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Falo do jeito que eu querê e ninguém me correge

Como todo e qualquer professor de língua portuguesa e inglesa (possuo ambas as licenciaturas), eu sou cobrado insistentemente por estudantes, colegas e outros quanto ao uso da norma padrão dessas línguas. Alguns acham claramente que eu preciso MESMO sempre falar que nem um dicionário ambulante, enquanto outros acham que eu sou uma fonte eterna de dicas de como interpretar e escrever melhor. Mas o que mais me deixa incomodado é quando as pessoas não entendem como a língua funciona na prática, mesmo que a usem corretamente. Geralmente, o cidadão de classe média, baixa ou alta, acha que a norma padrão é uma meta de excelência no uso da linguagem falada e escrita, quando na verdade, NÃO. A norma padrão serve a usos específicos da língua que requerem uma formalidade e expressão mais controlada, seja na fala ou na escrita. Para a comunicação cotidiana entre pares, não há necessidade de se falar ou escrever como um corretor de texto automático de celular. Falando nele, quantos mal-entendidos já aconteceram por causa do corretor ortográfico e suas certezas mirabolantes? Tipo: “Vou escrever ‘pau’ no lugar de ‘pai’, vai ficar tudo bem…”
Professores de línguas não são dicionários ou livros de gramática, estilística e ortografia. Não possuem a chave mágica para toda e qualquer interpretação de texto que você deveria saber fazer poque ficou no mínimo doze anos na escola. Nem todos gostam de ficar o tempo todo ensinando informalmente o idioma, embora eu conheça alguns que gostem de responder a perguntas e dar dicas. Eu, por exemplo, não me importo de responder uma ou outra coisa, principalmente se houver uma intenção prática atrás da coisa toda. Mas, dependendo da dúvida, eu prefiro cobrar pela hora-aula particular que, no meu caso, é R$ 100,00 — no mínimo. Mas, enfim… O que mais chateia não é terem a ideia errada de que tenhamos de saber de tudo. Mas a ideia errada de que não podemos nos comunicar, nos expressar livremente, sem nos preocuparmos com plurais, desinências, regras de pode-não-pode é complicado.
De fato, é interessante que um professor de língua portuguesa e estrangeira domine bem seu idioma e o idioma estrangeiro que ensina, porque ensina. É natural que essa pessoa seja referência no modo como se deve se expressar nessas línguas. Mas não significa que não possamos usar a língua na sua plenitude, expressão as diversas nuances da cultura. Não significa que não possamos pensar e nos expressar usando a variedade linguística de nossas origens, estados e regiões, com todos os seus desvios em relação à norma culta.
Aliás, professores jamais devem usar a norma culta como prioridade na comunicação, mas usá-la como instrumento, questioná-la, e assim, questionar o poder que se exerce TAMBÉM pela imposição do certo e do errado na hora de falar e, principalmente, escrever.
Professores têm classe social. Os docentes da educação básica, geralmente, são da mesma classe que as crianças e adolescentes para quem lecionam. A língua falada na comunidade onde ele trabalha deve ser a prioridade. Mesmo que todo e qualquer material didático priorize a norma padrão. Essa norma, ensinada para os mais pobres, deve ser entendida como um conhecimento que pode ser usado na transformação social, não um elemento de submissão às forças sociais estabelecidas por poderes que servem aos mais ricos. Mas… Nem sempre os professores se dão a essa tarefa. Enfim, eu gosto de me expressar bem, de falar com correção, de ser formal, quando preciso. Mas, na maioria das vezes eu prefiro um modo mais coloquial, até porque eu acho o português falado em Goiás poético, belo, criativo e humorístico. Veja abaixo:
Expressões do meu falar cotidiano que desmoralizam meu jeito de ser perante pessoas que acham que professor tem de falar que nem secretária eletrônica:
– Apanhar que nem vaca na horta.
– Me mata com a faca da cozinha (cara, isso é muito específico).
– Vazar na braquiária.
– Rensga, carai!
– O pobrema de falar errado é que viceia.
– Nóis enverga mai num quebra.
– Agora sim, ispinica a rosa e joga nimim.
– Pegou fogo no cabaré da [Insira aqui o nome da empreendedora do ramo da diversão noturna da sua cidade, distrito ou povoado].
– Vai cagá no mato (denota indignação).
– E no zóio de porco, não vai nada não (quando a pessoa está sendo folgada demais e não desconfia).
– No puteiro, que é um puteiro, tem gerência, porque aqui não vai ter?
– O troço né bagunçado assim não, siô.
– Vai chupá um canavial de r0l4 que ocê miora.
– Aí cê tá pulando o corguim, cumpadi.
– Deus é justo, mas suas carça é mais, Zezé di Camargo. Depois perde a voz porque as bola foi pará na garganta.
– No seu que é mais azul, bota mais deiz metro de bambu e acaba de interá com com coro cru.
– No seu t0b4, disgramado (vale para contradzer qualquer opinião quando você apela com alguém).
– Disgrama / Disgreta / Disgrassa / Capeta dozinferno / Feladaputa / Fiote de cruiscredo (xingamentos cotidianos, podem ser direcionados a pessoas íntimas e amadas)
– Nem jogado de bodoque (quando você não vai de jeito nenhum).
– Nem jogado de estilingue (idem).
– Nem de cedo até meidia (de forma nenhuma).
– Na pardatarde num posso (ocupado no período vespertino).
– Pisô em algo mole e quente? Pé de gente? Se fô verde é bosta de vaca.
– Eu dava um dendafrente para (quando você é capaz de qualquer coisa por algo)…
– O que é um peido pra quem tá cagado?
– Pacabá cos piqui do Goiás (não acredito).
– Sete hora no horário dozomi, seis hora do horário de deus (inconformado com o horário de verão, que vigorou até 2019).
– Isso aqui tá que nem a Festa do Muquém: ninguém é de ninguém (festa animada com convidados desinibidos).
– Crasse média é um povo que come abroba e arrota linguiça.
– E essa fartura de melancia? Isso aqui é Uruana ou Santa Isabel? Pensei que tava em Goianésia…
– As casinha tudo juntinha que nem era antigamente nas Popular (moradias populares feitas pela Cohab nos anos de 1980).
– Mora longe demais, lá no Fofa Toba, que fica depois do Sorta Gato. Não, né pros lado do Quebra-Cuia não, fica ali ino pro lado do Caruncho.
– Minha mãe mora no Espanha. Nome chique não, fi. Lá é oto nome. É porque eis panha tudo o que ocê tem dendicasa se não trancá tudo. Se chegá de bicicreta e deixá na calçada eis panha. Se chegá de moto eis panha, se chegá de carro eis panha. Espanha, tendeu?
– Onquicemora? Novorora? É muito prá lá do Ferão? Isso tudo? Isso né Novorora mais não, fi, já tá chegano no Pica-pau.
– Só no c* pra num ingravidá mesmo (indignação).
– Tô gordo mais não, mas a pança quebrada de pangaré de carroça tá aqui.
– Sua avó, paiasso (resposta para praticamente tudo).
– Deis conto num pastel? Vai robá pra sê preso!
– Gente torto e pau burro é tudo igual. Num tem conserto.
– Meus carcanhá até rachô agora de de vontade de ruê um piqui.
– Paia dimais.
– Peba sem tamãim.
– Onde é que cê vai andano nessa pressa toda? Tá querendo arcançá o Tavão? (Pessoa em situação de rua de Goianésia, que virou meme folclórico, famoso por andar rápido a passos muito largos.)
– Consquecusta? (Qual o preço disto aqui?)
– Contozano ocê tem? (Qual a sua idade?)
– A primeira chuva no Goiás ressuscita as grama e as bosta de cachorro do quintal tudo…
– Nunca nem vi vendeno tomate na feira.
– Os peba andano de motoca, oia lá.
– Falá dendassala de aula ocê fala do jeito que quisé, meu fi. Mas escreve assim na redação do ENEM procevê (eu dando dicas de redação na aula de português).
Muitos conhecem Marcos Bagno, linguista e professor brasileiro, cujo trabalho sobre variação linguística tem ajudado a mudar a forma preconceituosa como a língua é ensinada nas escolas públicas e privadas do país, que tende, lentamente, a substituir a tradição do ensino da língua por abordagens científicas e socialmente mais justas:

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

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