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Epistola Póstuma do Rei Davi à Jônatas

“A sabedoria clama nas ruas,
eleva sua voz na praça,
clama nas equinas da encruzilhada,
à entrada das portas da cidade ela faz ouvir a sua voz:
e até quando os que zombam se comprazerão na zombaria?
Até quando, insensatos, amareis a tolice,
e os tolos odiarão a ciência?

Provérbios 1:20-22, in Bíblia Sagrada Ave Maria.

Meu amigo Jônatas, hoje escrevo esta missiva dirigida a você, que neste momento se encontra na Casa do Pai. Escrevo pousado na caverna de Qumran, próximo ao Mar de Arabá (Mar Morto), sob àquela lua que testemunhou a primeira vez que te vi na estrada de Ceila com seus soldados, retornando da batalha de Gelboé. Meu amigo Jônatas, filho da Casa de Saul, como estavas nobre naquela noite. Foi naquele momento que a vossa alma me consagrou a sua amizade.

Por Javé, Jônatas, como me era cara a tua amizade! Hoje, me vejo envolto daquilo que os homens das terras do Baixo Nilo, chamam de saudade. Uma sensação de vazio, que se extingue quando as minhas memórias se desprendem de mim para te encontrar num passado recente e fugaz. Este encontro entrementes, traz a paz ao meu espírito angustiado e solitário. A angústia que repousou nesta noite em minha alma, surgiu de algo que a minha ignorância humana não consegue iluminar a minha razão.

Jônatas, pensando mais um pouco, pode ser que esta angústia deva ter sido desencadeada, num momento anterior, quando minhas reflexões se voltaram para a lei mosaica que versa sobre a amizade entre guerreiros. Nossa norma ancestral, rege sobre a conduta de homens, lhe facultando o direito aos sentimentos ternos, por ser manifestações do corpo feminino. Eu e você, sabemos que a amizade entre guerreiros não é bem quista aos olhos dos Reis, escravos e homens livres, quiçá das nossas mulheres, que não entendem o mundo masculino virilizado pela força bruta. Força esta, que esconde na calada do seu descanso após as batalhas, um quinhão de afeto mútuo, acolhido pelos olhos corpos silenciados pela fadiga, mas desejosos do silêncio que deseja ser compreendido. Silêncio que me reservo nesta caverna, quando penso e diálogo consigo em espírito.

O fruto da falta de compreensão dos nossos, sobre a amizade entre homens, me causou dor e perseguição, como aquela investida por seu pai contra minha pessoa. Confesso que não compreendi, num primeiro momento, a razão de tal ira do velho Saul. Na fuga para o deserto de Sião, perguntava a minha sobra: “o que levou aquele homem a investir contra um amigo de seu filho?”. Por que seu pai queria ferir um filho da Casa de Jessé, que por extensão, aglutinava os filhos da Casa de Israel, ventre ancestral de onde nossas famílias formaram os laços de cooperação, amizade e consanguinidade.

Rememorando as minhas memórias da juventude, penso que Saul não aprovou a criação da nossa amizade, num primeiro momento, devido ao cuidado que eu demonstrei por vossa pessoa. Você deve se lembrar de como lhe acolhi em meus braços, quando após me entregar suas armas, seu cinturão e sua espada dourada, meu corpo se encheu de júbilo, pois tinha acabado de ser contemplado pela tua amizade. Naquele momento, minha boca falou para você e toda a sua família, que a sua amizade me era muito cara, como cara era o amor das mulheres. Meu caro amigo, a boca de um homem de paixão não se cala diante dos olhos da ignorância humana. A profundeza destas palavras foi tão verdadeira, que as deixei expressa no canto que consagrei a você e seu pai, após receber a notícia do seu retorno à Casa do Pai Eterno.

Jônatas, a sua amizade era única ao jovem Davi, pois você era forte, lutava com a força de um guerreiro indomável; comandava um exército de homens com pulso forte; ser estrategista que nunca ousou duvidar da sua capacidade de comando; homem de fé que seguia os desígnios de Deus; enfim, um guerreiro de paz, guerra e orações. Mas, ao mesmo tempo, emus olhos lhe viam como um jovem frágil, de pele macia, cabelos cacheados, pernas tortas, olhos espertos e sorriso fácil. Um destemido leal que me ensinou a usar o alforge, se lembra? Você costumava usá-lo para caçar a carne, que por muitos anos, enriqueceu o banquete da Casa de Saul, teu pai.

Jônatas, como estou na paz da minha solidão, lhe confesso que naquela tarde que enfrentei Golias, o medo invadiu minha alma, pois a força daquele homem poderia me destruir num sopro de ira, mas a oração que meu coração direcionou a Javé, me fortaleceu, assim como, a lembrança de você lançando o alforge para pegar um cervo nas colinas da Gruta de Engadi. Meu amigo, como era vibrante te ver esperar o lançamento certeiro. Confesso que, observando os seus movimentos de caça, naquelas vezes que lhe acompanhei nas caçadas, a minha alma se fundia a sua, como se desse uma sobreposição de mãos que segura e lança a flecha em direção ao animal livre no deserto. Almas unidas por um desígnio de Deus, pois somente esta verdade pode justificar a nossa união tão profunda de afeto e cumplicidade.

Uma amizade sincera e libertaria, pode gerar dúvidas em outras pessoas, que não vislumbram as almas generosas de homens livres, que desejam viver a liberdade de serem livres, pois os filhos do Deus de Israel são livres das amarras da dúvida. Mas, o julgo da malicia dos homens de pouca fé, podem infectar os corações de homens de muita fé, pois o pouco discernimento sobre a maldade alheia individual e coletiva, pode maliciar a compreensão de uma relação livre de malicias.

Meu nobre guerreiro, por que os homens se incomodam com a amizade sincera e afetuosa entre homens? Por que estes quesitos lhe geram desconforto? Será que a virilidade de nossos corpos não permite sermos afetivos com nossos semelhantes? O mundo masculino não é passível de ser habitado pela fragilidade, dúvida, insegurança e o medo? Será que as dores, que engessam as nossas almas e obstruem os canais dos nossos corações e cérebros, não poderiam ser sanadas, com a permissão dos juízes morais que habitam as nossas sociedades, famílias e Casas? Será que o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, não permitiu que existisse amizade profunda entre os seus filhos?

É meu companheiro, penso e logo insisto em me questionar, pois o vinho, que bebo, o frio do deserto que adentra esta caverna, e a tua falta em meu peito, me fazem escrever estas linhas, num papiro encharcado pelas lágrimas que caem dos meus olhos. Penso, que as emoções nos tomam a razão. Nos tomam em momentos como este que vivo aqui e agora, quando penso no meu amigo de outras horas, que pela razão guardada por Deus, não está aqui comigo para preencher a ausência que a sua falta faz.

Jônatas, escrevo estas linhas para lhe confessar que os homens levarão milhões de anos para compreender a amizade entre homens. Nossos juízes e rabinos, por hora, não tem a compreensão das malhas que envolvem a amizade profunda entre homens de guerra e de fé. Será preciso nascer novos homens de sabedoria para compreender a amizade profunda entre os homens, que não nos olhem com os olhos da desconfiança e do julgo. Homens com olhos de paz, afeto e justiça, imbricados numa emanação de profundo amor pela humanidade, pois somente assim conseguirão chegar em nossos corações.

Os corações dos amigos profundos, meu caro filho de Saul, é habitado pela essência das Rosas de Saron; pelo novelo da lã colhida das ovelhas da Casa de Simão; pela força das mãos que lançam as armas do povo de Deus; pelos olhos curiosos dos guerreiros suados pela ânsia do descanso ao lado dos seus justos guerreiros; pela oração à Javé; pelo chão que habita vossas ancestralidades sacralizadas pelas juras de fidelidade à amizade do seu companheiro de fé e luta; enfim, meu nobre menino caçador, somente você me fez descobrir o sentido da minha amizade profunda pela sua pessoa, que neste momento, lhe confesso novamente a falta que você me faz.

Jônatas, vou encerrando esta missiva, porque a tinta já se faz gasta em minha pena, e o pergaminho não oferece mais espaço para continuar a acolher as minhas sentimentalidades pela sua pessoa. Sua presença é ausência em meu reino, mas não cabe a mim, à emissão das palavras que questionam a vontade de Deus. Pela eternidade dos nossos tempos, todos saberão da nossa profunda amizade, construída sob a égide das areias do deserto de Israel e ao sul dos nossos sentimentos mútuos e profundos, que marcaram a nossa presença no mundo dos homens de boa fé.

Que a sua presença embale meu sono profundo, com a mesma profundidade que regia a nossa amizade, para o agora, o amanhã e o tempo sempre presente em nós.

Foto de capa (Mar Morto) por Svetlana B no Pexels

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