestre. Se as condições não tivessem mudado tão drasticamente, a essa altura nós já estaríamos no México. A pandemia prolongou nossa estada aqui até janeiro de 2021.

O fato de saber desde março que essa mudança iria acontecer mais cedo ou mais tarde, sem, entretanto, saber exatamente a data em que ela se concretizaria, fez-me ingressar numa espécie de limbo interior. Eu sentia que estava progressivamente me desligando das coisas aqui, mas ao mesmo tempo não tinha, e ainda não tenho, uma perspectiva muito clara do que me espera a seguir. Até certo ponto, esse é um processo normal na minha carreira profissional, já que essas mudanças fazem parte da rotina de um diplomata (e, para mim, essa possibilidade de desenraizamento periódico é inclusive um dos atrativos da profissão). Mas, dessa vez, a dilatação do processo no tempo e seu prolongamento a princípio indefinido fizeram com que tudo fosse vivido com uma dose extra de intensidade e introspecção.

No início de março, o anúncio oficial do primeiro caso de Covid-19 registrado em Portugal não chegou a ser uma grande surpresa. Àquela altura, o vírus já havia se espalhado vários países europeus e sabia-se que sua chegada por aqui era apenas uma questão de tempo. Mas, mesmo assim, quando nos vimos confinados poucos dias depois desse primeiro caso, percebi que muitas pessoas continuavam a reagir com incredulidade e mesmo perplexidade diante do que estava acontecendo.

Naquele momento, dei-me conta do quanto estamos pouco preparados para lidar com a aparição do inesperado em nossas vidas. O mundo não cansa de nos surpreender e, apesar disso, não cansamos de nos surpreender com o fato de sermos surpreendidos. É bem verdade que o inesperado trazido pela pandemia tem um elemento de radicalidade que faz com que certamente seja mais difícil lidar com ele. Mesmo assim, não pude deixar de espantar-me com a necessidade e a urgência com que muitos começaram a formular teorias que dessem, de algum modo, sentido ao que estava acontecendo, tentando encaixar a pandemia numa narrativa maior na qual ela teria alguma função a desempenhar: castigo, aviso, lição, possibilidade de correção de rumos e de redenção. Muitos insistiam que sairíamos melhores disso tudo. Mas a verdade é que o tal “novo normal” que se anunciava se parece cada vez mais com o velho normal, só que de máscara (e olhe lá).

Para mim, se existe uma lição a ser aprendida com essa pandemia, é justamente a inevitabilidade do inesperado. De um jeito ou de outro, o inesperado sempre irrompe em nossas vidas, às vezes de forma negativa, como foi o caso do Covid-19, às vezes de forma positiva. A Daniela Houck, na sua coluna dessa semana, nos fala da serendipidade, que é uma qualidade positiva de inesperado. Mas, como dizem os norte-americanos e os ingleses, “shit happens”. Ou seja, há momentos em que nossa vida vira de pernas para o ar de uma hora para outra. Podemos escolher como lidar com a irrupção do inesperado (no caso da pandemia, por exemplo, sendo responsáveis e fazendo o possível para minimizar seus danos terríveis e dando nossa contribuição para conter a transmissão do vírus, além de nos proteger, é claro), mas não podemos impedir que o inesperado aconteça. Não há culpados nem responsáveis pelo inesperado (embora haja culpados e responsáveis pelo que se faz e o que se deixa de fazer depois que ele se manifesta).

Eu, como todo mundo, acho, já fui surpreendido por rasteiras imprevistas da vida. Já fiz planos que se desfizeram em segundos. Já vi meu mundo desmoronar. E não foi fácil lidar com isso. Curiosamente, recebi a explosão da pandemia com relativa serenidade. Talvez porque desde que ouvi as notícias dos primeiros casos na China e da progressiva propagação do vírus eu já tivesse começado a me preparar internamente para sua inevitável chegada por aqui. Talvez porque eu tenha aprendido alguma coisa com a minha bagagem acumulada de surpresas. Mas o fato é que, quando chegou a hora, recolhi-me em casa e, desde então, tenho procurado viver o limbo de que falei anteriormente de forma tranquila e consciente.

Serenidade não se confunde com indiferença ou resignação. Ou mesmo passividade. Não há como não se sentir profundamente triste com todas as mortes e sequelas deixadas pela doença, nem indignado com a irresponsabilidade criminosa de muitas autoridades públicas em todo o mundo na gestão da crise gerada pela pandemia. Porém creio que é possível sentir-se triste e indignado sem deixar de procurar manter um certo grau de equilíbrio interno que, na minha opinião, começa por aceitar a presença do inesperado em nossas vidas, para o bem e para o mal.  

Naturalmente, isso não significa que não tenhamos o direito de surtar de vez em quando sem nos culparmos por isso. Acho que a serenidade inclui também a sabedoria de reconhecer nossas emoções, medos e inseguranças, e estou seguro de que o direito ao surto faz parte do pacote.

Quando me sentei para escrever essa coluna, eu na verdade pensava em falar de outras coisas, de que talvez falarei em outra ocasião. Mas o tema do inesperado surgiu para mim com tanta força que percebi que tinha que acolhê-lo. E termino seriamente desconfiado que talvez tenha sido realmente esse o grande tema do ano que passou e do ciclo que se encerrou em 20 de novembro. E eu concluo curvando-me alegremente a ele: mistério sempre há de pintar por aí.

Até a próxima!

PS –  Escolhi para ilustrar essa coluna duas músicas que escuto religiosamente todo ano no meu aniversário. E quando digo religiosamente, é quase literal, já que as ouço e canto como quem reza. São elas. “Tempo Rei”, do Gilberto Gil, e “Oração ao Tempo”, na linda gravação ao vivo com Caetano Veloso e seus filhos.

Por Paulo André Lima para sua coluna
Bons momentos e quem sabe algo mais

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