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Mens sana (sempre que possível), corpore sano (às vezes)

Mostra uma balança de banheiro com marcas de pés.
Hoje foi o primeiro dia, depois do início do século que eu voltei a caber numa calça número 40. Foi um dia daqueles que eu saio estressado para comprar roupa, volto com sacolas, irritado com as coisas, os preços, principalmente, mas para saber porque eu estou comemorando isso, eu preciso contar uma historinha.
Eu já pesei 137 kg. Um dia, eu vi esse número numa balança de farmácia, eu me assustei muito e desde então, comecei a me preocupar com o meu peso. Eu entrei dentro do espectro da obesidade em 2002, mesmo tendo sobrepeso por mais de dois anos. Eu pesava 90 kg, era rechonchudo, tinha uma barriguinha redonda, pernas grossas, mas gostava de me exercitar (andar de bicicleta) e caminhar. Nunca fui de jogar bola, a não ser vôlei, mas me afastei das quadras ao terminar o Ensino Médio por dois motivos: o primeiro deles era o fato de que eu era ruim mesmo, pouco talentoso para o esporte. O segundo deles era o fato de que eu não tinha tempo para jogar e estudar, já que estudava à noite. Sempre tive astigmatismo e uma dificuldade extrema de enxergar debaixo de refletores à noite, por causa da frequência luminosa daquelas lâmpadas. Até hoje as coisas são assim. Depois de tomar umas boladas na cara, quebrar óculos caríssimos que eu não podia comprar, eu abandonei o esporte do qual eu gostava tanto, mas que nem fazia tanta questão assim de lutar por. Vôlei, acima de tudo era um esporte de equipe. Equipes nunca foram, jamais serão o meu forte.
Então eu arrumei um emprego bom, daqueles que todo mundo gostaria de ter e fui demitido menos de 90 dias depois, sob a acusação de ser um estúpido. Devo ter sido mesmo. Depois disso, eu caí em um processo depressivo profundo e muito difícil de superar. Eu tinha (tenho, em remissão) bipolaridade. Em alguns meses eu estava internado numa clínica. Dei entrada nela em outubro de 2001, aos 20 anos, pesando 75 kg e em total estado de delírio por causa das crises de mania aguda não tratadas. Um mês depois estava em casa tomando remédios fortes, em seis meses estava bem, retomando a minha vida.
Eu estava com 95 kg. Meu peso então oscilou entre 80 e 95 kg, sempre aumentando. É o carbonato de lítio, o médico dizia. Você aumenta um pouco de peso. Um pouco, talvez até uns 10 kg. O resto eu ganhei me tornando muito desanimado, cansado e sedentário. Principalmente depois de passar num concurso para professor e dedicar cerca de 12 h por dia, de segunda a sexta e boa parte de meus finais de semana às atividades docentes de ensinar, planejar, corrigir atividades entre outras. Abandonei toda e qualquer possibilidade de ser mais feliz do que isso, não namorava, só comia, dormia e reclamava. A saúde mental ia mais ou menos, controlada pelo psicotrópico e pela impossiblidade de ter algo mais estressante do que ter de dar 6,0 para algum aluno passar de ano sem reclamar. Eu passei uns anos meio anestesiado pela minha vida de relativa saúde mental, depois de uma adolescência sofrendo com as dores de não ser normal: gay e bipolar. Eu agora era um adulto totalmente produtivo: acordava com as galinhas, vivia metido dentro de uma escola e vivia mais ou menos ocupado. Sem amigos de fato, convivendo com os parentes de sempre, eu me tornei uma espécie de solteirão que as pessoas sempre questionavam: e as namoradas? Não vai casar? Não tem filhos?
Nunca fui santa. Vivendo numa cidade muito pequena, eu tinha meus contatos sexuais. Eu criei esse termo, contatos sexuais, para definir o que eu tinha. Não eram namorados, nem amigos. Mas pessoas com quem eu tinha contato sexual, seja por uma ou várias vezes. Pessoas com quem eu raramente trocava mais que uma ou outra palavra, mas nos encontrávamos, íamos aos finalmentes e depois voltávamos à vida normal. Eu era um jovem evangélico, cantava na igreja, esperava que deus me apontasse um caminho diferente de outros tantos homens e mulheres que eu via ali dentro: solteiros, sozinhos, chegando aos 40, 50 sem ninguém. Mas eu me divertia como podia. Não gostava da ideia de sair de minha cidade atrás de sexo. E nunca fiz isso. Mas tinha meus contatos e com isso a minha vida ia se equilibrando dentro dessa economia delicada do uso do corpo para o trabalho e para o prazer. De repente, eu me vi com a oportunidade de morar em outro lugar, outra cidade, eu queria estudar e eu acabei concretizando, com esse movimento para fora daqui, uma vida mais ou menos completa: eu conseguira morar sozinho, viver longe da minha família e, finalmente, arrumar um namorado, que depois se tornara meu marido, numa relação que durou quase onze anos.
Mas eu continuava ganhando peso. 95, 96, 97, 98, 99, 100 kg em 2007. 110 em 2012. 137 em 2016, depois de tentar trocar o carbonato de lítio por olanzapina ou associá-los para evitar o retorno de uma depressão e crises de ansiedade por causa de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo, meu novo amigo, então) que eu tive um ano antes. Ou seja, depois de 13 anos sem intercorrências, eu tive um episódio depressivo de bipolaridade. Ele retornaria em 2018. Ao tentar melhorar minha qualidade de vida e sono, eu passei a usar olanzapina e engordei muito. Muito mesmo. 137 kg. Depois que eu parei de usar olanzapina, por conta própria, e continuar com o lítio, eu vi meu peso diminuir para a casa dos 120 kg novamente. Nesse tempo todo, eu jamais havia tomado nenhuma atitude concreta para evitar engordar. Eu era muito sedentário. Embora eu não achasse que comia muito, eu me alimentava mal, priorizando a ingestão de carboidratos e gorduras, em vez de alimentação mais saudável. Embora não tivesse o hábito de beber, eu acompanhava meu marido nas suas saídas e tomava bebidas açucaradas, inclusive o diabetes líquido (refrigerante). Mas não fui diagnosticado com nada disso a tempo, para tentar uma mudança. Ao contrário. Eu passei os anos em que eu estava mais gordo apenas com hipertensão arterial, controlada religiosamente com comprimidos para a pressão e o coração. Ia ao médico com frequência e ouvia os conselhos para perder peso com certa preguiça. E eu odiava ser gordo. Apesar de meu marido dizer que preferia caras gordos, que gostava de meu corpo, eu percebia como ele também preferia outros caras bem mais magros que eu e reclamava de certas coisas em mim ligadas ao excesso de peso. De fato, eu roncava muito alto, não conseguia dormir com qualidade, tinha uma insônia galopante e meu apetite sexual foi diminuindo a zero.
Nossa relação não durou. Não acabou por causa do peso. Ele era mais gordo que eu e tinha, inclusive, feito cirurgia da obesidade anos antes de nos conhecermos. Mas o conheci muito gordo. E ele mesmo confessava que a cirurgia não havia dado o efeito que ele queria por motivos que eu não quero expor aqui, não me sinto bem dizendo coisas que eu descobri dividindo uma vida íntima e profundamente próxima com outra pessoa. Com ele não deu certo. Ponto final. Mas eu sabia de mim. Geri muito mal a minha saúde por décadas. Tornei-me viciado em refrigerantes, sempre os tomava, várias vezes por dia, várias vezes por semana e mantive esse hábito mesmo quando me separei. Comia errado: me empanturrava de carboidratos à noite, vivia com gastrite e refluxo, já fiquei dias sem voz por causa do estômago, já tive outras tantas dificuldades por causa do peso e só reagi quando me descobri diabético, em 2020. Diabético, hipertenso e com 130 kg. Às vezes 127, às vezes 129. Sempre tive estatura mediana. Aquela mediana que todo mundo acha que é baixa, porque é menos de 1,75 m. Fui diagnosticado com diabetes com 127 kg e passei a fazer dieta alimentar para controlar os índices glicêmicos. Isso de de dezembro de 2020 a maio de 2021. Consegui o tão esperado controle. Meus índices de hemoglobina glicolisada mostravam a doença sob controle, a despeito dos valores de açúcar com 3 dígitos, em jejum ou mesmo dos índices alarmantes sob estresse, como quando, no meio da pandemia, eu passei mal ao ser maltratado por uma estudante e sua mãe ao telefone. Eu só precisava que ela fizesse uma prova online. Ela xingou a mim, a toda a escola, depois foi  a vez dos meus superirores de cobrarem e de suporem que eu estava sendo negligente. Eu meio que surtei por um instante e o mal-estar me levou a medir o açúcar em sangue capilar: 287 mg/dl, num dia, mais de 300 em outro. Fui ficando meio paranoico com aquilo. Era o dia-a-dia do diabetes. As flutuações por motivos emocionais.
E eles eram muitos. Eu comecei na terapia uns meses antes, em setembro, antes de me descobrir diabético. A minha ideia era tentar me livrar dos problemas que eu tinha com o estresse e com o meu relacionamento terminado anos antes, que me deixou traumatizado e bloqueado. Então, as coisas foram acontecendo. e por fim, o peso, as minhas inseguranças e a dor que eu sentia por ter o corpo que eu tinha, apareceram na terapia e eu fui obrigado a encarar o problema. Isso somado ao estresse de ser diabético e ter descoberto isso durante a pandemia, durante a terapia, durante um momento de muita perplexidade e estresse. Diabéticos eram, são grupos de risco para uma série de outras doenças infecto-contagiosas ou não. É uma sentença de quase morte a cada momento. Eu estava muito isolado dentro de casa, fiquei mais ainda.
Eu não tinha problemas, de fato, em ser gordo. Isso até ser diabético. Tudo passou a ser culpa da gordura corporal e os médicos passaram a exigir o emagrecimento como forma de tratamento dos problemas do diabetes. Isso tudo porque eu tratei diabetes com remédios de dezembro de 2019 a outubro de 2021. De fato, apenas por dez meses. Nesse curto tempo, eu senti uma pressão enorme sobre mim, a cada consulta, a cada intervenção, a cada artigo que eu lia, a cada conversa com amigos, por poucos que fossem. Todos me recomendavam perder peso. E era horrível imaginar como isso seria possível. A ideia da cirurgia veio depois de uma possiblidade de se tratar o diabetes e a obesidade com semaglutida, um dentre muitos medicamentos modernos que promovem o controle da glicose e diminuem a gordura corporal. Remédios caríssimos, complicados de administrar. Em seis meses de tratamento eu teria gasto tudo o que eu precisaria para dar o primeiro passao em direção à cirurgia bariátrica. Em um ano, eu gastaria o dobro. Em um ano e meio de tratamento eu teria gasto tudo o que eu gastei com o procedimento e ainda continuaria diabético, tomando remédios e com sérias restrições alimentares e de hábitos. Um controle delicado se manter.
Preferi tentar a cirurgia, com a qual consegui um emagrecimento rápido, mais de 35 kg em oito meses, sem contar com os dez que havia perdido tratando o diabetes. Passei a ter mais qualidade de vida e vi problemas simples desaparecerem como mágica, inclusive alguns relacionados à exclusão e à gordofobia. Hoje tenho um corpo marcado pela luta contra a obesidade que, por causa do diabetes, deixou de ser uma opção viável de se gastar meu tempo no planeta. Mas vivo como dá. Esses dias me fitei no espelho. Minha pança, antes grande e redonda, fofinha, como diziam, parece um saco de estopa que foi esvaziado pelo fundo. O mesmo acontece nos meus braços e pernas, cheios de pele sobrando, efeito impossível de se evitar em grandes emagrecimentos. A vida dá as coisas com um preço. Em alguns meses, uns nove ou dez, eu posso me submeter a cirurgias reparadoras ou estéticas, ou a ambas. Tudo vai depender de como entenderão meu corpo, de como vou ser diagnosticado. Eu tenho vontade de ter um corpo sem pele sobrando. Ele é muito mais feio do que o corpo gordo que eu tinha, do qual eu não me envergonhava fácil. Mas, por outro lado, nenhum exame que eu faça aponta qualquer sinal de síndrome metabólica grave que me levou ao risco de morte por problemas vasculares. O médico me disse que o meu maior ganho não foi um corpo magro que os outros possam ver e admirar, ou ainda a bajulação momentânea e falsamente boa daqueles que querem me parabenizar por minha perda de peso. Meu maior ganho foram dias de vida sobre a Terra. Ganhei o envelhecer com saúde, podendo aproveitar melhor o tempo que a aposentadoria me dará. Ganhei a possibilidade de estender por mais anos minha sensação de juventude, virilidade, força para trabalhar (o capitalismo agradece essa parte, e a patrocina) e qualidade na saúde física e mental.
Conheço muitos ex-gordos, pacientes bariátricos, que jamais mexeram nos seus corpos depois do emagrecimento. Alguns por medo das dores de uma cirurgia plástica. Outros porque conheceram experiências malsucedidas, outros ainda porque não se importavam com o corpo o suficiente para quererem mudá-lo. Eu sei exatamente o que seja isso. É uma espécie de complacência à feiura. Uma costume com ela que não muda com o emagrecimento. Eu sinto isso, às vezes. Gostaria de me livrar da minha pele sobrando, mas se não der, ela vai ficando, afinal de contas, esse corpo “novo”, magro, usando uma roupa que eu usei antes dos 20 anos de idade, não me rende mais do que o outro rendia. Na verdade, com a mudança de corpo, os interesses se deslocam, as pessoas mudam conosco, tratam-nos de modo diferente, indiferente, algumas se apressam a dizer que não querem mais nada com a gente se a gente emagrecer. Era o caso de meu ex-marido, e ouvi isso também de outras pessoas, mas eu pensei em mim mesmo. De que adianta eu ficar desejável para certas pessoas e correr determinados riscos? Nenhum médico em que eu fui me liberou para ser gordo, não com meus exames de sangue, não com o que eu tinha para mostrar.
Por fim, deixei de ser sedentário, na prática. Mas odeio fazer exercícios físicos e, pelo menos há três semanas, não consigo manter uma regularidade de praticá-los na hora certa, no momento certo, devido a problemas específicos, entre eles a falta de tempo, a desorganização de meus horários e a complicação de minhas funções e outros projetos devido a obrigações profissionais. Ao dizer que tinha dificuldades de treinar à noite por causa do cansaço e porque exercícios físicos à noite me dão insônia, alguns me recomendaram acordar às 4h para ir à academia… A opinião invasiva das pessoas sobre o corpo da gente é muito intensa. O médico quer nos esfaquear, injetar substâncias, e tudo é culpa nossa porque enfiamos goela adentro comidas que nos fazem mal e não nos movimentamos o suficiente. Depois disso tudo, a gente dá o braço a torcer e faz algumas coisas que eles pedem, dá tudo certo, mas seu corpo em transformação se torna uma superfície da ação das interferências alheias. É difícil tomar esse corpo de volta para si. Hoje eu percebi isso, comprando roupas de tamanho menor. A calça 54 virou 40 ou 42, dependendo da marca. Os chinelos 41 viraram 39. Os sapatos 42 ou 43 viraram 40, as camisetas G3 viraram G, as camisas 8 viraram 4 ou 5. Mas meu corpo ainda é o mesmo, ele só mudou um pouco de tamanho. Na cabeça, as coisas mudaram também, senão eu teria fracassado no meio desse processo.
Enfim, eu me sinto bem, não sei por quanto tempo e nem sei se isso durará a vida inteira. Não pretendo voltar a engordar, mas pretendo não me obcecar com nada a respeito de meu próprio corpo. Pretendo me normalizar num tipo de feiura que me agrada, que me torna livre de maiores preocupações. Tudo o que eu quero é um pouco do meu tempo para mim, em que eu possa ter prazer sem tantos problemas associados. Tudo o que eu quero é chegar em determinada idade e poder usar o meu corpo com algum prazer. Esses dias eu descobri que a lei me permite trabalhar até os 70 anos. Como eu estarei a essa idade? O que sobrará do meu corpo para viver uma vida mais calma e menos estressante?
Emagrecer não era o único caminho para isso. Mas era o único possível dentro de minhas possibilidades como ser humano, sujeito, proletário, pobre, nesse momento. E confesso que tive muitos privilégios, dados por um salário estável de professor de escola pública, ainda que pequeno para todas as necessidades que eu possa ter. Confesso que um plano de saúde pago mensalmente, coisa que a maioria dos pobres não têm, me ajudou muito a tomar decisões, assim como o apoio de todos que de fato me ajudaram, entre eles, amigos do Instituto Pró-Diversidade, aos quais terei sempre gratidão por me apoiarem durante o isolamento social, durante momentos em que eu me senti doente, fraco, sozinho, acuado e em sério risco de vida.
E vida, arriscada sempre, ela segue. Sigamos com ela.
Capa: Imagem de Rebecca Matthews por Pixabay

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

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