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Meu nome é Lucca

vila gelada

“Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades…”

É a última coisa que me lembro, tenho a impressão de que isso nunca aconteceu, que isso me assombra. Às vezes acho que parece um sinal de que estou vivo. – Parabéns para você. Bem, deixa isso pra lá, preciso prestar atenção na estrada. Serguei disse que a estrada é sinuosa, tem um alto índice de acidentes. Dá pra confiar em um bêbado que mora em um posto de gasolina? Bem, dá sim. Atenção toda voltada para a estrada.

Resolvi colocar uma música para tocar, por acaso caiu aleatoriamente ‘Lucca’ da Suzanne Vega. – Nossa – retruquei achando uma péssima escolha. Tocaram várias músicas e nunca chegava à maldita cidade, só havia floresta de um lado e desfiladeiro no outro lado. Silêncio, só o barulho do vento. Nem um pássaro noturno, nem motor de algum outro carro. Nada. Eu já estava cansado, deveria estar dirigindo umas 3 ou 4 horas seguidas. Tudo tão igual. Tudo tão etéreo, as vezes eu poderia jurar que estava passando pelo mesmo lugar seguidas vezes. – “Cansaço”.

Decidi parar o carro para olhar no GPS, toquei o celular, mas ele desligou. “Merda, porra, era só o que me faltava.” Bradei em um grito contido. Saí do carro, respirei um ar puro, porém percebi que o ar estava supergelado. Entranhei, imaginei que fosse a altitude da montanha.

Baforei as mãos, entrei no carro, reparei se ainda tinha gasolina então decidi ir em frente até amanhecer.

Cansado, dolorido e sem esperança, avistei uma cidade ao longe dentro de um vale. Me animei, afinal de contas eu estava vivo. – Na demora eu já imaginava que eu havia morrido na estrada e que aquilo tudo seria minha transição.

Nevou, foi difícil levar o carro até o centro da cidade. Apesar do frio, algumas pessoas passeavam e se animavam com o clima. Deduzi que estava chegando na cidade em um momento raro. Pessoas me cumprimentavam, mesmo com frio eu decidi abrir a janela do carro para parecer gentil com as pessoas.

– Olá, tudo bem forasteiro, primeira vez em na cidade? – Um simpático homem com roupas belas e bem cuidadas. “- Sim primeira vez, parece que cheguei em um momento ótimo, as pessoas parecem felizes com a nevasca.” – Bem companheiro, me chamo Daigo. Moro aqui perto. Cidade pequena em alguns dias conhecerá todos. – Retruquei – ‘Seria ótimo, mas vim procurar um amigo policial chamado Carlos e logo irei embora. Por acaso você conhece?’

-Carlos… – Percebi que os olhos de Daigo pareciam ter perdido o brilho. Achei estranho e pressionei. – “Conhece o Carlos?” – Daigo, me olhou mais atento e disse com uma forma nada natural. – Claro que conheço Carlos, todos conhecem, mas afinal, como se chama? – “Lucca”, respondi. – Lucca Monteiro? – Daigo perguntou voltando com o semblante simpático em seu rosto.

– Pega a rua até o final, vire à esquerda e uns 400 metros chegará à delegacia. Espero que Carlos esteja lá. Coçando o nariz, Daigo completou. – Ele é um homem muito ocupado.

Cheguei na porta da delegacia, simples, sem maiores detalhes, a não ser por uma pequena praça em frente onde havia cavalinhos presos por molas e outros brinquedos. Lembro-me de quando mamãe levava Carlos e eu para brincar em praças. Sempre havia briga. – Eu era o trouxa que apanhava. Como um estalo voltei a realidade e parei o carro no que parecia ser uma vaga.

A neve parou de cair do céu aproximadamente meio-dia. – “Olá, procuro o policial Carlos Monteiro”. – Entrei na delegacia gritando alto, pois não havia ninguém na recepção. Uma voz me respondeu: – “Paradinho aí, já vou atendê-lo.” – Confesso que fiquei feliz em ouvir essa voz conhecida. Demorou uns cinco minutos e uns centavos que gastei para pegar uma água na máquina que estava sofrendo pelo tempo.

– Não acredito que conseguiu chegar até esse fim de mundo? – Indagou Carlos, tão alto que todos os outros policiais deram risadas.

-“Cheguei meu irmão”. Confesso que minha felicidade era tanta que dei um abraço forte nele.

– “Carlos você envelheceu nada, indaguei (Realmente não havia uma ruga nova no rosto dele.)” – “Você por outro lado está até com cabelos brancos, hein Lucca. Demos risadas e ele me arrastou para uma sala dentro da delegacia onde havia um delicioso aroma de café.

– “Cacete Carlos, que lugar longe, achei que havia morrido e que esse caminho era a minha via crucis.” – ‘Exagerado e frangote como sempre, por isso virou contador’. – Rimos mais uma vez

– Lucca, o que te trouxe aqui? Saudade do seu irmão? – Indagou Carlos com um ar meio suspeito. Respondi: – “também, mas preferi não contar o real motivo.  Vim te ver e sair um pouco da cidade, tirar umas férias.”

Assumo que achei estranho esse corte na conversa e a expressão pesada no rosto de Carlos. Porém deixei acontecer, parecia que queria se livrar de mim. Até que o silêncio foi quebrado por uma pergunta, que até então parecia inocente. – “Lucca, já viu hotel ou alguma estalagem?” – Respondi: -“Acabei de chegar na cidade, não vi nada disso ainda.” Sem jeito continuei: – “Pensei que poderia ficar em sua casa?”

-Sempre sem preparo, Lucca. Carlos se levantou de forma repentina e pediu para segui-lo. Andamos uns minutos em silêncio, foi constrangedor. Pensei comigo “- Quem era aquele homem, parecia fisicamente, mas psicologicamente não parecia Carlos.” – “Conhecendo-o me levaria no colo até sua casa me chamando de contadorzinho de merda.”

Me lembrei da carta. Me assustei.

Quebrando o silêncio: – Lucca, vem cá, esta é uma das pousadas mais bacanas da cidade, o rango aqui é maravilhoso e as camas são macias.” – Fiz uma cara de aprovação – “Jane, é o Carlos, cadê você, mulher? – “Jaaaaane?” vociferou ele. – “Já vai Policial Carlos. Disse a senhora assustada. Depois de alguns segundos ela reparou em mim e me cumprimentou com a voz ofegante ela conseguiu apenas me cumprimentar com um balançar de cabeça e um sorriso.

– Jane, esse é meu irmão.  Lucca é o nome dele. Quero o melhor quarto da pousada, ele deve ficar alguns dias. Eu tentei cortar o assunto – Carlos, vou passar só a noite, amanhã vou voltar. Na verdade, eu preferia passar a noite na sua casa, se fosse possível, queria conversar algo sério com você, irmão?

Jane já estava me entregando a chave de número 11:11. Fiquei atônito pela falta de cortesia de Carlos. Queria ir embora naquele minuto. Aguentei.

-Carlos, podemos conversar amanhã? – Ele disse com um sorriso que sim, era só eu passar na delegacia.

Jane anunciou que o almoço já estava pronto, Carlos se despediu e foi embora. Não respondi. Decidi quebrar o clima pesado. – Jane, estou faminto. Simpática ela me levou até o refeitório. Havia muitas pessoas usando suas belíssimas roupas de frio, eu era um maltrapilho. Não me importei muito. O Chaveiro pesava bastante a ponto de me incomodar: – 11:11, que numeração estranha, deve ser superstição local ou coisa assim.

– Lucca, trouxe uma sopa de batatas, espero que goste. Disse Jane. Antes que ela partisse eu ousei perguntar:  – Meu quarto tem a numeração 11:11, pelo que vi aqui não tem tantos quartos? – Esse é o melhor quarto da pousada, quem entra sai renovado. Sobre o número, meu bisavô que era um senhor ritualista e místico dizia que o número 11 é considerado um número mestre e que era atribuído a aberturas de portais e essas coisas, mas fique tranquilo que são só lendas que contam na cidade para assustar criancinhas. – Seu irmão sempre se hospeda nesse quarto quando precisa. Balancei a cabeça, fiz que entendi, porém não entendi nada. Decidi tomar sopa e dar uma volta pela simpática cidade.

Fui até meu carro que estava perto da delegacia e peguei um casaco, pude ver Carlos de longe preenchendo umas papeladas. Ele não me viu, também não fiz questão que me visse. Passeando pela cidade, pude ver uma escola para crianças, uma igreja Católica com um pequeno cemitério logo ao lado. Havia restaurantes e simpáticas lojas de roupas e calçados. Crianças brincando no que havia sobrado da neve. Enfim, uma perfeita cidade do interior, linda e aconchegante.

Sentei-me em o que parecia ser um ponto de ônibus, com muito pesar tentei tirar do bolso o que me incomodava, o responsável por tudo, o responsável por eu estar aqui. “– Caralho, que maluquice é essa, sou a porcaria de um contador de uma companhia falida, por que comigo, de todas as pessoas no mundo, comigo.” Resolvi deixar no bolso e me levantei decidido a dar mais um pequeno tour pela cidade.

Andei um bocado, reparei que havia uma parte residencial com chalés e casinhas bonitinhas. Reparei também que havia garagens numeradas.  Achei curioso, porém continuei meu trajeto e me deparei com uma cachoeira muito sinuosa. Fiquei um tempo ali observando.

– Carlos seu maldito, que peça é essa que está pregando em mim. Pensei em voz alta.

– Essa cidade vive pregando peças nos outros.” Me virei e aos poucos a pessoa foi tomando forma, era uma moça, devia ter por volta dos seus 30 anos, morena de touca com um colorido engraçado. – Te assustei? Meu nome é Myllena! Moro aqui por perto e sempre venho aqui contemplar essa cachoeira, ela sempre me “refresca” os pensamentos.

Fiquei sem jeito e dei um sorriso amarelo concordando com o que ela havia dito.

– Você é daqui? Qual seu nome? Disse Myllena. – “Que modos os meus, meu nome é Lucca, Lucca Monteiro”. Acenei um aperto de mão. – Nossa, como Carlos Monteiro, o policial? Respondi que sim e expliquei nosso parentesco. –  Nessa cidade todos se conhecem, às vezes parece uma maldição. Me assustei e disse: – Maldição, por que fala assim?

– Às vezes quero paz, quero não precisar falar com ninguém, sabe, privacidade? Respondeu a moça revirando os olhos. – Entendo você. Na minha cidade preciso dividir meu quarto com mais 2 pessoas. Terrível.  Consegui arrancar um sorriso do rosto de Myllena que inesperadamente se despediu e se virou para ir embora. – Ei, podemos voltar juntos?

Ela respondeu que sim. Voltamos, mas não falamos muitas coisas. Ela praticamente me ouvia reclamar dos revezes de morar na cidade grande.

***

Cheguei à pousada, já estava anoitecendo, cumprimentei Jane, subi vários lances de escadas até chegar no quarto 11:11. Era o único do andar. Abri a porta, estava um pouco emperrada, de maneira que não era aberta a muito tempo.

Acendi a luz, tinha bela decoração, tinha banheira, uma cama grande, uma tv e uma janela fechada. Como não havia levado malas nem nada, coloquei a mão no bolso de trás, tirei a carteira e as chaves do carro e pus em uma mesinha próxima. Tentei tirar do bolso da frente outra coisa, mas não consegui. Lembrei-me que Carlos disse que eu havia envelhecido, reparei em meu reflexo num espelho próximo. Coloquei as mãos nos meus cabelos brancos, percebi que eram muitos, minha pele branca estava com algumas marcas de expressão e manchas. Minha boca estava pálida e sem vida.

– Frio. Disse eu, indo até a banheira para ver se tinha água quente. Para minha felicidade havia sim, água quente.

Resolvi me deitar após o banho, mas aquela carta não me saía da cabeça, era a letra dele, o jeitinho dele escrever. – Carlos que porra é essa? Pensei em meu íntimo. Respirei fundo e tomei coragem para rever aquela foto que tanto me assustava. Carlos estava mutilado e sem parte do rosto, como se fosse atacado por algum animal de garras enormes. Chorei. – Mas como você está vivo? Essa carta com sua caligrafia…

Luquinha, as coisas estão mudando, sinto dor, mas permaneço vivo. Não se preocupe que a minha oferenda eu já dei, vou sobreviver. Lana e as crianças também estão no colo de Lehahiah. Não tem como fugir, não tem como…

Hoje faz 3 dias que recebi essa carta.

***

Foto de capa por Felix Mittermeier em Pexels

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