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Minhas considerações, nada imparciais, sobre o filme AmarElo – É tudo pra ontem

AmarElo

Assisti duas vezes ao documentário Amarelo – É tudo pra ontem, e nas duas vezes me senti em estado de poesia ao chegar nos créditos finais. Dirigido por Fred Ouro Preto, roteirizado, narrado e protagonizado por Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido como Emicida. Esta é uma obra que fala por si só; tudo o que o rapper consegue transpor antologicamente em apenas 90 minutos de filme é impressionante. Contudo, antes de continuar, gostaria de frisar que as opiniões que aqui escrevo vem de uma pessoa que acompanha o trabalho desse artista há quase uma década, ou seja, será difícil manter a imparcialidade rs

No documentário, quase manifesto, Emicida faz uso de uma narrativa afetuosa, onde contextualiza as performances no palco, as gravações de estúdio e as experiências que viveu ao longo de seus 35 anos de vida. Vivências que o ajudaram a produzir AmarElo (que dá título ao filme), seu disco mais recente lançado em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo.

Emicida traz lindas ilustrações e animações homenageando a cultura hip hop e sua importância social, em especial o rap que é o segmento que o tornou conhecido no cenário musical do país, e faz tudo isso o lincando ao samba, resgatando registros de grupos como os Oito Batutas e Os Originais do Samba, demonstrando que o rap está intrinsecamente ligado a esse gênero musical que ele chama de “O Brasil que deu certo”.

  A brilhante composição das imagens e registros fazem do filme uma verdadeira aula da história negra do Brasil, que contrasta muito (e ainda bem) com a história ‘oficial’ que aprendemos na escola e nos livros didáticos, como se a vida dos africanos arrancados de seu continente para trabalhar forçadamente nas plantações fosse apenas de dor e sofrimento. Não foi. E Emicida não só sabe disso, como se dedica a enaltecer tudo de belo que foi produzido pelo povo negro nesse país APESAR dos horrores causados por mais de três séculos de escravidão nunca reparada pelo Estado brasileiro.

Figuras como o abolicionista Luís Gama, intelectuais como o teatrólogo Abdias do Nascimento e a professora Lélia Gonzáles estão presentes no longa, além de outras que eu sinceramente desconhecia, como Tebas, o ex-escravo que se tornou o primeiro arquiteto em São Paulo. O meu desconhecimento dessas personalidades e de suas conquistas reafirma uma comprovação que o cantor faz logo no início do filme, o “apagamento de toda contribuição não-branca para o desenvolvimento desse país” e a incapacidade que temos enquanto brasileiros de preservar a nossa memória.

Outro marco na construção da narrativa de AmarElo – É tudo pra ontem é a importância desse show ter acontecido no Theatro Municipal e o peso de ocuparmos espaços que nos foram negados historicamente. Emicida comenta que foi a primeira vez em que sua mãe e tias pisaram naquele local. Sem dúvida, existe uma grande representatividade nisso, entretanto acho importante pontuar que as dificuldades que encontramos (enquanto pessoas negras) em ocupar esses espaços brancos e elitistas são causadas pelo racismo estrutural, e que alguns pretos atingirem esse “topo” é insuficiente para que essa lógica seja rompida.

Ainda assim, reconheço o quão simbólico é o músico, um jovem preto oriundo do Jardim Fontális, na zona norte de São Paulo, transformar a sua apresentação no Theatro Municipal num agradecimento e reconhecimento a quem veio antes dele e abriu os caminhos com muita luta, fazendo dessa, uma vitória coletiva, e quem sabe, devolvendo a autoestima que foi roubada de tantos jovens negros e periféricos com essa conquista.   

Os posicionamentos defendidos pelo Emicida revelam a sua maturidade, não apenas como músico, mas como ativista e ser humano, são falas lúcidas e necessárias em meio à crise que vivemos, ele discorre sobre os impactos da Covid-19 em uma de suas últimas considerações do filme e lembra que a primeira vítima da doença no Brasil foi, justamente, uma empregada doméstica, amarrando a narrativa do quanto os impactos da escravidão são atuais.  

Mas não pensem que o tom de forte crítica desse filme o torna pesado de se assistir, pelo contrário… Em vários momentos o artista celebra um cotidiano tranquilo, o Emicida de hoje, pai de duas meninas, Estela e Teresa, de 9 e 2 anos, é muito diferente daquele MC “sangue no olho” do início de sua carreira. Apesar de ainda tecer críticas contundentes a questões como o racismo e a violência policial em suas aparições públicas, agora ele demonstra um tom de voz baixo, de quem parece ter descoberto que também existe força na suavidade.

Durante todo o filme Emicida demonstra o quanto valoriza a comunhão e seu amor pela troca de experiências e aprendizados, defende que “é no encontro que a nossa existência faz sentido”. Reconhece que sua mãe, a Dona Jacira, é uma inspiração em sua vida, foi ela quem o ensinou os cuidados com a terra, “uma mini faculdade que ele fez”, assim como admite ser sido influenciado pelo músico Wilson das Neves e conta com orgulho ter conseguido trabalhar com o baterista.

Sou suspeita para falar de Emicida, como vocês já devem ter notado, mas não exagero quando digo que Amarelo – É tudo pra ontem é uma obra de arte emocionante em todos os sentidos. Um viva aos artistas brasileiros como Emicida e tantos outros, que lutam para que a nossa arte continue viva, pulsante, apesar dos ataques que vêm enfrentando nos últimos anos. Nesse 2020 pandêmico, a arte foi o que embalsamou as nossas almas feridas e esse filme é reflexo disso. Muito obrigada, Leandro!   

Por Natália Barbosa
para sua coluna Desassossegos.

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