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Futuros Amantes

Tendências do imaginário Auguste Rodin. Mãos de Amantes. 1904

“Futuros Amantes” é uma das minhas músicas preferidas do Chico Buarque. Na verdade, é uma das minhas músicas favoritas em geral. Para quem não a conhece, a letra fala de um amor não-correspondido que fica guardado durante anos para um dia ser usado e vivido pelos tais futuros amantes do título.

Há poucos dias, escutei uma nova gravação desta canção pela Adriana Calcanhotto e me peguei pensando nesta ideia de um amor que “pode esperar, na posta restante, num fundo de armário, milênios, milênios no ar”. E acabei revisitando um grande amor que marcou a segunda metade da minha adolescência.

Nós estudávamos no mesmo colégio e participávamos do grupo de teatro. Um dia, percebi que o que sentia por aquele menino era mais do que apenas amizade. Havia uma enorme ternura no meu sentimento por ele, e também uma atração física que eu não conseguia ainda reconhecer muito bem. Isso aconteceu antes de eu tomar plenamente consciência da minha orientação sexual e afetiva, o que só veio a ocorrer aos meus 17 anos. Nós andávamos muito juntos, mas aos poucos fomos nos distanciando e, depois que eu fiz vestibular e comecei a universidade, perdemos quase que totalmente o contato. Ele continuou no colégio, pois era um ou dois anos mais novo que eu.

Um dia, acho que eu tinha de 18 para 19 anos, nós nos reencontramos. Fui ver uma peça de teatro no colégio na qual ele atuava e, ao vê-lo no palco, todo o meu sentimento voltou, mais forte ainda agora que eu sabia exatamente o que aquilo significava. Eu me vi totalmente apaixonado por aquele garoto, como nunca antes tinha me sentido em relação a ninguém. Nós voltamos a nos frequentar até que, uma noite, no caminho de volta para casa de algum encontro com amigos num bar, eu me declarei para ele um pouco antes de saltar do ônibus. Ele ficou muito surpreso, e não disse nada.

Dias depois, nós conversamos e ele me disse que gostava muito de mim como amigo, mas que não me amava e nem sentia nenhum tipo de desejo por mim. Ele sequer se considerava gay.

Mas não desisti. Naquela altura, nossa turma de amigos era exatamente a mesma, e nós nos víamos o tempo todo. Cheguei a fazer uma viagem para acompanhá-lo numa outra peça na qual ele trabalhava. Nessa viagem, inclusive, ele acabou tendo sua primeira experiência homossexual. Não comigo, para meu profundo desgosto e sofrimento.

Um pouco antes de completar 21 anos, eu conheci o meu primeiro namorado e comecei a frequentar outras pessoas e a fazer novos amigos. Voltamos a nos afastar. Mas, durante muitos anos, eu alimentei a fantasia secreta de que, um dia, nossos caminhos voltariam a se cruzar e aquele amor maravilhoso poderia finalmente florescer. Nós éramos feitos um para o outro. Só faltava ele perceber isso.

Esse amor não-correspondido não foi o único na minha relativamente agitada vida amorosa. Entretanto, teve uma importância fundadora na minha experiência e na minha formação afetiva e sentimental. Por mais que eu tenha sofrido na época, tenho até hoje muito carinho pela lembrança desse amor. De alguma forma, eu aprendi com ele a arte de amar e de dar afeto sem a expectativa de receber algo de volta, ou até recebendo, mas não na mesma proporção e intensidade. E estou seguro de que foi uma lição preciosa que tenho carregado comigo por todo esse tempo.

Às vezes, pelo que as pessoas postam nas redes sociais, tenho a sensação de que o amor e o afeto são tratados como investimentos no mercado financeiro. Aplica-se com a expectativa de um retorno certo. Alguns são mais afeitos a investimentos de risco, outros preferem aplicações mais seguras, mesmo que com um retorno menor. Mas a ideia de que só vale a pena investir se for para ganhar alguma coisa permanece. E, quando isso não acontece, fica uma sensação amarga de perda, prejuízo e tempo perdido que se manifesta muitas vezes de forma raivosa e ressentida.

É evidente que, quando a gente ama ou gosta de alguém, espera receber de volta o mesmo amor e afeto. E é mágico quando isso acontece, seja com uma paixão, seja com um crush, seja com um amigo. Contudo, a verdade é que os caminhos do afeto e do desejo são tortuosos e imprevisíveis. E nem sempre a gente ganha aquilo que dá. Há casos em que o objeto do nosso desejo ou do nosso afeto realmente não merece o que temos para oferecer. Mas também há casos em que simplesmente o que sentimos não encontra reciprocidade no outro. O fato de eu querer bem ou me sentir atraído por alguém não cria nele a obrigação de sentir o mesmo por mim. C’est la vie.

Não podemos determinar ou controlar as emoções alheias. Mas podemos aprender a lidar com as nossas próprias emoções. No meu caso, por instinto ou vocação, eu concluí que o que sinto ou desejo me pertence – não o objeto do meu sentimento, claro, mas o sentimento em si. E que cultivá-lo ou manifestá-lo mesmo quando ele não é correspondido não faz de mim um otário (ainda que muita gente possa ver dessa forma). Ao fazer isso, eu sinto que alimento minha própria capacidade de amar e de dar afeto. Em algum momento, esse potencial encontrará novos objetos para projetar-se. Mas estará sempre comigo e, pelo menos na minha opinião, fará de mim uma pessoa um pouco melhor, capaz de me entregar a novas aventuras sem medo de me ferir ou de frustrar.

Além disso, acredito também que isso me torna mais sensível e aberto para receber amor e afeto de pessoas que talvez não tenham despertado nenhuma fagulha em mim à primeira vista, mas que acabam se revelando novos objetos da minha própria afeição.

Como diz o Chico Buarque, o amor não tem pressa. Uma vez lançado no ar, ele ficará lá aguardando a oportunidade de se incorporar em alguém diferente. E vamos combinar que uma atmosfera amorosa é bem mais agradável de se respirar do que um ar pesado de mágoa, amargura e ressentimento que pode ser gerada por um amor não-correspondido mal resolvido.

E nem é preciso ser tão intenso e dramático. O que vale para os grandes amores e paixões vale para os crushes também. Se o boy, o daddy ou seja quem for que mexeu com os seus hormônios e seu coração não reagiram ao seu GIF fofinho ou safado, isso não é motivo para ficar com raiva. Você jogou uma coisa boa no mundo. E o mundo está carente de coisas boas.

Há algum tempo não tenho notícias do meu amor da adolescência. Faz uns anos, soube por um amigo comum que ele se tornou pai de família. Espero sinceramente que esteja feliz no caminho que escolheu. Acredito piamente que, em algum lugar dentro dele, ele guarda com algum carinho o afeto que eu lhe dediquei com tanta intensidade, ao qual ele não soube ou não quis corresponder. Já não faz diferença. Estou absolutamente seguro de que futuros amantes se amarão, sem saber, com o amor que eu um dia deixei para ele.

Até a próxima!

PS – Escolhi a versão original do Chico Buarque para “Futuros Amantes”, pois acho que nenhuma gravação posterior conseguiu ainda superá-la. Acompanha outra das minhas músicas favoritas de todos os tempos, “Donner pour Donner”, com o Elton John e a France Gall, que diz com outras palavras o que tentei dizer acima. E, para dar um outro ponto de vista, a versão de uma das minhas divas maiores, Annie Lennox, para “Waiting in Vain”, do Bob Marley.

Para ver mais textos de Paulo André Lima, confira sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais

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2 respostas

  1. Texto sensibilíssimo. Entrei numa floresta de sentimentos em camadas finas e delicadas da minha época de adolescência e meus amores, todos não correspondidos. Ler isso me ajudou a me compreender, ajudou a saber porque as coisas aconteceram da forma como aconteceram no passado. Lindo, sensível, e com trilha sonora. Beijos!

    1. Poxa, Alex, um elogio desses vindo de você… Ganhei a semana! Muito obrigado! Beijos!

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