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Em nome de Cristo

Cristo é um nome que me queima na boca. Passei boa parte da minha vida acreditando numa figura de um homem que teria sido filho unigênito de um Deus, claro, sem pensar um minuto sequer no que eu estava acreditando. Porque as coisas são assim mesmo. É esse o jeito que vamos levando a vida no mundo bizarro e estranho das crenças. Todas são bizarras, das mais romantizadas e pasteurizadas, às mais sangrentas. As crenças abusam da nossa capacidade de acreditar nas coisas sem ter nenhuma comprovação a respeito delas.

Não seria essa a essência da fé? Talvez, é bonito pensar que a fé é algo que temos por um motivo superior. Algum ser ou um conjunto deles, todos superpoderosos, todos oniscientes, resolveram criar o mundo, as coisas, a realidade. Depois cochicharam em alguns ouvidos e deixaram as coisas acontecerem. Eis o surgimento da religião, de todas elas, pelo menos de todas em que se acredita em seres superiores ou divindades.

Mas não é nisso que eu creio. Não saberia imaginar como começou a crença. Não foi por medo da morte. Imagino que nas primeira sociedades humanas, morrer era tão natural quanto qualquer coisa. Eram homens, mulheres e crianças, todos duros, rígidos, sem moral, sobrevivendo por si ou, no máximo, seguindo regras mínimas impostas pela força. Até que, num dado momento, a organização social deu certo. Ficou claro que todos estavam sob um regime tribal de governo com liderança e diferenciação. Ficou claro que aquele que lidera, vive mais, come melhor, tem as melhores esposas e os filhos mais saudáveis.

Por isso, foi necessário explicar isso de algum modo. Incutir nas cabeças o medo da morte. Impor pela força o medo de morrer. Se na tribo, a morte era consequência única dos embates contra a natureza, os animais que caçavam ou que os predavam, ou ainda, consequência da luta contra os inimigos, agora a coisa era outra. A morte de qualquer um na tribo abaixo do rei era uma questão de vontade dele. E a vontade dele estava ali, nas estrelas, na lua, na previsão de boa colheita, de boa caça, nos sacrifícios que traziam vida, que abriam as estações, que faziam superabundar os peixes, os animais.

A morte trazia vida. Imagino que um servo mais espertinho do rei, entendido das coisas escondidas, atormentados por sonhos, descobrira um modo de pôr o desconhecido à prova. O deus surgia assim, do sacrifício, da árvore mais antiga, do pico mais alto, da pedra onde o mar batia mais forte…

Sei lá, isso é fruto de imaginação. Talvez a crença em coisas inexplicadas tenha sido algo comum aos seres humanos e a grande sacada tenha sido apenas se aproveitar disso de maneira estratégica. O certo é que a crença surgiu. Surgiram ao redor delas, pessoas capazes de interpretá-la e dominar seus sentidos. Isso permitiu que ela passasse de algo comumente aceito para algo ensinado.

Por fim, eu creio que a realidade dura da vida constantemente se acabando prematuramente do mundo primitivo era impossível de ser encarada. A nossa realidade hoje em dia é dura demais para olharmos diretamente para ela. Imagina só numa época em que desastres e doenças eram capazes de exterminar uma população inteira. Uma população com maus dentes, desnutrida, fraca, sem noções de higiene, sem remédios funcionais ou mesmo sem especialistas em saúde.

Mas ainda assim, a espécie humana, fraca, débil e que cuja fêmea tem um filho por ano, no máximo, conseguiu se espalhar por todos os continentes exceto a Antártida. E por que isso deu certo dessa forma, antes da revolução médico-sanitária, da revolução verde ou da produção de bens de consumo que melhoram a vida de todos?

O ser humano é inteligente, produz conhecimento, desenvolveu meios de registrá-lo, possui cultura aprendida, passada e que se adapta. E junto com isso vieram crenças, possíveis frutos do exercício de pensar naquilo que não se explica.

Isso para mim explica Cristo. Um dia, algo inexplicável precisou ser explicado para que todos num grupo humano, pudesse se acalmar e pensar em soluções mais adequadas. Isso pode ter gerado as crenças estruturadas, os mitos, as narrativas. Homens saindo da água, dos peixes, crescendo do barro, sendo paridos de troncos de árvores.

Daí até a ideia de um deus invisível que escolhe um povo enquanto os outros devem morrer, é algo muito fácil. Que esse deus prometa mandar um filho redimir a todos, também não é difícil de se acreditar.

O que não sabemos, é que essa crença é muito útil. Ela surgiu no seio do judaísmo, nos séculos anteriores ao nascimento de Cristo. Os judeus acreditavam que isso significaria que um filho de um deus altíssimo, nascido de uma virgem (imitando vários outros mitos conhecidos na época), traria a salvação. Mas que salvação é essa?

A princípio, Cristo traria a libertação da opressão do governo dos conquistadores, incluindo aí a opressão romana, da época em que Jesus nascera. Depois veio um papo de amor, de valores, etc. Bem à moda grega. Uma pitada de crenças mesopotâmicas, maniqueístas. Uma dose boa de Diabo, já muito acreditado entre certos grupos de judeus, inferno grego, reencarnação aqui e ali, algo que a Igreja condenou veementemente, séculos depois e plim! Jesus morre na cruz, como tantos outros Cristos na época, até que Jerusalém tenha sucumbido no ano 70 d.C.

O primeiro evangelho surgiu, possivelmente, mais de dez anos depois disso, visto que a comunidade judaica cristã não precisava escrever ensinamentos oralmente passados. Não há evangelhos em hebraico, somente em grego, o que diz muito de quem tentava escrevê-los para passar para adiante. A crença cristã, editada, reeditada só pode ser compreendida se vista junto com a história europeia, para além do conteúdo dos evangelhos e cartas supostamente atribuídas a personagens que tiveram contato direto com Cristo. Ou então a abundante escrita de um tal Paulo, que conviveu com a igreja primitiva e tomou para si uma certa liderança sobre ela.

Tendo ouvido o evangelho por Barnabé, discípulo preparado para evangelizar, Paulo inventa ter tido um contato milagroso com o próprio Cristo em pessoa, que o jogara do cavalo no chão, deixara-o cego até que pudesse ver a realidade das coisas. Paulo, então Saulo, perseguia os cristãos e participava dos rituais de condenação da crença, até que o próprio Jesus em pessoa, ressuscitado, chamou-o à obra.

Pelo que eu entendi, de tanto ler a Bíblia, o povo meio que caiu nessa história e foram acreditando em Paulo. Ele deu um sentido missionário à religião, mas não conseguiu impedir que o cristianismo fosse uma crença apocalíptica e potencialmente suicida. Ele mesmo alimentou esse espírito. O cristianismo era, portanto, danoso a qualquer proposta de domínio governamental do corpo, de acordo com o estado das coisas. No entanto, havia quem visse com bons olhos seus efeitos de obediência e sacrifício. Cristãos acreditavam piamente que Cristo voltaria a qualquer momento. Muitos evitavam acumular bens, outros tantos nem questionavam sua condição como escravos ou mesmo como miseráveis. Isso era muito importante para a manutenção da dinâmica de estratos sociais. O cristianismo era a religião dos escravos que se entregavam voluntariamente aos leões nos circos romanos, sacrificados em rituais de humilhação. Há uma lenda que Nero iluminava seu jardim com tochas de cristãos besuntados em alcatrão incandescente.

Acho que isso seja um exagero, mas possível era. O imperador poderia fazer isso, pertencia a ele o poder de fazer morrer e deixar viver. Então o que eram alguns fanáticos suicidas que idolatravam um pedaço de pão que chamavam de seu deus e o comiam, no meio de um ritual mágico? Eram obedientes e conformados com sua condição social. Esperavam um mundo melhor no porvir, não exatamente a recompensa por tudo aqui na Terra. Pior ainda, pensavam que, antes que eles morressem pela espada ou na boca de algum leão no circo, Cristo voltaria destruindo o mundo e salvando somente seu povo, ou quem acreditasse e se convertesse. Exageros à parte, três séculos depois, essas crenças chegaram a um nível interessante de controle dessas ideias. A revelação de um fim dos tempos tinha sido adiada para um futuro inalcançável. Mil anos, dois mil, sei lá. Enquanto isso, os cristãos tinham que espalhar a doutrina. Constantino, imperador romano, nesse século, viu sua mãe, Santa Helena, pregar a ele mesmo o evangelho. Ele e seus funcionários reais apostaram no poder do evangelho de unir, dar identidade e civilizar o povo. Pronto. Nasceu o império cristão e depois, a Igreja poderosa, com sede em Roma, séculos depois.

Europa. Cristianismo de norte a sul do continente. Mesmo sem uma total unidade de crenças, um dia a Europa resolveu se lançar ao Atlântico para conhecer o resto do mundo. Levou Jesus com ela, e ele veio parar aqui onde eu vivo. Ele é um dos responsáveis pelo que eu sou como ser humano, é responsável também pelas minhas neuroses, crises existenciais e pelo preconceito que soterra minhas possibilidades de ser integralmente feliz.

Mas a gente tem que se libertar disso, me dizem. Sim, por isso eu abandonei, apostatei da fé. Não retornarei nunca mais a uma igreja para cultuar. Eu posso entrar para outras coisas participar de algum ritual como convidado, se quem convida merecer esse esforço. Posso conviver em paz com cristãos, porque isso não é exatamente acreditar no deus deles, ou em seus anjos, santos e milagres. É ter valores que já existiam antes do cristianismo, mas que foram apropriados por ele. E monopolizados.

Ser cristão é ser civilizado, todo o resto é selvagem, pode ser que nem seja humano, não merece igual respeito. Esse é o pensamento dominante na cabeça de qualquer cristão que eu pegar agora passando na rua, seja rico ou pobre, ignorante ou esclarecido. A ideia de que o povo de deus é especial não gera apenas o complexo de que esse deus os buscará no fim e abandonará o mundo à sua sorte.

De verdade? Virou a ideia de que Cristo deu a todos os cristãos um poder que não existe espiritualmente, mas existe como força micro e macropolítica. Cristo quer ser anunciado a todos os povos, que devem abandonar seus deuses e acreditar num deus único. De fato. Mas o que acaba acontecendo é que Cristo coloca armas nas mãos sádicas e sedentas de sangue. Sangue e dinheiro.

Vamos deixar de lado um pouco essa coisa da colonização europeia por meio do cristianismo. Vamos pensar na lógica interna do funcionamento da religião. Toda normalidade vinda junto com essa crença foi automaticamente adotada pela ciência positiva que nasceu no século XIX. Foi preciso quase outro século para que pudessem questionar antigos parâmetros de normalidade que vêm do cristianismo. Internamente, a religião é um corpo místico de doutrinas, axiomas que tem uma dimensão antropológica. Dessas crenças, sai a noção de ser humano. Fraco, débil e impotente, sua capacidade depende de um criador, depois de um redentor. A ideia é enfraquecer o poder político dos sujeitos. A crença, no entanto, nem sempre é o forte de certas igrejas cristãs. Pelo que eu posso entender, eu vejo que os evangélicos, pentecostais e adeptos de seitas divergentes do catolicismo romano, por exemplo, são mais fiéis a esse conteúdo místico da religião. Por isso, por muitos, eles sejam considerados mais dominados e domináveis. Mais manipuláveis. É uma religião menos racional. O catolicismo, por sua vez, se apoia em valores, do ponto de vista teológico, é liberal e portanto se apoia mais nos conceitos de civilização, paz e normalidade que ajudou a construir ao longo dos séculos. Mas não abre mão dos seus dogmas e de manter uma moral castiça, mesmo que no meio da contradição evidente. Os católicos romanos não são exemplos de ética ou de cumprimento de regras. Mas apoiam-nas, quando elas se ligam a projetos de governo, condução do que é público e, principalmente, quando se trata de julgar aquilo que é normal ou não no comportamento do corpo social.

Se por um lado, o cristianismo tende a extremos, seu efeito é parecido. Todo governo pode contar com a cristandade para qualquer projeto de governo que ataque liberdades e privilegie mais ricos. Claro que há divergentes, mas eles nem sequer abalam a maioria. Cristo é isso aí mesmo, o poderoso chefão dos corruptos, dos sujos, dos que matam por dinheiro, dos que traficam e enriquecem com a pobreza. Cristo é quem deixa padres estuprarem garotos. Assim como é ele que acha normal mulheres não serem donas de seus corpos. Cristo, na boca de seus padres e pastores, manda mulheres desistirem de denunciar seus maridos que as espancam.

Por fim, Cristo quer ser dono do meu cu, do meu pênis. Eu nunca deixei. Passei meus anos de bom cristão exercendo meu direito deturpado de macho, de ter liberdade sexual. Não me orgulho disso, mas ao mesmo tempo eu admito que foi mais fácil do que parece.

Homens têm privilégios, mesmo dentro do ambiente terrível da exclusão. Isso é inegável. Mas, num belo dia, imbuído de meus direitos como ser humano, fui ao pastor de minha igreja e desabafei. Eu era gay e precisava me livrar daquilo. Pela primeira vez alguém foi honesto comigo e disse que não havia como reverter a minha condição.

Ali eu encontrava o limite da divindade. Uma vez me disseram que ele criava vasos para a honra e para a desonra. Eu era do segundo tipo. Torto, não havia o que fazer. O pastor ainda foi bonzinho e sugeriu que eu ficasse na igreja, não pecasse e devotasse a minha vida a deus, mas eu jamais seria “curado”, transformado ou teria uma vida sexual padrão. A igreja também não me liberaria para ter uma vida sexual por mais ajustada que fosse. Deus abençoava o amor entre homem e mulher.

Eu ouvi aquilo, pensei bem em tudo o que me fora dito. Nunca mais pisei dentro daquela igreja. Nunca mais conversaram comigo. Nunca vieram me visitar, nunca mais se lembraram de mim. Eu estava livre. Livre de Jesus Cristo para sempre.

Estava? Nada disso. Jesus ainda me perseguiu no espiritismo, no espiritualismo, na Umbanda, no misticismo, até que um dia eu disse chega. Ninguém precisa me salvar de um céu que não existe, de uma dimensão que não é a minha. Quem pode me salvar está aqui, na Terra, é vivo, pode fazer isso, se quiser.

Esse alguém sou eu mesmo, são todos os que me cercam. Eu posso me livrar dessas crenças destrutivas. Os que me cercam, comigo, todos nós podemos nos organizar e lutar por um mundo melhor. Lutar contra a propriedade privada. Não contra a propriedade pessoal. Não quero que ninguém perca seu telefone de pobre ou seu carro usado. Eu quero que os meios de produção não sejam de pessoas ou empresas, mas de quem trabalha nelas.

Não quero me demorar muito nisso aqui, mas já pensou no quanto isso pode ser libertador? Seria muito bom. Eu não gosto do seu Cristo, mas se você perder o tempinho que eu perdi para ler a sua Bíblia, vai acreditar que ele apoiaria essa ideia.

Talvez o seu Cristo, o qual odeio, tenha mais vontade que possuamos os meios de produção do que qualquer outra coisa. Por que a Igreja o põe contra bocetas, cus e pirocas, quando na verdade ele queria amor e divisão igual de tudo para todos? Pensemos bem?

Oremos?

Orem vocês, eu não.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: imagem de Couleur por Pixabay

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