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Melancolia em CMYK: Capítulo 1

Passarela Rua das Noivas

É uma sexta-feira qualquer. O despertador toca e eu já sei que está na hora de trabalhar. Coloco o celular no modo soneca. “Mais cinco minutos”, penso. Começo a divagar coisas sem sentindos na minha mente, sinto que dentro de mim só existe um grande vazio. E era isso que minha vida havia se tornado, uma vasta paisagem sem sentimento. “Pelo menos hoje tem Happy Hour depois do trabalho, posso ver meus amigos e esquecer de mim”. Pensamento na minha seguem numa eterna divagação para encontrar algum sentido para qualquer coisa que me faça querer levantar da cama. O celular toca de novo e trabalhar era um ótimo motivo racional para levantar.  

Aquele seria meu último dia na Terra, decido.

Sem muita vontade, levanto e vou tomar meu banho. Fico perdida alguns minutos debaixo do chuveiro sem pensar em nada, apenas sentindo a água quente batendo em minhas costas. A sensação que o banho trazia era até gostosa, mas nada além de um torniquete. Em minha alma sentia apenas uma grande apatia por tudo. “7:25, preciso me apressar.” Sigo, então para a cozinha. Faço um pão amanhecido na chapa enquanto fervo a água. Termino de tomar meu café preto, forte e melado e sigo para pegar minha bolsa. Confiro carteira, celular e notebook e saio de casa, seguindo para o ponto de ônibus mais próximo. Logo já estaria no escritório para começar a cumprir minhas intermináveis tarefas de trabalho.

Aquele seria meu último dia na Terra…

Sou a primeira a chegar na agência e, assim, começo a seguir minha rotina. Minha mente fervilha: “Você não pode esquecer de nada”. “Não demore, vá depressa”. “Se você deixar tudo perfeito não irá levar bronca”. “Não posso esquecer de ver se tem algum e-mail importante”. “Hoje é o último dia para entregar aquele projeto”. Ouço a porta abrir, Marta chegou. “Bom dia”, digo fingindo animação…

Aquele seria meu último dia na Terra, afinal.

Assim se inicia mais uma jornada interminável de trabalho naquela agência de design em uma sala comercial no bairro da Luz. Os funcionários começam a chegar. O sorriso no rosto escondia com facilidade o vazio que eu sentia por dentro. O dia segue tranquilo, sem supresas. Obedeço, cumpro ordens e faço minhas tarefas sem reclamar. No horário de almoço, vou para um restaurante self-service com uma funcionária que havia se tornado uma de minhas melhores amigas. Na volta para o prédio, peço um abraço pra ela. “Eu amo você, Tati”, digo. “eu também te amo, Mila”, ela carinhosamente responde. Para mim era uma despedida, talvez ela nunca tenha entendido.

“Aquele seria meu último dia na Terra”, insistia a minha mente.

O dia se prolonga, tomo algumas xícaras de café entre um trabalho e outro para me manter produtiva. Termina o horário comercial e, com excessão da Marta e do Ricardo, todos vão embora. Eu precisaria ficar mais tempo para terminar aquele projeto que estava em seu deadline e pedi para o Ricardo me ajudar. Ele pretendia emendar um feriadão com seu banco de horas, mas na verdade ele poderia até tirar férias com suas horas. Nesse ponto, já nem estava mais me esforçando tanto para ser simpática. E foi quando comecei a responder à Marta de forma debochada. Não demorou muito para começarmos a discutir. Ricardo me enviou os arquivos que eu havia pedido e saiu “à francesa”. Finalizei o job sob gritos e enviei para o client. Marta já estava em pé em frente à minha mesa quando desliguei o computador. “Que se foda”, gritei. Peguei minha bolsa e saí, deixando Marta berrando para as paredes sobre o quanto eu sou imcompetente. Ainda dava para ouvir os gritos enquanto andava sem rumo pela rua.

Aquele seria meu último dia na Terra!

O plano era bem fácil e o local já estava escolhido. A Passarela da Rua das Noivas. Escolhi pois sempre amei aquela pintura que era cartão de visitas de São Paulo. Já estava pensando nisso há dias. No caminho encontrei o Ricardo. Ele me disse que havia passado para se juntar um pouco com nossos amigos no happy hour da agência, mas estava indo para uma balada na Barra Funda. Me convidou enquanto caminhávamos em sentido ao metrô. “Por que você não abandona a ideia maluca e vai para curtir com ele? Seria pelo menos uma noite agradável”, pensei. “Vou ficar aqui”, disse. Me despedi e entrei numa lanchonete qualquer.

Já estava decido: aquele seria meu último dia na Terra.

Sentei em uma mesa e pedi um X-Salada e refrigerante para o chapeiro, uma “última refeição”. Aproveitei para pegar um maço de cigarros “sabor” melancia enquanto pagava e segui para uma praça ali perto, escolhendo um banco de concreto para sentar. Peguei um cigarro no maço e comecei a fumar. Um homem em situação de rua se aproximou e pediu por um cigarro. Entreguei-lhe um e ele sentou do meu lado enquanto o acendia. Não me importei. Conversamos por alguns minutos. Mais um cigarro para mim e outro para ele. “Gente boa, você, as pessoas geralmente me tratam como alguém invísivel”. Levantei, desejei boa noite e segui para o meu fatídico destino. Doei alguns cigarros pelo caminho. Fumei alguns outros.

Aquele seria meu último dia na Terra?

Segui para a passarela e parei em algum ponto alto. Calculei sua altura. Acendi um cigarro. Fiquei ali por alguns minutos, não sei. Talvez tenha se passado horas entre um cigarro e outro. Tomei coragem. Me virei de costas e sentei no corrimão. Fixei o olhar naquela loira em estilo Pop Art. Fiquei ali parada, me equilibrando e com as mãos agarradas na grade. Um movimento. Um movimento e tudo acaba. Um movimento e o sofrimento acaba. Um simples movimento e nada mais. Não havia ninguém ao redor, ninguém tentou me ajudar, nenhum carro buzinou e eu não estava ali para chamar atenção. A adrenalina percorria meu corpo. No meu ouvido minha mente prometia melhora. Oscilei. Voltei para a terra firme. Fiquei ali mais alguns minutos, talvez horas. Já estava quase amanhecendo quando decidi me sentar em algum banco da praça que ficava ao lado. Fiquei encarando aquele viaduto ainda por algum tempo, mas minha mente lutava por sobrevivência.

Aquele não seria meu último dia na Terra.

Após alguns minutos, decidir ir para casa da minha família. Achei que deveria ser por volta das sete da manhã. Logo, já estava segura dentro de um carro de aplicativo e sem as chaves. Mandei mensagem no grupo de família e meu irmão disse que estava em casa. O motorista errou o caminho por duas vezes, mas me deixou no endereço correto. “Cheguei!”, enviei no aplicativo de texto.

Aquele definitivamente não seria meu último dia na Terra.

Meu irmão ainda era bem novo, tinha por volta dos seus 16 anos. Ele me cumprimentou enquanto abria o portão para mim. Estava vestido de roupa social: calça preta, camisa bege de mangas longas e um sapato social que precisava de um pouco de graxa. Seguimos para cozinha e tomamos café juntos. Perguntei para ele sobre nossos pais e ele disse que haviam viajado para alguma cidade do interior para “servir a Deus”. “Enfim, um pouco de paz”, pensei. Meu irmão se levantou da mesa, pegou seu instrumento musical e seguiu para sua aula de música na igreja que frequentava.

Aquele deveria ter sido meu último dia na Terra.

Segui para o meu quarto. Já fazia alguns anos que havia me mudado de lá, mas meu quarto nunca havia sido desmontado. Acho que minha mãe tinha alguma esperança de eu voltar para casa e abandonar “o mundo”. Chegava a desconfiar que ela orava para que Deus me “provasse” para que, assim, eu perdesse tudo e fosse “buscar a Deus”. Algo não tão nobre para uma pessoa cristã. Peguei meu celular e mandei mensagem para a minha namorada desejando bom dia e explicando que não estava me sentindo bem e que não poderia vê-la naquele dia como havíamos combinado. Me deitei na cama e me cobri. Minha mente ainda estava a mil.

Encerrei, assim, aquele dia que poderia ter sido meu último dia na Terra.

No dia seguinte, nada de novo. O mesmo vazio e o mesmo sorriso amarelo no rosto quando meu irmão aparecia em meu quarto. Peguei o meu notebook e segui para a escrivaninha para adiantar alguns trabalhos. Quem sabe assim não conseguiria algum tempo livre para voltar a sentir o sabor da vida, além dos sabores amargos e insosos que recheavam meus dias.

Aquele foi apenas mais um dia na Terra.

(NOVOS CAPÍTULOS TODA SEMANA)

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