Gerônimo e Leandro (microfolhetim em dois capítulos – FINAL)

Oi, como vai, leitor. Se você chegou aqui depois de ler a primeira parte, siga em frente, bem-vindo, bem-vinda, bem-vinde. Se, por acaso, chegou aqui e não leu a primeira parte, leia clicando AQUI.

Continuação:

A festa foi chegando a um ponto muito interessante. Carlinhos estava jogado num sofá, no canto, com uma galera que estava usando umas coisinhas. Gerônimo se riu. “Carlinhos sendo Carlinhos, eu vou ter de rebocá-lo para a cama, como sempre”. No entanto, Carlinhos se levantou e foi para a pista, surpreendendo o amigo. Enquanto isso, Leandro passava de vez em quando e levantava o copo para Gerônimo. Numa vez dessas, passou e parou para conversar um pouquinho. Falaram da festa, do luxo, das comidas gostosas, mas o olhar sem-graça e sem luz de Gerônimo fez com que Leandro andasse mais, dando atenção às pessoas, talvez porque Gerônimo não desenvolvia melhor o papo e parecia desinteressado. No entanto, a figura do gigante andando na festa não saía do campo de visão de Gerônimo. Ele não beijava ninguém, não tocava ninguém. Mas também… Passou o fim de semana inteiro fazendo essas e outras intimidades com pessoas. Ainda que profissionalmente. Gerônimo pensava que aquele monólito de carne deveria estar exausto de intimidades.

E era exatamente isso. Leandro dançava, brincava, procurava sempre a companhia de mulheres que jamais o tocavam. Ao final ele estava na mesma turma psicodélica de Carlinhos, jogados em sofás e rindo à toa. Minutos depois, Leandro some da vista e Carlinhos passa por Gerônimo dizendo que estava subindo para o quarto com uns amigos.

— Nosso quarto? Como assim?

— Não vamos dormir, só terminar de dar uns tecos, é rapidinho…

— Chega, vai, anda! Quando eu for para lá, vejo o que faço, afinal de contas, quem mandou eu te chamar, não é? Eu é que estou de mau humor hoje, não é justo eu acabar com sua farra. Vai, qualquer coisa vocês procuram outro lugar, sei lá… Chegando eu vejo…

Quando olhou para o lado onde Carlinhos estava, não o viu mais, ou seja, estava falando sozinho havia uns instantes. Sentou no sofá e logo ferrou na conversa com outro ator famosinho, ambos ficaram amigos e trocaram telefones, redes sociais… Mais um na friendzone. Já era quase cinco horas da manhã, o tempo havia voado. A cabeça de Gerônimo doía devido a várias cervejas, algumas em temperatura duvidosa. Era hora de se recolher. Quanto tempo havia passado desde que Carlinhos subira? Não sabia. Checou os bolsos, tudo OK, celular na mão, olhou a última mensagem de Carlinhos, para ver quando o aplicativo fora usado pela última vez por seu amado amigo. Mas ele não estava online, aparentemente. Chegando ao quarto, a porta só encostada e três pessoas deitadas nas camas, além de corpos indistintos pelo tapete do chão. Duas pessoas estavam na cama de Carlinhos, com ele e uma na cama de Gerônimo. Um grandão branquelo, de calça apertada ressonava, babando no travesseiro de pena de ganso que Gerônimo levava para onde viajava.

Chegando perto, Gerônimo pôde ver: era mesmo Leandro deitado em berço esplêndido. Ele parecia estar apenas de olhos fechados. De fato eles se abriram e ele quis se levantar e ir embora. Gerônimo se sentou e depois se deitou sem pedir licença, afinal era sua cama, ele acabou desabando e dormindo com uma mão sobre o peito de Gerônimo. Depois de alguns minutos vendo aquele cara chapado dormir, aquele braço enorme, cheio de veias pesando sobre seu peito, Gerônimo tentou se desvencilhar daquilo, mas Leandro se aconchegou e o abraçou. Gerônimo, sem pensar duas vezes, deitou-se de costas. Leandro se encaixou nele, deitando de conchinha. Gerônimo se assustou, um choque elétrico passou por seu corpo. Tomando coragem, virou para trás e seu rosto ficou frente a frente com o rosto de Leandro. Estariam a olhar dentro dos olhos um do outro, se de fato Leandro estivesse acordado. Gerônimo pensou em dar um beijo nele, mas seu bom senso o impediu. Quase como que adivinhando, Leandro acorda e olha dentro dos olhos assustados de Gerônimo. Olha e sorri com dentes recobertos com lentes de contato, de um branco azulado, fluorescente, diferente das primeiras fotos que viu, em que os dentes pareciam amarelos de tanto fumar. Gerônimo sente o hálito que veio junto com o sorriso em seu rosto, mas seu espantamento o impede de sentir qualquer cheiro. Leandro começa a falar:

— Preciso ir embora, desculpe ocupar a cama, imagino que seja sua…

— O quarto está cheio de “visitas”, fique mais, se quiser. Parece cansado. Quer conversar, falar um pouco sobre si…

Gerônimo riu nervosamente, Leandro disparou uma torrente de palavras:

— Estou mesmo, há dias que estamos nessa maratona de filmagens. Eu quero terminar logo, ainda tenho alguns compromissos marcados aqui no Rio de Janeiro. Tenho negócios a tratar em Natal, no Rio Grande do Norte. Eu sou ator de filmes adultos e modelo. Mas sou publicitário. Por incrível que pareça, eu estudei…

— Nada de incrível nisso. Sua profissão é digna como qualquer outra.

— Na prática, não, a gente sabe, né? Eu sou um profissional do sexo e sofro com esse estigma. Mas tenho ideias. Vou vender um terreno em Natal, eu herdei de meu pai, e quero ir a São Paulo para batalhar um negócio novo. Vamos abrir uma agência de publicidade, a princípio eu quero me beneficiar do trabalho publicitário em duas frentes. Eu ainda tenho conseguido uns contratos de modelo, apesar de estar velho para isso. Acho que meu tipo físico entrou em voga. Fico feliz por achar algumas marcas e produtos, principalmente estrangeiros que topam usar a minha imagem, mas claro, sem relacioná-la ao sexo, aos filmes. Mas o que eu e alguns colegas queremos é exatamente abrir um nicho para explorar a minha imagem e de outros modelos homens e mulheres. A ideia é procurar marcas que não tenham problema em serem associadas a esse tipo de coisa, é uma ideia, nem sei se vai dar certo. Tem a Gretchen aí, o Mateus Carrieri que fizeram incursões da mídia televisiva e música para o sexo explícito e depois tentaram voltar à mídia com algum sucesso… Talvez a gente consiga algo. A ideia é exatamente contratar e dar trabalho a essas pessoas…

Gerônimo olhava magnetizado para a boca de Leandro falando.

— Desculpa, Gerônimo, você nem deve estar disposto a ouvir essa lenga-lenga, né? Eu me empolgo falando nisso. E você?

— Continue, você não vai querer saber da minha vida, sou só um professor de escola pública.

— Outro universo, né? Sinto falta de viver uma vida assim: num universo em que meu corpo deveria estar coberto, não estaria em evidência. Eu tenho sede de conversar de verdade com pessoas que me respeitem pelo que eu sou. Tá certo que a equipe com quem eu trabalho é muito boa e carinhosa, mas ninguém tem tempo. Eu sinto falta disso aqui: olhar no olho de alguém, contar minhas histórias, ter intimidade, sabe?

— Sei. Mas isso não é só na sua profissão. Acho que tem a ver com nossa condição de ser gay. A gente vai ficando sozinha, esquecida num canto. Quer dizer, nem sei se você é gay. Eu sou…

Abafando um risinho, Gerônimo olhou para trás, na cama ao lado, duas pessoas roncavam ruidosamente, outras jogadas no tapete se mexiam de vez em quando. Leandro acompanhando os olhos de Gerônimo pelo quarto, disse:

— Eu sou bissexual, na verdade. Já fui casado com mulher, a gente se conheceu bem no ínício de nossas carreiras de modelo e cinema adulto. Ela hoje está na Europa, deixou uma filha nossa aqui no país com a avó e eu dou assistência e atenção total a ela. Elas moram em Natal, e eu estou lá pelo menos uma vez a cada quinze dias para acompanhar. Quando eu tenho mais tempo, fico muitos dias perto dela. Tem doze anos e eu já abri para ela, eu e a mãe, que somos profissionais do sexo. Ela não tem culpa e também não é obrigada a descobrir sozinha, vendo cenas traumáticas de nós dois nus, fazendo essas coisas em frente a câmeras. Ela já sabe, poderá se proteger de ver essas imagens até ficar adulta, ou enquanto ela quiser não ver.

— Complicado isso, Leandro. Um dia vocês vão deixar essa vida. E é complicado porque o direito ao esquecimento não é garantido no caso de vocês. Alguém sempre pode ressuscitar um passado indesejado…

— Pois é, ela quis ter a nossa filha e na verdade, a menina é uma bênção nas nossas vidas. Ela é menos presente do que eu, pois vive fora. mas de fato, amamos muito nossa pequena. Não estamos juntos, nunca demos certo de verdade, depois dela já me relacionei com outras mulheres e homens. Na verdade, eu tenho preferido ficar com rapazes, mas nem sempre dá certo. Eu tenho meus problemas. Atualmente tenho feito vários filmes por ano e toda semana produzimos algumas cenas para as nossas contas pagas para fãs. Eu chegava em casa e queria dormir abraçado, de conchinha, mas com a cabeça cansada, não tinha apetite para sexo. Meus ex-namorados mais recentes me cobravam, pois afinal de contas, namoravam um atleta sexual…

— Entendo. Por isso notei que não ficou com ninguém na festa…

— Claro que não, não quero. Já tinha feito três cenas antes daquela que você viu e graças a Deus que o diretor se deu por satisfeito com a tomada geral que fizeram na festa. Estava exausto, tive de tomar remédio para manter a ereção. Eu estou cansado, esgotado. Tudo o que eu quero é atenção, carinho, um ouvido… Todo mundo quer sexo, eu estou enjoado desse doce.

— Imagino — disse Gerônimo engolindo seco a decepção — deve ser chato, né. Que nem um cantor que tem que cantar na hora de seu repouso. Ou nós, professores, quando são consultados ou solicitados para se ensinar no horário de folga. Ninguém merece.

— Isso mesmo. Obrigado, viu?

— Obrigado por quê? O que eu fiz?

— Você foi o único fã que a produtora trouxe que não tentou se aproveitar de mim. Até seu amigo Carlinhos ali tentou… Na verdade, subi com eles, porque eu me preocupo com meus amigos aqui, sempre fico de olho quando posso, e imaginei que num lugar mais íntimo, eu poderia ser esquecido num canto e tirar um cochilo… Mas como eu disse, até Carlinhos quis tirar uma casquinha…

Ambos olharam Carlinhos roncando de boca aberta. Gerônimo então disparou:

— Olha, Leandro. Você, por anos, tem sido meu sonho de consumo sexual. Confesso que eu tentei já te contratar como acompanhante. Mas seu produtor me disse que os anúncios na Internet são antigos e você não faz mais esse tipo de serviço. Mas confesso que se fosse o momento, eu gostaria, porque você é você, não é? Mas desde o primeiro momento em que eu te vi, eu não vi o que os vídeos me mostravam. Eu vi uma pessoa de verdade, alguém que eu não conheço e eu estou te tratando do mesmo modo que eu trato a todos que eu ainda estou conhecendo: com educação, o máximo de elegância que eu posso e eu jamais seria abusivo com você, nem sob efeito de álcool ou qualquer droga. Afinal de contas, agora eu sei que você é mais que ator pornográfico: publicitário, empreendedor, pai solteiro, ama sua filha, tem uma relação bacana com ela…

— Por isso eu estou te agradecendo. Vou fazer mais. Vou levantar essa galera aqui, toda, inclusive Carlinhos e vamos desocupar sua suíte. Amanhã a gente se encontra no café do hotel, mas chegue depois das nove porque ninguém merece acordar antes…

Gerônimo engoliu seco e sorriu. Em cinco minutos Leandro conduzia um séquito de cinco, seis, sei lá quantos zumbis para fora do quarto.

O banheiro estava em petição de miséria, havia preservativos usados no chão. Carlinhos andava pelo quarto recolhendo a sujeira e limpando como podia a bacia sanitária vomitada. Terminaram a noite com Carlinhos dizendo que não pôde fazer sexo como queria na cena do filme, mesmo mascarado, porque ele era convidado e não tinha sido testado para infecções sexualmente tranmissíveis, mas poderia fazer figuração, e nesse papel, ele aproveitou bastante, mas não como queria. O bom mesmo rolou ali no quarto, por isso a bagunça toda. Gerônimo pediu que Carlinhos o poupasse dos detalhes, foram dormir exaustos.

Gerônimo fechou os olhos pensando se compensava ou não aparecer no café no dia seguinte…

FIM

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

 

Capa: imagem de Sandra Gabriel por Pixabay

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