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L@crou? C@ncelou!

lacrar e cancelar

Jorge Miklos
Flávia Gabriela

Na segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022, o youtuber Bruno Aiub, conhecido como Monark, ao receber os deputados federais Kim Kataguiri (Podemos) e Tabata Amaral (PSB) no “Flow Podcast”, um dos programas de entrevistas mais vistos do Brasil com mais de 3,6 milhões de inscritos no YouTube, e transmissões ao vivo também pela Twitch e Facebook, defendeu a existência de um partido nazista no Brasil. Entre os comentários, ele disse “acho que tinha que ter o partido nazista reconhecido pela lei”, “dentro da [liberdade de] expressão a gente quer liberar tudo”.

Após defender a existência de um partido nazista, Monark foi desligado do Flow Podcast que em uma nota pública repudiou a fala do youtuber e retirou o episódio do ar. As falas do influencer favoráveis à possibilidade da criação de um partido nazista no Brasil, em nome da liberdade de expressão, repercutiram negativamente e foi o tema de discussões e debates nas redes sociais durante a semana. No centro do debate está a pergunta: pode-se defender ideologias como o nazismo usando como premissa o argumento da liberdade de expressão?

Na borda do debate acerca da liberdade de expressão, gostaríamos de propor uma reflexão usando a metodologia a hermenêutica de profundidade proposta pelo sociólogo britânico John Thompson. Trata-se de um instrumento para análise do contexto de formação e interpretação de formas simbólicas. Utilizado pelas áreas da Sociologia e da Comunicação, esse referencial propõe uma interpretação do fenômeno em diferentes contextos. Ao pensar o termo hermenêutica, Thompson o compreende como elemento para significar o processo de compreensão e interpretação, ou seja, trata-se de um sistema de interpretação utilizado para acionar o significado de mitos e símbolos. A hermenêutica de profundidade permite atingir o significado das formas simbólicas para além da preocupação com as funções da linguagem, olhando também e sobretudo para os contextos sociais no quais essas formas estão inseridas.

Nessa linha, gostaríamos de propor uma reflexão para pensar o contexto, ou seja, a moldura socio comunicacional na qual se deram os acontecimentos que envolveram a repercussão da fala do influencer.

O advento e o alastramento da comunicação digital inauguraram um novo espaço de interação humana: as redes sociais digitais. As redes sociais constituem um novo espaço de sociabilidade e de interação social. Nas redes sociais, vendemos, compramos, conseguimos trabalho, transporte, comida relacionamentos amorosos, informação. Nas redes fazemos política, defendemos causas ambientais, identitárias. As redes constituem o lugar antropológico onde os vínculos econômicos, sociais, políticos e culturais acontecem. Hoje, tudo se passa nas redes sociais. A rede social é o “urbi et orbi” da sociabilidade contemporânea.

Outras mudanças acompanharam esse deslocamento para o território virtual das redes sociais. Como apontou o sociólogo Zygmunt Bauman em seu livro Vida para Consumo, na sociedade capitalista contemporânea, o consumismo tem se mostrado uma característica fundamental e um valor cultural onipresente.

Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro se transformar em mercadoria e ninguém pode assegurar sua subjetividade sem reativar, ressuscitar e recarregar, de maneira infinita, as habilidades esperadas e devidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito” e a maior parte do que essa subjetividade lhe possibilita alcançar concentra-se num esforço interminável para que ela mesma se torne, e permaneça, um a mercadoria vendável.

Para ingressar de maneira competitiva no mercado, é preciso sair da invisibilidade, destacar-se da massa. Não causa estranhamento, portanto, que o sonho alimentado por muitos é o de conquistar fama a todo custo, como se esse fosse o verdadeiro sentido da vida e a única chance de atingir a felicidade.

Ser famoso significa, simplesmente, aparecer em milhares de revistas, milhões de telas, ser notado e comentado. Isso é crucial para, finalmente, ser desejado, cobiçado, como pretendem todas as mercadorias. Como escreveu Bauman: “numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fada. Em um tempo altamente estetizado, ser invisível é equivalente à morte.

É nesse contexto social que emergem os influencers e o youtuber Bruno Aiub é um exemplo entre milhares. Nesse sentido, parece-nos evidente que Monark, assim como todos os seus pares, se vale do poder rizomático e da capilaridade das redes sociais digitais para produzir o seu marketing pessoal.

Monark usa as redes sociais como um espaço de marketing pessoal se transformando em mercadoria, visando ganhar engajamento (ser consumível) uma vez que, o grande número de usuários nas redes possibilita alcançar uma grande parcela da população potencialmente interessada em seus serviços ou produtos de maneira veloz.

Ora, se o que importa é “se vender” como um produto, atingir engajamento, as estratégias não dependem de um repertório intelectual vasto e contínuo. Ao contrário, o engajamento requer um discurso marcado por uma pobreza semântica e uma fortuna emocional. Nas redes sociais qualquer um é especialista em vacina ou em geopolítica desde que nunca tenha lido nada a respeito. O importante é “lacrar”. No Brasil “lacrar” serve de sinônimo para “arrasar”, “mandar bem” ou “ter sucesso”. E para isso, se faz necessário muito apelo emocional, frases de efeito, gerar polêmicas, dizer coisas que “esquentem a temperatura”. Assim, quanto a maior a temperatura maior o enxame de seguidores.

Mas, se por um lado, a lacração é a estratégia para quem quer estar sempre em alta, por outro, é também um risco. Uma palavra, frase, polêmica pode também enfurecer a opinião pública e gerar a cultura do cancelamento. Seguindo o verbete publicado na Wikipédia “a cultura do cancelamento é uma forma moderna de ostracismo em que uma pessoa ou um grupo é expulsa de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis — seja online, no mundo real ou em ambos. É uma espécie de boicote em que um indivíduo, geralmente uma celebridade, que compartilhou uma opinião questionável ou controversa, ou que no passado teve comportamento percebido como ofensivo nas redes sociais, é “cancelado”. Eles são ostracizados e afastados por ex-amigos, seguidores, apoiadores e adversários, levando a um grave prejuízo na carreira do indivíduo cancelado. Em caso de celebridades, sua base de fãs pode diminuir significativamente.”

Dito de outra forma, a opinião pública, os seguidores engajados se comportam como um júri popular e sentenciam a celebridade à morte social nos tempos das redes: invisibilidade.

Tendo esse cenário, esse contexto social, parece-nos que Monark foi vítima do próprio veneno: buscando manter a temperatura alta na sua performance usou o significante “nazismo” como tática semiótica para lacrar. Tática semiótica, típica dos tempos pós-modernos em que a forma tem mais poder de persuasão do que o conteúdo. A palavra nazismo na boca de Monark era um signo vazio, um simulacro, um significante sem significado.

Porém, como ensinou comunicólogo alemão Harry Pross, “os símbolos vivem mais do que homens”. Ou seja, se por um lado, a palavra nazismo era só um efeito discursivo, o significado histórico ainda latente no terrível século XX, despertou e emergiu.

Monark entre outros, são frutos do pós-moderno, do relativismo filosófico, histórico e moral. Esse argumento funciona bem para psiques infantilizadas. Não há verdade, há interpretações. A verdade é esvaziada e tudo não passa de jogos de linguagem. A história vira migalhas. A ética se afoga num caleidoscópio indefinido. Nesse espírito, o nazismo pode parecer qualquer coisa, até mesmo, liberdade de expressão. O problema para Monark e seus congêneres que defendem o nazismo e a ditadura militar, são os gritos das vítimas do holocausto que ecoam na memória do nosso tempo.

Não se trata apenas de considerar a falta de conhecimento do nosso protagonista em questão, o que, de certa forma, poderia transformá-lo em bode expiatório e uma adesão à espiral do cancelamento. No entanto, a cena em questão convida a repensar não somente o uso dos espaços midiáticos com fins algorítmicos. Também nos provoca a pensar até que ponto naturalizaremos (e nos acostumaremos) com discursos perigosos que revelarão outras possíveis intenções interditas na narrativa verborrágica daqueles que ocupam os espaços midiáticos.

Para finalizar, recorremos ao historiador Jacques Le Goff, que pode iluminar um pouco da dinâmica desse tempo sombrio embriagado pelo esquecimento, relativismo, superficialidade e ignorância: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez alimenta, procura salvar o passado e servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a liberdade e não para a escravidão dos homens”.

Jorge Miklos é Sociólogo, Psicólogo e Psicanalista na abordagem Junguiana Integrativa. Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Atua como Professor no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Midiática na Universidade Paulista (UNIP/SP).

Flávia Gabriela é jornalista, professora universitária do Centro Universitário Teresa D’ Avila- Unifatea Lorena (SP) e Associação Educacional Dom Bosco AEDB em Resende (RJ). Pesquisadora e Doutora em Comunicação e pela UNIP SP.

Foto de capa por fauxels no Pexels

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