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Liberdade ou solidão?

Foto de um homem pescando focado de um ponto distante. Seria Liberdade ou Solidão?

Não faz muito tempo, circulou um meme nas redes sociais que mostrava a foto de uma pessoa (não estou seguro sobre o gênero) bebendo sozinha num bar ou comendo sozinha num restaurante, e que vinha acompanhada da pergunta: “Liberdade ou solidão?”. Naturalmente, o meme suscitou todo um debate (na medida em que podemos chamar o que acontece nas redes sociais de “debate”). Eu, naquele momento, não dei atenção ao assunto, pois costumo ter muita preguiça de me envolver nas tretas do dia. Para mim, é como se meter numa briga de bar, a gente sempre corre o risco de acabar tomando uma garrafada na cabeça. Na maioria das vezes, prefiro fazer a linha Glória Pires e me abster de opinar. Mas essa semana eu estava comentando o tweet de um crush e a expressão “liberdade ou solidão?” veio-me à cabeça. Foi então que decidi que seria esse o tema desta coluna.

Há um episódio de “Sex and the City” que trata justamente desse assunto. Ele começa com a Carrie Bradshaw constrangida de sentar-se sozinha num restaurante, com medo de ser vista como uma solteirona solitária e encalhada, e em seguida acompanha suas reflexões e experiências em torno do assunto, até que no final do episódio ela entra sozinha num restaurante, numa afirmação de liberdade e independência.

Duas décadas depois, as coisas parecem não ter mudado tanto, pelo menos no que diz respeito às expectativas sociais que pesam sobre as pessoas que se expõem num momento público de solidão. Talvez exista uma resposta “certa” para a pergunta “Liberdade ou solidão?” formulada em relação a alguém que está sozinho num bar ou restaurante. Ela seria: “não é da sua conta.” Entretanto, sejamos compreensivos com aqueles que, como todos nós, padecem de uma irresistível curiosidade sobre a vida alheia. Muito embora caiba ressaltar que é possível ser curioso sobre o que acontece com os outros sem necessariamente formular suposições e julgamentos sobre suas ações e atitudes. Mas enfim, sigamos.

O próprio fato de uma pessoa sozinha num bar ou num restaurante despertar em alguns outros a indagação sobre se aquela solidão é voluntária ou imposta já indica um possível incômodo com a possibilidade de que estar sozinho possa efetivamente ser uma experiência positiva. No fundo, mesmo que a pessoa diga que gosta de estar sozinha, permanece uma desconfiança de que talvez ela esteja apenas tentando enganar a si mesma, pois afinal ninguém fica sozinho por opção.

Não há dúvida de que os laços afetivos e sociais são essenciais para o bem-estar e a saúde de todos. Existe já um considerável número de estudos que demonstram o papel destes laços na longevidade e na qualidade de vida das pessoas. E, em alguns países, a solidão e o isolamento social são considerados um problema de saúde pública de proporções epidêmicas e um dos grandes desafios enfrentados pelas sociedades contemporâneas.

Entretanto, não é exatamente a esse tipo de solidão que aqueles que se compadecem da pobre pessoa sozinha num bar ou restaurante se referem normalmente quando a contrapõem à “liberdade”. O que está em jogo na maioria das vezes é a ideia de que a pessoa está sozinha porque não tem um relacionamento amoroso, namorado ou marido, um parceiro que lhe faça companhia num drink ou numa refeição. O mesmo constrangimento que a minha querida Carrie enfrentava naquele episódio de “Sex and the City”. E, curiosamente, a alternativa para essa solidão seria a afirmação da liberdade desafiadora de escolher não ter esse relacionamento, como se não fosse possível ser livre dentro dele. De qualquer forma, no âmago da pergunta “Liberdade ou solidão?”, encontramos a premissa de que a vida de um indivíduo gira em torno de ter ou não um relacionamento. Desnecessário dizer, monogâmico e duradouro.

E, creio eu, é aí que começa o problema. Como disse acima, a importância dos laços afetivos é inquestionável. Mas não percebo a necessidade de vincular esses laços de forma irrevogável ao amor romântico e à realização sexual. Sinceramente, acho que dizer que o “casamento” é essencial para a felicidade de uma pessoa equivale a dizer que uma mulher só se realiza plenamente na maternidade. O fato da maternidade ser uma possibilidade na vida de uma mulher não significa que seja uma obrigação. Do mesmo modo, o casamento constitui apenas uma possibilidade entre muitas no campo das relações afetivas e sexuais. Uma possibilidade tão legítima quanto as outras, mas certamente não a única, e não necessariamente a melhor. Depende de cada um. Funcionará para alguns, não para outros. Mas seguir outro caminho não demonstra nem incapacidade nem falta de maturidade, como parecem sugerir muitos juízos de valor a respeito daqueles que preferem não se casar ou sequer buscar um parceiro exclusivo de longo prazo. Não nos esqueçamos que, até recentemente (e ainda hoje há quem pense assim), a homossexualidade era vista como decorrente de uma falha no desenvolvimento sexual dos indivíduos, que poderia ser sanada e curada com a terapia adequada (há críticas bastante virulentas à teoria psicanalítica nesse sentido, por exemplo).

Por outro lado, estar só, momentaneamente ou mesmo de forma mais frequente, não reflete obrigatoriamente uma personalidade egoísta, nem é sinal de tristeza, melancolia ou abandono. O único relacionamento que nunca deixaremos de ter até que a morte ou a demência nos separem é aquele que mantemos com nós mesmos. Estamos condenados a passar nossa vida convivendo conosco. Assim, aprender a desfrutar da nossa própria companhia parece-me uma iniciativa sábia e necessária, não somente porque estaremos sempre juntos, mas porque uma boa relação conosco pode nos preparar e nos ajudar a estabelecer laços afetivos mais intensos com os outros. Eu me arriscaria mesmo a dizer que até a masturbação, além de ser uma fonte de prazer em si, muitas vezes nos habilita a ser melhores parceiros sexuais. Explorar o mundo a sós, conhecer melhor nossos sentimentos, nossas ideias e nosso corpo, perceber o que nos dá prazer, o que nos alegra, o que nos emociona, tudo isso me parece importante para que possamos dar e receber afeto de maneira mais completa e intensa. Ficar sozinho pode ser assim mais do que um exercício de liberdade. É uma possibilidade de felicidade autêntica.

Há muitas formas, não excludentes, de estabelecermos laços afetivos (que podem ou não estar vinculados ao sexo) com os outros: amizades, crushes, namorados, maridos, além do nosso mundinho particular. Meu sonho de velhice, por exemplo, é viver numa casa como a daquele filme “E se vivêssemos todos juntos”, com amigos da vida toda, e alguns novos também. Uma república de afetos e cuidados mútuos. Suspeito, algumas vezes, que a amargura de alguns gays mais velhos nasce de uma frustração de não ter cumprido na vida um roteiro que não foi escrito para eles e para o qual talvez eles não tenham uma verdadeira vocação (sem deixar de reconhecer que os velhos em geral, e os gays em particular, enfrentam problemas concretos que exigem cuidado e atenção). Não precisamos ficar presos a expectativas que, não devemos esquecer, foram estabelecidas no quadro de uma sociedade que historicamente reservou aos gays um lugar marginal. Quem sabe não possamos inclusive mostrar a essa sociedade que existem outras possibilidades de felicidade de que eles podem se beneficiar também, ao invés de simplesmente introjetar acriticamente os seus modelos?

Enquanto isso não acontece, podemos pelo menos, da próxima vez que virmos uma pessoa sozinha num bar ou num restaurante, abster-nos de julgá-la com as lentes restritivas da pergunta “Liberdade ou solidão?” e ver nela apenas o que se apresenta diante de nós: uma pessoa inteira.

Até a próxima!

PS1 – Tinha acabado de escrever a coluna quando esbarrei com esse texto que de certo modo dialoga com algumas das ideias que eu discuto e proponho. Recomendo muito a leitura: clique aqui

PS2 – Num texto que aborda a solidão, o acompanhamento musical não poderia deixar de lado o clássico “Eleanor Rigby”, dos Beatles. “Solidão, que nada”, com o Cazuza, é um bom contraponto para o tema. E não resisti ao desejo de incluir um bônus de liberdade, a maravilhosa “Freedom 90”, do George Michael.

Para ver mais textos de Paulo André Lima, confira sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais

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7 respostas

  1. “No fundo, mesmo que a pessoa diga que gosta de estar sozinha, permanece uma desconfiança de que talvez ela esteja apenas tentando enganar a si mesma, pois afinal ninguém fica sozinho por opção.”
    Sobre esse comentário, eu discordo de vc. Optei por estar sozinha, após dois casamentos. Hj, sinto-me bem com a minha companhia. Vou à um bar ou restaurante, sozinha. Bebo sozinha! Se eu quisesse companhia, seria fácil, era só chamar um amigo(a) pra me acompanhar. Tenho certeza que um deles viria. No entanto, prefiro ficar comigo mesma. Adoro a minha companhia.

  2. Talvez por ser de família numerosa, atualmente, viver comigo, dá uma sensação de liberdade! Conviver é o maior desafio humano! Sobre os casais heteros já li uma esposa como se incomodar com a ereção do marido quando juntos “noutros” cômodos do apartamento!. Dei como feedback será que ele teria que se programar só ficar excitado no quarto? (tinha espaço para comentários, como nesse site)! Numa relação fluída, outrora, com um colega amigo ele saindo do momento a dois disse que estava com o conjugal pronto, naquele dia! Depois pensei chegamos a esse nível de satisfazer até maridos nesse quesito: não que desconheça a Bissexualidade, mas entra naquela de ser independente e solteiro, mas estar disponível a marido “carente” , quem sabe… 🙂

  3. Optei por uma vida sem companheiro, mesmo que não seja exatamente solitária, e às vezes me pergunto a respeito de coisas como essas do seu texto. Estou sozinho ou livre? Ainda me sinto mais livre que sozinho, mesmo sabendo que isso pode mudar, com o tempo.

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