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Economia do cuidado, mulheres e pandemia

mulheres e pandemia

O “cuidado” é essencial para a manutenção da vida das pessoas e nos últimos anos ganhou relevância por fatores como o envelhecimento da população e a maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Assim, o tempo disponível para assumirem encargos com os serviços que envolvem: educar, nutrir, limpar e cuidar dos parentes sem autonomia, diminuiu. Tarefas que demandam esforço em níveis físico, mental e emocional e são, quase exclusivamente, atribuídas às mulheres, implicando em duplas e às vezes triplas jornadas. O contexto pandêmico entornou o caldo dessa discussão, ao passo que a pressão sobre as mulheres aumentou e se intensificou a importância que esse trabalho requer para assegurar o bem-estar de todos.

Persiste na nossa construção social uma noção de que o cuidado é uma manifestação de amor e, portanto, deve ser realizado de forma gratuita. A partir da década de 1970, com a maior participação das mulheres no mercado de trabalho e menos tempo para se dedicarem ao trabalho doméstico, essa ideia vem sendo questionada, sobretudo por feministas da segunda onda nos Estados Unidos, com o movimento que ficou conhecido como Wages for Housework (salários pelo trabalho doméstico).

Uma das integrantes desse movimento é a pensadora marxista, Silvia Federici, autora de o “Calibã e a bruxa”, estudo em que retrata como a caça às bruxas na Europa coincide com o surgimento do capitalismo, e essa perseguição, por sua vez, preparou o terreno para um patriarcado mais opressivo e com maior controle sobre as mulheres. Desde então, a divisão sexual do trabalho definiu que a esfera pública seria ocupada pelos homens e a esfera privada caberia às mulheres, sendo responsáveis pelo trabalho reprodutivo e os afazeres domésticos.

Para que essa economia mercantil se mantenha, ao mesmo tempo em que se produz coisas é preciso reproduzir as condições de produção dessas coisas. Através da organização dos meios de produção e contratação da força de trabalho que irá produzir os bens de consumo. Contudo, para que essa relação de produção exista, é necessário que ocorra de forma simultânea o trabalho que acontece fora das empresas, de forma quase invisível, o qual garante que esse trabalhador ou trabalhadora terá roupas limpas, comida para se alimentar, uma casa higienizada, e assim, tendo as suas necessidades físicas, psicológicas e emocionais atendidas, possa retornar ao seu posto no dia seguinte. A esse trabalho se dá o nome de reprodução social, que vem sendo estudada por diversas áreas do saber como a sociologia, economia, antropologia, entre outras.

A dinâmica da reprodução social é peça fundamental para que seja mantida a ordem do modelo econômico vigente, garantindo a manutenção e a reprodução da mão de obra necessária. No entanto, a importância desse trabalho não é reconhecida pelo capitalismo, criando-se uma contradição em que esse sistema se beneficia desse trabalho, ao passo que não o reconhece como produtor de valor e relega-os às mulheres, sobretudo às mulheres pobres, com baixa escolaridade e negras. Fazendo com que essa discussão, inevitavelmente, perpasse pelas questões de gênero, classe social e raça.

A força do cuidado no mundo

No mundo todo, as mulheres empregam 4 horas e 25 minutos por dia em trabalhos de cuidado não remunerado, enquanto que os homens gastam em média 1 hora e 23 minutos no mesmo trabalho segundo um estudo de 2018 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). O estudo também mostra que se as mulheres que exercem esse trabalho do cuidado não remunerado recebessem um salário mínimo em seus respectivos países, esse montante chegaria em 11 trilhões de dólares (equivalente a 15% do Produto Interno Bruto global).

O trabalho do cuidado na pandemia

A crise provocada pela pandemia de Covid-19 não é só de ordem econômica e sanitária, mas também, uma crise da nossa forma de organização social, onde o cuidado ocupa um lugar de destaque, lançando uma lente de aumento sobre a pressão que essa carga de trabalho gera sobre as mulheres e as famílias. Durante a pandemia, aumentou-se as horas diárias de trabalho doméstico e com os cuidados no geral, 50% das mulheres brasileiras passaram a ser responsáveis pelo cuidado de alguém, segundo a pesquisa da Gênero e Número, “O trabalho e a vida das mulheres na pandemia”. Desde o cuidado com as crianças, enquanto as aulas presenciais estão suspensas, até os cuidados dos doentes e idosos. Além de que, se redobrou os cuidados com a higiene e limpeza, a preocupação com a alimentação para prevenir queda da imunidade e possíveis doenças.

Para além da esfera doméstica, as mulheres também foram mais afetadas pela Covid-19, seja por estarem na linha de frente como trabalhadoras das áreas ligadas à saúde e assistência, seja porque foram demitidas em maior número durante a pandemia. Segundo a OIT, 64 milhões de mulheres no mundo perderam seus empregos durante a pandemia. Consequentemente as mulheres ganharam menos e houve mais mulheres caindo na pobreza.

Em relação ao mercado brasileiro, mais de 8 milhões de mulheres deixaram a força de trabalho segundo uma pesquisa realizada pelo IREE (Instituto para as Reformas das Relações entre Estado e Empresas). Dessas, 26% afirmam por não poder trabalhar por não terem como delegar as atividades atreladas ao cuidado do lar e de algum parente, e sem poderem contar com uma rede mínima de apoio devido ao contexto de isolamento social, precisaram deixar seus empregos. Entre os homens, o percentual que afirma não poder procurar um emprego pelos mesmos motivos não ultrapassa os 2 %. O estudo também aponta que a taxa de desocupação das mulheres passou de 13% para 17% na pandemia, sendo a menor participação das mulheres no mercado dos últimos 30 anos.

Para as mulheres que continuaram em suas ocupações, 41% disseram estar trabalhando mais durante a crise sanitária, e 40% afirmaram que a pandemia aliada ao distanciamento social, colocaram o sustento de suas famílias em risco. Dentre as mulheres negras essa percepção foi maior, chegando a 55%. Relembro uma afirmação da filósofa e ativista Ângela Davis que ganha ainda mais força nesse cenário de regressão, “as mulheres negras estão na base da pirâmide social”, e por estarem na base, percebem, economicamente, as mudanças primeiro.

Já que o trabalho do cuidado é tão essencial à vida, de que forma vamos organizá-lo para que não seja somente as famílias, e mais especificamente, as mulheres, responsáveis por carregar todos os ônus por esse trabalho?

O projeto de reorganização social pós-crise, precisa colocar esse problema como prioridade na pauta. As mulheres não vão mais aceitar fazer esse trabalho insubstituível, que garante o desenvolvimento e a manutenção das famílias e comunidades, sem paridade de gênero e de forma não-remunerada. A discussão sobre uma renda básica universal é uma possibilidade nesse horizonte, mas é preciso frisar que pagar por esse trabalho não soluciona de uma vez por todas os nossos problemas. Não se trata de uma questão apenas econômica, mas sim, um fator estruturante da nossa forma de organização social. Esse trabalho promove bem-estar e toda a sociedade, em algum grau, precisa e se beneficia dele. Portanto, não pode ser mantido num lugar de invisibilidade e desvalorização, e para isso, é fundamental superar esse modelo produtivo que valoriza o acúmulo de riquezas em detrimento da vida das pessoas.

2 respostas

  1. Excelente reflexão Nati. É doloroso ver mulheres com tanto potencial tendo que abrir mão de carreira por não conseguir distribuir as tarefas domésticas com demais membros da família. Anseio para que esse cenário mude, pois beneficiará a todos.

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