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Espiritualidade

Nasci e me fizeram católico. Amigos de papai me batizaram. Depois, aos doze anos fiz primeira comunhão e segui até os quinze, com dúvidas e muita curiosidade sobre Deus. Isso me fez entrar para a Igreja Presbiteriana, por influência de minhas tias. E depois disso, eu sofri muito. Deus não foi legal comigo. Não impediu que eu tivesse transtorno bipolar do humor e toda uma comunidade religiosa achasse que eu pudesse ser esquizofrênico. E o pior. Eu ainda era gay. Isso incomodava mais do que qualquer adoecimento mental, ter de lidar com o medo e a vergonha de ter desejo sexual pecaminoso. Mas fui empurrando com a barriga, até que eu caí numa Assembleia de Deus. O meu terapeuta era pastor de lá, e eu me sentia bem no meio de amigose pessoas que aparentemente acreditavam em mim, até que um dia eu explodi em mil pedaços num surto de mania aguda. Daí eu passei vinte e tantos dias internado e voltei com o rabinho no meio das pernas, para os pés do salvador. Deus havia permitido aquilo para que eu aprendesse mais uma das milhares de lições que ele tinha de me ensinar.

Verdade é que esse evento mostrou que meu terapeuta estava abusando da minha pessoa, oferencendo-me um tratamento supostamente psicológico que não funcionava. De quebra, ele me mantinha fiel a uma igreja que via, de vez em quando, alguns de meus cobres. Então, eu decidi sair dali e pedi para voltar á Igreja Presbiteriana. Foram bons anos até que, finalmente, eu pude abandonar tudo quando ser gay não era mais uma “escolha”. Eu jamais seria aceito por eles. Então procurei o pastor e abri meu coração. Ele disse que tudo bem eu ser gay. Mas igreja não me “perdoaria” por isso e eu não teria direitos iguais. Deus não me curaria (pelo menos ele não mentiu), eu jamais deixaria de ser como sou e ele queria que eu estivesse junto deles até o fim: celibatário, sem amor.

E eu estava apaixonado por um tonto que percebeu isso e me deu o pé na bunda antes que as coisas ficassem piores. Sentindo-me no orotimbó do mundo, eu passei dias amargando uma paixão pela Internet que não era correspondida, com um cara feio, estranho, que trepava mal, mas que eu havia aprendido a amar. Então, eu resolvi me mudar para a cidade dele, não mais para encontrá-lo, mas para me encontrar de verdade. Nas primeiras vinte e quatro horas na cidade eu tropeço num rapagão cheiroso. Um homem enorme de um metro e noventa, de cabelos penteados para trás, barba por fazer e sorriso sacana. Trocamos telefone e depois nos falamos, nos encontramos e passamos, depois disso, dez anos, nove meses, vinte e cinco dias, quinze horas juntos. Era coisa de Deus, sei lá. Não mais aquele Deus estranho e maldoso das igrejas, mas um Deus legalzinho, que gostava de gay, que colocava aquela pessoa ali na minha frente.

E nossa vida foi muito ligada a Deus, a todo um conceito de espiritualidade. Ele era médium, babalaô, cartomante, astrólogo, ligado ao catolicismo desde criança, neto de uma descendente de ciganos, a magia fluia por sua fala, nos seus dedos ágeis catando búzios na peneira, ou então derissando cartas uma a uma num pano de veludo, falando coisas que supostamente acertariam meu passado, presente e futuro. No fundo eu me ria daquilo tudo. Nenhuma previsão do Tarot dele parecia ser real. A não ser uma. Eu queria muito entender porque a minha transferência para a capital (eu era professor da rede estadual) não desenrolava. Ele disse que iria dar certo, mas que não seria tão fácil quanto eu imaginava. E não foi mesmo. Mas nada que pudesse de fato me ajudar. Nesse período todo de vida, a cada vez que eu perguntava algo para ele, ele respondia de maneira vaga. Diferente de quando ele respondia para os outros, sempre cheio de intuições brilhantes. Com ele, eu entrei na Ordem Rosacruz, na qual me iniciei até o sétimo grau, tendo abandonado as iniciações antes de terminá-las. Tornei-me membro da Tradicional Ordem Martinista, na qual trabalhei enquanto morei em Goiânia, dando minha contribuição a uma causa espiritual na qual eu acreditava. E na minha casa: Umbanda, ocultismo, muita caridade e amor. Até a página vinte.

Meu então companheiro cobrava por consultas esotéricas e espirituais, para fazer trabalhos e outras coisas. Nem tudo era exatamente caridade. Ele fazia isso a preços baixos, de fato. O interessante é que pouco daquilo ia para o sustento de nossa casa. A grande maioria, sustentava seu vício no álcool, a cada dia mais preocupante. Mas ele também era muito estudioso, depois de formado em filosofia, fez mestrado, doutorado em educação. Eu fiz mestrado na minha área, mas parei por aí porque alguém tinha que trabalhar para pagar aluguel, supermercado, contas de consumo, enquanto ele pagava, com sua bolsa, os próprios estudos, o bar e a prestação do carro. Sua mãe, minha sogra, inúmeras vezes, nesses dez anos, deu-nos dinheiro e víveres. Eu era um professor ganhando pouco, com dívidas no banco, com milhares de preocupações, tentando sobreviver, acordando cedo e dormindo tarde em cima de livros, provas, planilhas de resultado, textos para escrever. Inclusive os deles. Eu o secretariei em todo o mestrado, o doutorado, revi cada texto seu, fui seu ghost writer quando ele não conseguia produzir, entorpecido ou de ressaca. Sua mãe dava dinheiro para inteirar o aluguel de uma casa enorme, cheia de móveis, prataria, bibelôs, imagens, divindades, entre outros. A espiritualidade dele era pura quinquilharia.

Ele se incorporava com sete, oito, contei nove entidades de esquerda e direita na Umbanda. Elas o acompanharam enquanto ele bebia. Depois que ele parou de beber, após ameçar a sua própria vida e a vida de algumas pessoas, num episódio que, quando ele morrer (cedo) eu hei de contar, as entidades se foram sem dizer se voltariam. Pelo menos não voltaram mais. Elas me ajudavam, até certo ponto, porque elas o tomavam de assalto para que ele não me batesse, para que eu não batesse nele em tantas outras vezes, para que ele não cometesse outros desatinos. E ele tinha uns surtos, talvez pelo uso de álcool e (eu imagino) alcaloides, que deixavam as coisas meio tensas, às vezes. Eu sempre achei que ele só bebesse, mas recentemente, ao “estudar” novamente seu perfil, cheguei à conclusão que ele poderia ser um usuário esporádico de outra substância, talvez porque um de seus amantes era. Suposto amante, de fato.

Ainda tinha isso. Quanto mais eu falo da minha vivência com o espiritual dentro de casa, mais a minha vida vira um capítulo da série documental sobre um Zé Arigó ou um João de Deus. Além de potencialmente charlatão, meu ex-marido era também cruel comigo, explorador, alcoólatra e, após nosso término, eu o descobri como um potencial abusador. Muitas pessoas me contaram coisas. Uma vez na feira livre que ele havia avançado e tocado na genitália de um homem, outra que ele havia forçado sexo com um de nossos convidados, num fim de semana em casa. Outra pessoa que me contou seu comportamento com seus estudantes, quando ele trabalhou como professor, algo que um de seus próprios estudantes uma vez me confirmou com suas próprias palavras. De uma feita, também li acidentalmente coisas perturbadoras no seu celular, que ele vivia pedindo que eu pegasse, atendesse, lesse as mensagens, passasse para ele, escrevesse isso e aquilo porque ele estava cansado e com preguiça. Numa delas, um estudante estava tentando ajudá-lo a econtrar uma pessoa tal a troco de favores muito perturbadores para dizer aqui impunemente.

Era uma escola de adolescentes do Ensino Médio. Meses depois ele se desentendeu com a gestão da escola e não mais trabalhou lá, com alegações de conflitos pedagógicos e estresse. De fato, provavelmente alguma coisa que aconteceu fez ele surtar. E esse acontecimento me fez abandoná-lo para nunca mais. E também a espiritualidade. Não é fácil acreditar em deuses, bondade, bem e amor quando temos esse exemplo satânico dentro de casa. Deus me ajudou muito. Ele era extremamente devoto de santos, anjos e entidades. Ele parou de beber, começou um tratamento para sua ansiedade e suposta bipolaridade. No entanto, ele não melhorava, em si. Os sintomas passavam, o coração de fezes, nunca.

Deus não cura ninguém das maldades que uma pessoa tem. Ele era mimado e cruel, foi-se tornando algo que beirava a sociopatia. E isso acontecia comigo por perto, acudindo como podia, de fato mais estragando do que exatamente ajudando. Então eu resolvi quebrar o ciclo vicioso da codependência emocional e alcoólica. Não foi fáci. Não foi Deus.

Talvez por isso, há cinco anos que eu nego a espiritualidade.

O eremita. A carta do Tarô que representa a espiritualidade alcançada pela busca da sabedoria, também representa a solidão e o isolamento.

Mas isso foi uma bobagem da minha parte. Eu sempre tive fé em mim mesmo e na minha capacidade de crescer. Mesmo quando minha história me mostrava um invertebrado subserviente de charlatão malandro. E isso é espiritualidade: acreditar em si. E eu tenho voltado a isso. A acreditar em mim mesmo.

Isso me tornou um agnóstico mais brando. Apesar de não acreditar em deuses, santos e anjos, não me importar com certas coisas, com alma, espírito e transcendências, eu não posso negá-las, não posso racionalizar também.

Mas não significa que isso não exista.

Minha mãe me narrou esses dias uma consulta com uma clarividadente que soube dizer até quem estava dentro do quarto, em casa, enquanto ela a consultava. Eu disse à minha mãe que isso pode ser real. Pode não ser, não sei e não cabe a mim explicar.

Mas há coisas que eu sei e posso explicar, conhecimento que eu adquiri em mais de dez anos de estudos e leituras que foram do ocultismo à filosofia das religiôes, à prática de rituais mágicos até a sofisticada Ciência da Religião.

E por meio disso, eu retorno a uma realidade do espiritual. Não a deturpação que eu vivi no meu lar. Mas a espiritualidade de meu corpo, de minha mente, de meu eu, meu deus inteiror, meu mestre, meu ser.

Amo estudar teorias mágicas e místicas sobre o corpo. Não preciso acreditar em nenhuma delas, nem tenho como provar que sejam mentira, de fato. O que eu sei é que eu não posso explicá-las. E o mágico, o místico, o bom do espiritual é quando não sabemos, obedecemos, traçamos nossos caminhos, buscamos nos conhecer.

Deus jamais virá nos salvar, arrebatar, não tenho porque acreditar que renasceremos após a morte. Mas tenho que acreditar que não posso decidir sobre isso, se é verdade ou não. Mas toda vez que eu rezo, que eu medito, que eu supostamente trasncendo, eu entro na minha mente, crio meus infernos e paraísos pessoais.

Agora, que não mais estou sob a tutela de nenhum sacerdote ou líder místico, eu sou meu líder. E isso é transcendente, é meu trasncendente. É meu espiritual.

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