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Futebol, Dinheiro, Sexo e Deus

uma bola de futebol no gramado sob um filtro vermelho

A grande maioria dos gays que eu conheço não ligam muito para futebol. Eu sempre tive uma relação muito delicada com o esporte. Quando eu era criança, eu não conseguia jogar bem, o principal motivo era a falta de identificação com o esporte coletivo. Eu não sou muito coletivo. E não me identificava com a masculinidade agressiva que perpassava aquela prática. De forma que eu não me interessei de verdade por esportes até a adolescência, ao conhecer o time de vôlei da minha escola e ser o pior jogador que eu já pude ser, sem no entanto, me desencantar do esporte. Daí até eu ter um interesse pelo futebol foi uma caminhada de maturidade e de compreensão do esporte como um fenômeno cultural. A partir disso, passei a ver com bons olhos alguns jogos, acompanhei Copas do Mundo e até aprendi a torcer por um time, o Atlético Clube Goianiense.

Nunca quis odiar o futebol, aliás, eu quis sempre me aproximar. Entender um pouquinho que seja do esporte me aproximou do meu pai, por exemplo, o que me trouxe um enorme ganho de convivência, nos últimos anos. O futebol fez com que meu pai e eu passássemos boas horas sofrendo juntos na frente da televisão e isso é divertido. Eu gosto muito do meu pai, temos uma boa relação, isso entre gays pode ser uma espécie de privilégio.

No entanto, nem tudo são flores no futebol. Muitas críticas pairam sobre a prática esportiva, sobre o fenômeno cultural e o produto explorado pelas companhias de televisão. Uma das mais contundentes seria a respeito do machismo. O esporte, como tantos outros surgidos por volta de um século e meio atrás, traz a marca da separação entre gêneros. Esse tempo foi o suficiente para consolidar o futebol como uma atividade masculina, um esporte de massas e, por fim, um foco muito grande de poder financeiro, econômico. O status de um jogador, homem, de futebol, que tenha alcançado o estrelato é enorme, como qualquer posto masculino que envolve muito dinheiro. Astros do futebol têm a chance de desfrutar do melhor que a riqueza produz, a imprensa é pródiga na cobertura de seus exageros, casas maravilhosas, casamentos milionários. O futebol proporciona a poucos rapazes brasileiros acesso a riqueza extrema. E promove um enriquecimento aburguesado e aparentemente ilimitado, um acesso ao topo da cadeia alimentar para homens brancos, negros, pardos, feios ou bonitos. O futebol é muito mais democrático, nesse ponto, que a televisão ou o cinema, mas ao mesmo tempo dá acesso a poucos, do mesmo modo. Mas alimenta sonhos de milhões de garotos que correm diariamente atrás de uma bola. Algo parece dizer a eles que é possível se tornar um Pelé, um Zico, um Ronaldo, um Neymar.

Quanto a mim, aprecio como espectador, e confesso pensar menos do que devia nessas complicações a respeito da economia do corpo e do dinheiro em torno do futebol. Mas não deixo de perceber coisas que me irritam. Em primeiro lugar, é um império da masculinidade com nenhuma penetrabilidade para a diversidade, incluindo aí a participação feminina. Esses dias vi mulheres na arbitragem, mas depois eu me lembrei que não é de hoje que isso acontece. Notei uma mulher narradora em determinado canal, mas não no pacote de canais que assinei para meu pai, o mais importante e com maior cobertura. O preconceito com gays é muito comum, mais agressivo ainda por parte das torcidas, quer se rivalizem ou não. Não tenho nenhum registro de jogador que tenha se assumido gay publicamente e as coisas já foram piores. Só não são, de fato, porque o mundo mudou e isso ficou mais claro nas últimas décadas. Hoje em dia eu assisto a jogos sem me incomodar com a homofobia, impedida pelo politicamente correto, o que pode ser algo ruim, porque o politicamente correto não indica mais do que um silenciamento seletivo, uma troca injusta, porque usam palavras boas e bonitas para se referir a nós, mas sem nenhuma garantia. O politicamente incorreto é uma espécie de maquiagem tosca da realidade nesse e em outros tantos casos.

Onde impera o machismo, reina o abuso. O excesso que a riqueza traz poderia levar muitos dos jogadores famosos a uma vida de devassidão que se igualaria a de magnatas e astros da música e do cinema, o que de fato acontece. Mas desde os anos de 1990 eu tenho percebido uma grande adesão de jogadores de futebol à religião evangélica. Embora vivamos num país cristão e muitos jogadores expressam sua fé como forma de se afirmar e acreditar no próprio sucesso, um número muito grande de jogadores evangélicos começaram a aparecer. Claro, cresceu também o número de evangélicos protestantes, pentecostais e neopentecostais. Cresceu também a força do povo evangélico e dos católicos carismáticos em sua representação política, na sua presença na mídia. Aparentemente, um recrudescimento na liberdade de pensamento e na noção do que é permitido ou não acompanha a aplicação das leis no país, nos últimos trinta anos. Uma maior liberdade de ser, na atualidade, veio junto de maior utilização do politicamente correto, além da criação de barreiras que visam proteger crianças e adolescentes do que é inadequado a eles, por exemplo, e isso inegavelmente mudou o uso da mídia no nosso país. Nesse contexto, o futebol desponta como uma fonte inesgotável de heróis e modelo de salutabilidade. Esporte e bons exemplos pululam na tela, numa época em que o sexo desaparece das novelas que passam mais cedo, dos filmes vespertinos. Sem publicidade infantil, considerada abusiva, as crianças se voltam mais ao futebol. Jogadores de futebol passam a lançar marcas, modas, estilos de cabelo, viram modelos da garotada, enquanto suas vidas pessoais são minuciosamente acompanhadas pelas imprensas e uma ou outra vez seus erros varridos para debaixo do tapete: casamentos feitos, desfeitos, traições às esposas e namoradas, abuso de drogas e bebidas, entre outras coisas.

É isso que eu percebi, em 2017, quando saiu a condenação do astro do futebol Robinho, após ter sido acusado de participar de um estupro grupal de uma garota albanesa, na Itália. No auge da fama, com a imensa sensação de poder que ele experimentava, ele aparentemente demonstrava escrúpulos religiosos seletivos, como quando há dez anos, ele e um grupo de outros jogadores não quiseram participar de uma visita a uma instituição espírita. Ao mesmo tempo em que participava de festas mundanas, um colega seu do período em que jogara no Real Madrid disse que ele tinha uma miniboate no porão de sua casa na Espanha. Não sei exatamente quando ele se converteu à religião cristã, mas a justificativa de que ele era um evangélico fervoroso e por isso não poderia pisar em solo espírita foi amplamente divulgada pela imprensa, em 2010, quando da sua negativa àquela visita. O poder econômico e a fama falaram mais que Deus na sua vida.

Eu realmente não avalizo e nem recomendo a fé evangélica. Mas sendo conhecedor de rudimentos de sua doutrina, não acho que cristãos sejam autorizados por seus pastores a terem boates em casa ou fazer sexo grupal, incluindo estupro. Mas se a pessoa em questão for muito rica e famosa, quem vai julgá-lo corretamente? Talvez o tribunal da inquisição popular. A passada de pano sobre o julgamento de Robinho, há 3 anos atrás perdeu seus efeitos durante essa semana, quando arquivos com transcrições das conversas telefônicas interceptadas pela polícia italiana, autorizadas pela justiça, saíram num furo de reportagem de um site das Organizações Globo. O conteúdo é hediondo, enojante: o jogador e um grupo de amigos alegadamente embebedaram, drogaram uma garota e fizeram sexo com ela em estado de semiconsciência ou inconsciência. Os áudios apontam a participação e anuência de Robinho no ato, mesmo que ele use as mesmas informações para dizer que não, que teria feito o que lhe acusam, que ele teria participado parcialmente do ato hediondo. Aliás, hediondo é pouco, mas acontece nesses meios onde há homens poderosos, com muito dinheiro e achando-se impunes.

Aliás, a impunidade com a qual Robinho conta é de origem inusitada. Espiritual. Por se achar um filho de deus, ele acha que somente deus perdoando, está tudo certo. E que ele passa por provações cujo motivo é fortalecer sua fé. Então ele estupra alguém e a razão disso é errar para fortalecer a sua fé. Ele foi condenado em primeira instância na Itália por fé. Ele está recorrendo por fé. O Inacreditável Futebol Clube, piada televisiva que coleciona gols perdidos impossíveis ou defesas vazadas, deveria colecionar atos como esses, de jogadores como esses. É impossível de se crer que um cidadão queira estar acima da justiça italiana, é improvável que alguém tenha tanta empáfia, a não ser que seja muito rica, poderosa, como outros tantos caras de pau ricaços que se riem na cara da justiça, quando veem que ela é obrigada a dar passos atrás por causa do dinheiro que enfrenta.

Mas não é o caso de Robinho. 36 anos. Fim de carreira (curta, diga-se, como a de qualquer esportista de ponta), talvez não seja tão rico assim, não sei. Seu poder minguou-se ante ao desastre que tentava encobrir até agora. Robinho nunca teve uma carreira muito produtiva, ainda que seja vitoriosa. Sua importância como jogador diminuiu rápido depois que sua carreira internacional começou. Após a condenação em primeira instância, contra a qual recorreu, enquanto estava no Milan, ele voltou ao Santos, depois retornou ao exterior e terminaria sua carreira respeitosamente no seu clube de origem, o mesmo Santos Futebol Clube, que o revelara como astro, até que a imprensa, notoriamente, a Rede Globo, revela dados importantes do seu passado, a sua culpabilidade e participação inconteste no ato horroroso de violência sexual que o condenara antes. Pressionado pelos patrocinadores, que não querem ver sua marca numa camiseta de um estuprador, sabendo que o futebol ainda é um espelho da glória da nação, como já falamos antes, o Santos não fecha o contrato e Robinho fica sem clube.

Sem opções, ele passa a atacar a Rede Globo, a emissora de Satanás, que quer destruir a sua imagem e se compara ao seu ídolo, o mártir presidente Bolsonaro. Em matéria da Folha de São Paulo, mensagens de voz trocadas entre Robinho e amigos, além de acusarem a emissora e seu grupo jornalístico, Robinho reafirma sua fé e as provações que não lhe faltam, crendo que seu Deus haveria de salvá-lo no final de tudo, prometendo fazer gol e questionar a Globolixo e dizer que Bolsonaro está certo, usando camiseta de protesto por debaixo do uniforme do clube.

Até onde a fé entra nisso tudo? A fé é mais maleável que rígida, principalmente quando se trata de um fiel rico e famoso. Mas inegavelmente, desde a antiguidade, há um abuso recorrente quando se mistura justiça divina e justiça humana. As leis humanas são consideradas inferiores pelo cristianismo, que tem a sabedoria bíblica como superior. Não somente isso, mas alegam que o perdão que deus daria a todo crente seria o suficiente para que ele pudesse ser considerado socialmente reabilitado. De fato, há uma associação entre comportamento cristão e comportamento ajustado socialmente. Isso tem valor dentro das penitenciárias. Quando eu era criança, crentes compravam a prazo sem assinar promissória, de tão honestos e justos que pareciam aos olhos de todos. No entanto, isso mudou muito, principalmente com a proliferação de denominações cristãs, o cristão passou a associar o perdão divino como salvo-conduto para a desonestidade e excessos. Isso sem falar que a moral cristã, desde a antiguidade, acoberta a exploração econômica, as violência contra a mulher e contra crianças, impondo subserviência a quem é mais fraco. O cristianismo foi usado como ferramenta civilizatória no Império Romano exatamente por submeter as pessoas a uma autoridade divina que pode estar na figura de uma pessoa, um líder espiritual, um mestre, um pastor. Ou pode estar também numa figura política, como um imperador ou presidente. O cristianismo avaliza toda e qualquer forma de submissão, sendo uma das fontes do poder masculino que leva Robinho a crer que ele fez algo que é natural, por ser homem, que deus vai perdoá-lo, que está tudo bem. E que as pessoas saberem da verdade sobre ele é um ataque demoníaco tentando desviá-lo da fé. Vejamos bem. Estuprar não é um ato demoníaco. Mas ser denunciado, sim. Esse tipo de inversão de valores é muito comum nas igrejas e está sendo pregado agora, nesse instante, por vários pastores e fiéis, que incitam seu rebanho a se justificarem perante deus, desvalorizando as organizações humanas, as leis humanas que nos tornam mais civilizados e pacíficos.

Se um dia o cristianismo produzia pessoas mais civilizadas, hoje ele é o princípio da nossa destruição como sociedade. Há de guiar a todos nós a um estado de barbárie primitivo, se a sociedade não reagir.

Talvez por isso devem pensar que eu desgosto do futebol, a partir de agora. Não ainda é um local de encontro entre eu e meu pai. Hoje eu o ensinei a usar um aplicativo para assistir aos jogos pelo celular, quando ele não estiver em casa. Continuo conversando sobre jogos e a ler as páginas de esportes no jornal que eu assino, pois torço para um time de meu Estado, achei mais coerente. Moro em Goiás e a grande maioria torce para times paulistas ou cariocas, nossos times carecem de torcida. O futebol ainda continuam esporte, arte, beleza, mesmo com seu uso ideológico, do qual eu me sinto mais imune do que um jovem que acredita em Robinhos ou Neymares. Mas é triste ter de admitir esse lado podre. Robinho talvez jamais tivesse se tornado esse monstro que se tornou se o dinheiro que ele ganhou não o tivesse tentado. A ocasião faz o ladrão e faz também o estuprador, o sonegador, o chantagista, o estelionatário.

Meus olhos nunca mais verão o futebol com toda a sua graça de quando eu era pequeno, mas pelo menos, meus olhos enxergam. Continuo atento, pensante. Vigilante. Precisamos falar sobre futebol e o poder masculino que o corrompe.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

2 respostas

    1. Obrigado pelo comentário, meu amor. Sim, infelizmente toda a nossa cultura é atravessada por “ismos” e “ias”: machismo, racismo, LGBTQIAPfobia, xenofobia, e toda forma de preconceitos.

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